Capítulo 104: A batalha do Matadouro (4)
Rosa estava caída, sentada no chão, as costas apoiadas em uma pilastra de pedra partida. Seu vestido, outrora elegante, agora estava empapado de sangue, o tecido carmesim misturando-se de forma mórbida com seus cabelos vermelhos. Ela tremia, os músculos recusando-se a obedecer, e a cada tentativa de se levantar, seus braços fraquejavam, as palmas das mãos escorregando no chão úmido de sangue e poeira.
Pandora, ao seu lado, sangrava de dezenas de pequenos cortes. Os fragmentos da sala semidestruída a tinham atingido como navalhas, rasgando sua pele pálida. Suas roupas estavam em farrapos, e cada respiração era um esforço doloroso. Mesmo assim, ela permanecia de pé, o rosto contorcido em uma mistura de dor e teimosia.
A visão das duas me fez o sangue ferver. A abominação à nossa frente era um desafio e tanto, como já sabíamos.
— Claire! — gritei, minha voz reverberando pelas paredes da sala devastada. — Reforce Pandora! Ela está nas últimas!
O eco das minhas palavras mal se dissipou quando ouvi a resposta de Claire atrás de mim, seu tom firme mesmo em meio ao caos:
— Pode deixar, Lior!
Senti o ar mudar. Era sutil, mas para quem conhecia a magia de Claire, era inconfundível. O fluxo da mana irradiava de onde ela estava, um fio etéreo de poder que serpenteava até Pandora. Vi os ombros de Pandora se erguerem um pouco, a respiração se estabilizando, como se ela tivesse sido envolta em um manto invisível de força.
— Dante, comigo. — A ordem saiu em um rosnado, mais instinto do que decisão.
Sem hesitar, Dante seguiu meus passos. Seus olhos faiscavam com determinação, o semblante fechado de alguém que já havia aceitado o peso da batalha e estava disposto a ir até o fim.
Apressamos o passo, atravessando o campo de destroços e corpos caídos. Chegamos a Pandora no momento exato em que suas pernas fraquejavam.
— Respire, Pandora. Vá até Rosa.
— Obrigado. — murmurou Pandora ao passar por nós, a voz rouca e baixa, mas carregada de sinceridade.
Seus olhos encontraram os meus, ainda carregados de uma teimosia selvagem, mas ela assentiu. Com passos pesados, foi até Rosa, envolvendo a mulher ferida em seus braços e a arrastando para uma posição mais segura, entre os escombros.
Dante e eu nos colocamos de frente à abominação. Ela estava estranhamente parada, como se, montaria e cavaleiro, sentissem que aquele seria o embate final.
Então, o cavaleiro cadavérico abriu a boca.
Seu grito não era apenas som, mas uma punhalada na alma. Palavras em uma língua antiga e amaldiçoada saíam de sua garganta, cada sílaba distorcida e impregnada de dor. Era como se o próprio ar ao redor de sua boca se partisse em lâminas invisíveis, e cada uma delas se cravasse em nossos ouvidos.
Senti meu miasma reagir àquelas palavras, uma corrente gelada subindo pela minha coluna. Era um chamado, um puxão invisível que queria me arrastar para um abismo de sombras.
Fechei os olhos por um instante, reforçando o controle sobre o miasma. Não deixaria que aquilo me dominasse. Temi por Dante. O cavaleiro queria controlá-lo. Direcionei a ele um fluxo de miasma com minha vontade.
— Concentre-se, Dante. Ignore a voz. — Minha própria voz soou distante, mas ele assentiu, os punhos se fechando ao redor do cabo da espada.
A criatura urrou e avançou. Os ataques da abominação vinham em torrentes. Desviei de garras e pancadas, meus reflexos afiados pela adrenalina e pela mana que circulava em meu corpo. Senti a magia de Claire me ajudando, me fortalecendo, e minha espada cortava o ar, cada golpe uma tentativa de perfurar, de lacerar, de enfraquecer. Dante também ajudava atacando os tendões e joelhos da monstruosidade.
Mas a criatura era uma muralha de carne morta e ossos. Nossos golpes, embora precisos, apenas arrancavam lascas ou abriam cortes superficiais. Minha lâmina afundava na carne necrosada, mas não encontrava nada vital. O monstro não sangrava, não fraquejava. Movido por pura necromancia, seu corpo retorcido respondia apenas à vontade sombria que o controlava. Cada ataque nosso parecia tão inútil quanto gotas d’água caindo sobre uma pedra.
Meus olhos ardiam, a visão turvando nas bordas. O peso do cansaço e da magia opressiva ameaçava me dobrar, mas não havia tempo para fraquejar. Precisávamos mudar de estratégia.
— O cavaleiro! — gritei, minha voz áspera e rouca, como se cada palavra rasgasse minha garganta. — Temos que derrubar o controlador!
Então, Pandora respondeu, sua voz um sussurro firme:
— Deixa comigo.
Ela se moveu pelas sombras, seus passos leves e calculados. Eu e Dante continuamos a distrair a abominação, nos movendo como uma dupla sincronizada, uma dança mortal em torno dos pés e garras que se moviam, letais.
Fintei um ataque frontal. Vi os olhos mortos da criatura me seguirem, suas garras descendo com velocidade surpreendente. No último instante, rolei para o lado, sentindo o ar zunir onde minha cabeça estivera um segundo antes.
Dante aproveitou a abertura e golpeou novamente a perna da criatura, a lâmina rangendo contra os tendões necrosados.
E então, Pandora atacou.
Com uma agilidade quase felina, ela saltou, agarrando-se à base do cesto onde o cavaleiro cadavérico estava aninhado. As ripas de madeