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    Segurava a pequena Pedra de Ancoragem entre os dedos, girando-a distraidamente com um movimento ágil e quase inconsciente.

    Era um truque que aprendera com um artista mambembe que, certa vez, se apresentara na ilha. De todos os meus irmãos, fui o único que se deu ao trabalho de observar com atenção e dominar o giro preciso, elegante, que mantinha a pedra sempre em movimento.

    A luz do sol tocava a superfície lisa do cristal encantado, refletindo um brilho pálido e azulado que dançava em espirais tímidas sobre minha pele. Havia algo hipnótico naquele reflexo, algo que me acalmava, ainda que por pouco tempo.

    Fechei a mão ao redor da pedra, sentindo sua textura fria contra a palma quente. Era leve como uma joia qualquer, inofensiva no peso. Mas de valor inestimável.

    A Pedra de Ancoragem não era apenas uma ferramenta mágica; era a única forma segura de atravessar a névoa que separava as ilhas suspensas do Império.

    Eu era de Vesúvia, o lar da Casa Vulkaris, minha família, minha herança e, em muitos sentidos, minha prisão. A ilha era um terreno abrupto e rude, dominado por vulcões fumegantes e pedras expostas ao vento constante. As árvores cresciam tortas, o solo tremia de tempos em tempos, e o calor escorria pelas rochas como um lembrete de que tudo ali poderia ruir a qualquer momento. Era uma terra que não perdoava fraquezas. E moldava seus filhos à sua imagem: duros, resistentes, abrasivos.

    Desde que me entendia por gente, nunca saíra dali. A única exceção fora uma viagem curta, ainda na infância, quando acompanhei meu pai até Brumora, onde um especialista examinou meu núcleo de mana rachado. Lembrava pouco da viagem, mas a lembrança da sensação de liberdade ao sair da ilha jamais se apagou.

    Hoje, pela primeira vez, eu viajaria sozinho. E, apesar do que qualquer um da minha Casa diria, eu estava assustado.

    Respirei fundo, procurando controlar o tremor nos dedos. Fechei os olhos e me concentrei. Ao meu redor, o ar vibrava com a presença sutil da mana ambiente, como um perfume invisível, tênue, flutuando nas correntes do mundo. Estendi minha percepção, senti a pulsação da energia e a puxei com esforço para dentro da pedra.

    Era como tentar colher água com as mãos feridas: lento, doloroso, ineficiente.

    A pressão em meu peito aumentou. Um suor frio brotou na testa, escorreu pela têmpora e se perdeu na gola da túnica. A Pedra de Ancoragem reagiu à infusão de mana, sua luz azul tornando-se mais intensa, oscilando em pulsos ritmados que reverberavam até meu braço.

    Aos poucos, uma runa intricada começou a se formar sobre sua superfície, viva, se desenrolando como uma serpente mágica, marcando o destino programado.

    Meu corpo doía. Meu núcleo de mana, rachado desde que nasci, fazia com que qualquer uso de energia fosse extenuante. Um esforço que, para meus irmãos, era trivial, para mim era uma batalha.

    Na Casa Vulkaris, não havia espaço para falhas. Não havia piedade para os fracos.

    Cresci ouvindo que um guerreiro sem mana era menos que inútil, era um peso morto. E, no entanto, ainda estava ali. Fraco, sim. Mas teimoso o bastante para resistir.

    Se havia algum consolo, era o fato de que, por causa dessa falha, desenvolvi uma sensibilidade incomum à mana. Eu percebia os traços invisíveis, os fluxos sutis, as nuances que escapavam até dos magos mais experientes da casa. Sentia o mundo de forma diferente. E, às vezes, isso era quase como poder.

    A voz da minha irmã gêmea, Cassiopeia, cortou o fio dos meus pensamentos como uma lâmina:

    — Pronto, Ganimedes? — Seu tom era firme, mas carregava um quê de urgência. — Se a Legião ativar as armaduras a mana vai secar e você não vai conseguir ativar sua pedra. Seu núcleo, lembra?

    Ela estava certa. As armaduras devoravam a energia disponível e se demorássemos, eu não teria como abrir um caminho seguro pela névoa.

    Balancei a cabeça afirmativamente.

    — Eu sei…

    Cassiopeia franziu a testa.

    — Vá na frente.

    Hesitei, mas inspirei fundo e fiz a pedra brilhar novamente. Direcionei a mana ambiente nela, ativando sua conexão. A Pedra de Ancoragem vibrou levemente, e a névoa à minha frente pareceu se contorcer.

    Primeiro, pequenas volutas de fumaça surgiram, como dedos curiosos se estendendo pelo ar. Então, subitamente, elas se alastraram e me envolveram, como uma boca faminta. Prendendo o fôlego, dei um passo à frente.

    Minha visão dos arredores desapareceu em um instante. O silêncio ali dentro era denso, opressor, a temperatura caiu bruscamente. Senti meu coração acelerar.

    O pavor das histórias de terror sobre a névoa que ouvimos quando pequenos me atingiu como um soco.

    Gritos perdidos e abafados, criaturas invisíveis e outros pavores ocultos. Nomes que nunca voltaram.
    Engoli em seco.

    O turbilhão branco ao meu redor começou a se mover, girando lentamente no início, depois mais rápido, formando um túnel escuro à minha frente.

    Ruídos estranhos ecoaram do vazio, e minhas pernas travaram. Eles vinham e sumiam, como sussurros de fantasmas.

    O túnel se estabilizou. A névoa havia reconhecido a ligação da Pedra de Ancoragem com nosso destino.

    Soltei um suspiro aliviado e dei meu primeiro passo.

    Caminhei devagar, contando passos para afastar o pânico. O túnel se estendia, a luz oscilando como se algo me espreitasse. Um calafrio subiu pela minha nuca, apertando meu peito.

    De repente, senti o ar ao meu redor mudar, a névoa se tornou um pouco mais rala, menos opressiva.

    Esperançoso, dei mais um passo, desejando que a travessia acabasse logo, e então, em um último esforço, emergi do outro lado.

    O que vi me deixou sem palavras. 

    Diante de mim, estendia-se uma vastidão verde, viva e imponente. Árvores colossais erguiam-se em todas as direções, suas copas entrelaçando-se em uma densa tapeçaria de folhas. O ar era pesado de umidade, carregado com o cheiro terroso da vegetação e um leve toque adocicado de flores desconhecidas.

    Mas bastou um olhar atento para perceber os limites daquela ilha. Pequena e isolada, uma ilha cercada por uma névoa espessa, suspensa entre mundos, atrás de mim, ela sussurrava, um frio que se apegava às árvores, desafiando-me a voltar.

    Fiquei parado, absorvendo a paisagem. Não era nada parecido com Vesuvia, a ilha da nossa família — um lugar de vulcões furiosos, céu cinzento e o cheiro onipresente de enxofre e fuligem.

    Meu coração ainda pulsava acelerado, resquício do medo da travessia, mas agora outras emoções se sobrepunham a ele.

    Espanto. Maravilhamento.

    O mundo era muito mais vasto do que os livros e histórias me fizeram acreditar. Ouvir relatos de viajantes, ver mapas e pinturas era uma coisa. Estar ali, cercado por uma selva tão densa que parecia respirar ao meu redor, pulsando com vida em cada folha, cada sombra e cada som desconhecido, era algo completamente diferente.

    A voz de Cassiopeia soou atrás de mim, carregada de leveza e curiosidade. Um alívio. Ela havia atravessado sem problemas

    — Você nunca saiu de Vesúvia, não é?
    Me virei para encará-la.

    — Nunca — admiti, meus olhos ainda absorvendo o verde intenso da paisagem.

    Ela riu, cruzando os braços.

    — Não que eu tenha viajado tanto assim, mas já passei uma temporada inteira com a nossa bisavó.

    Cassiopeia falava da Matriarca da Casa Nymeris, uma das mulheres mais poderosas do império e alguém que eu nunca conheci pessoalmente. Ela havia escolhido treinar Cassiopeia quando minha irmã ainda era criança, reconhecendo nela um talento excepcional.

    Um tambor soou ao longe, vindo do acampamento à frente, um prenúncio do que viria, cortando nossa conversa.

    Minha irmã apontou o caminho.

    — Vamos.

    O caminho estava demarcado. Soldados dos Vulkaris iam e vinham pela trilha de terra batida, os pés levantando poeira enquanto carregavam suprimentos e armas. Eles haviam chegado antes de nós, preparando o terreno para a ofensiva da Legião.
    Resignado, segui Cassiopeia.

    Andamos por um tempo até que avistamos um acampamento improvisado, mas extremamente organizado. As barracas estavam dispostas em fileiras impecáveis, separadas por funções. Alojamentos, depósitos de suprimentos, forjas móveis e tendas de comando. Havia sentinelas patrulhando o perímetro e engenheiros trabalhando em dispositivos arcanos para reforçar a segurança.

    E, além do acampamento, uma grande fortificação se erguia a alguma distância, como um gigante adormecido, suas muralhas de pedra escura resistindo ao desgaste do tempo. Era nosso alvo.

    No centro do acampamento, cercado por oficiais e clérigos da Igreja do Julgamento e Retribuição, estava meu tio, Augustus. Alto, imponente, com a armadura cerimonial da Igreja polida até brilhar sob a luz do dia. Quando viu Cassiopeia se aproximar, seu rosto se iluminou em um grande sorriso. Mas, quando seus olhos pousaram em mim, o sorriso vacilou por um instante.

    Era sempre assim.

    Desviei o olhar para minha irmã. Entendi o que meu tio via. Cassiopeia era a “Jóia de Vulkaris”, o maior talento que surgira desde nosso pai. Ela era tudo o que nossa Casa poderia desejar em um herdeiro: alta, esguia, com postura impecável e olhos penetrantes. Seus cabelos negros, lisos como seda, desciam pelas costas como um rio sombrio. Mas o que realmente a fazia brilhar era o talento. Seu núcleo de mana era ilimitado, o que era um caso raríssimo. Aos dezoito anos, já havia cristalizado quatro círculos incompletos de mana, um feito que poucos no império igualavam.
    E eu?

    Baixo, com cabelos espetados e sem brilho. Minha feição era considerada rude, sem o carisma da linhagem Vulkaris. Mas nada disso importava tanto quanto meu maior defeito: nasci com o núcleo rachado.
    Mana era a essência que permeava o mundo, a fonte de poder e prestígio. Canalizava força física e alimentava a magia. Quanto mais mana uma pessoa conseguia acumular, mais poderosa se tornava. Guerreiros, magos, líderes — todos eram medidos pelo domínio sobre sua própria energia.

    Mas eu não conseguia acumular nada.

    Era fraco num mundo que exaltava a força. Para os Vulkaris, que viviam pelo poder, minha existência era quase um erro.

    — Lembrem-se de que estão aqui para testemunhar — disse meu tio, com um tom solene. Mas eu sabia que ele falava mais para Cassiopeia do que para mim. — A punição que aguarda os traidores do império.

    Olhei ao redor e vi que um palco havia sido montado no centro do acampamento. Correntes encantadas estavam presas a pilares de pedra negra, runas antigas brilhando em suas superfícies.

    Meu tio havia planejado um espetáculo. Um teatro elaborado para impressionar minha irmã. Ele queria que Cassiopeia seguisse seus passos na Igreja, que abraçasse a doutrina da Retribuição.

    Eu?

    Era apenas um intruso, ali para ver as armaduras em ação. Sentir sua mana e poder circulando.

    A mana ao nosso redor se alterou de maneira sutil, mas para mim, que não possuía uma fonte interna, a mudança foi clara como o sol no horizonte.

    A Legião Manaclaste havia atravessado a névoa, nenhuma baixa aparente.

    Engoli em seco e voltei meu olhar para o campo entre nosso acampamento e a fortificação. As armaduras estavam se posicionando, enfileiradas em retângulos perfeitos, como peças de um tabuleiro cuidadosamente dispostas antes da guerra começar. Os oficiais usavam detalhes dourados; os soldados comuns, marcas azuladas.

    Mas não era a cor que importava.

    Era o que elas significavam.

    A armadura Manaclaste era uma maravilha da engenharia e da magia, um instrumento avançado e letal de guerra. Um prodígio de mana e metal, muito além das armaduras comuns.

    As runas que revestiam sua estrutura eram de um design único e elegante, interligadas como um organismo vivo. Elas não apenas absorviam a mana ao redor, mas a redirecionavam e amplificavam. Era por isso que as chamavam de Manaclastes — “destruidoras de mana”.

    Um homem comum, ao vestir uma dessas armaduras, era elevado ao patamar de um guerreiro de quarto círculo. Sua força e resistência tornavam-se sobre-humanas, seus reflexos refinados além do natural. Magias menores se dissipavam ao contato com as runas, tornando feitiços triviais inúteis contra eles.

    E ali estavam dúzias deles.

    Uma força imponente e assustadora.

    Com tudo em seu lugar, meu tio caminhou até o centro do palco montado, cercado por sacerdotes e oficiais tanto da Igreja quanto do Império. O cortejo que o seguia era estranho e solene, como um ritual ancestral que se repetia há séculos.

    Um homem idoso, curvado pelo peso dos anos, apoiava-se em um cajado retorcido. Seus olhos eram nublados, mas ainda carregavam um brilho austero e severo. Ele pigarreou alto, exigindo silêncio, e bateu o cajado duas vezes contra o tablado de madeira.

    O som ecoou com um peso quase sobrenatural.

    A multidão, até então inquieta, calou-se por completo.
    Senti a importância do momento.

    Endireitei minha postura, tentando parecer o mais digno possível. Ao meu lado, Cassiopeia me lançou um olhar breve e um sorriso sutil — um gesto silencioso de apoio. Meu coração se aqueceu por um instante, mas a voz potente do meu tio me arrancou daquele lapso de conforto.

    — Estamos aqui por ordem de Sua Majestade Imperial, Juliani Gaio Argus! — Sua voz preencheu o espaço com autoridade. — Em seu nome, nos foi designado o dever sagrado de julgar e punir aqueles que traíram o Império!

    O silêncio absoluto foi quebrado por murmúrios entre os presentes.

    — Os rebeldes da Casa Lestari — continuou ele — liderados por Carrara Lestari, mineraram e forneceram pedras de mana para os inimigos do Império e da raça humana…

    Ele fez uma pausa calculada, antes de proclamar o nome que todos temiam.

    — Os Necros.

    Um arrepio percorreu a multidão. O murmúrio transformou-se em um burburinho intenso, uma onda de indignação e nojo.

    A antítese do que éramos. A podridão que consumia tudo. Eles representavam morte e corrupção, trevas e devassidão. Onde passavam, deixavam apenas destruição e sofrimento.

    E rebeldes da Casa Lestari haviam vendido pedras de mana para eles.

    Cassiopeia, ao meu lado, respirou fundo, seus olhos cintilando em fúria contida.

    Meu tio ergueu as mãos e a multidão, aos poucos, silenciou novamente.

    — Os representantes dos Lestari se opõem ao julgamento? — Sua voz era cortante.

    Uma mulher idosa, claramente envergonhada e abatida, deu um passo à frente. Seus ombros estavam curvados sob o peso do momento. Vestia um vestido grosso e um xale escuro, talvez já antecipando o luto que se seguiria.

    Quando falou, sua voz, surpreendentemente cristalina, ressoou por todo o pátio.

    — A Casa Lestari não se opõe, Que quem errou seja punido.

    O semblante de meu tio permaneceu impassível.

    — Procedam ao julgamento.

    Ele recuou um passo.

    Um dos sacerdotes, vestido de branco e dourado, assumiu seu lugar. Outros dois caminharam até ele com um baú ornamentado e, com reverência, abriram-no.

    Dentro dele, repousava um objeto que fez minha pele se arrepiar. A tensão do ambiente se intensificou, parecia que todos tinham prendido o fôlego por uma batida de coração.

    O primeiro sacerdote abaixou-se e retirou uma cabeça mumificada do baú.

    A visão era macabra. A pele seca e curtida pelo tempo formava um marrom enegrecido. Fitas sagradas pendiam de sua testa, amuletos estavam enroscados nos cabelos endurecidos. A cena, apesar de sagrada era grotesca, e meu estômago se agitou.

    Mesmo sem um núcleo de mana, senti a energia pulsando naquele crânio morto. Era uma energia opressora e solene.

    O sacerdote sussurrou palavras sagradas em um idioma ancestral e passou a relíquia ao meu tio, que a segurou pelos tufos ressequidos de cabelo e a ergueu.

    O ritual de julgamento havia começado.

    Seu tom de voz mudou. Agora, ele entoava uma oração.

    As pessoas ao redor sentiam a mudança no ambiente, como se o sol tivesse deixado de ser quente.
    Seus olhos estavam fechados, sua expressão era de absoluto fervor.

    — Ó! Grande Thalos, que vê através das sombras e escuta os sussurros da verdade,

    A multidão prendeu a respiração.

    — Tu que és a balança e a lâmina, cuja justiça nunca vacila,

    O ar pareceu vibrar ao redor de nós.

    — Desce agora sobre este solo profano e vê o peso dos pecados aqui cometidos.

    A cabeça mumificada começou a emitir um brilho fraco e dourado.

    — Nós, teus servos, suplicamos por tua presença,

    A mana no ambiente girava em redemoinho ao redor do artefato, como se esperasse por uma apoteose.

    — Para que, com teu olhar fulminante, tu faças o julgamento certo.

    O brilho dourado intensificou-se, irradiando-se como brasas avivadas. O sol, voltara a queimar.

    — E que tua mão, impiedosa e certeira, caia sobre os culpados.

    O brilho tornou-se uma explosão de luz.

    Por um segundo, a multidão recuou, tomada pelo temor e pela reverência aos mistérios sagrados.

    — Ó! Thalos, senhor da retribuição, traga o veredito,

    A cabeça abriu os olhos. Senti minha saliva desaparecer da boca. Meus pelos se eriçaram, e senti um arrepio.

    Eles estavam vivos.

    Dourados como a própria luz divina.

    Uma voz profunda, etérea, ecoou, não pelos ouvidos, mas dentro da mente de cada pessoa presente.

    — São culpados.

    O veredito foi dado.

    A multidão gelou.

    — Procedam à punição dos pecadores.

    Um trovão ribombou ao longe, como um presságio.

    — Que a Retribuição venha como se fosse uma lâmina dos céus.

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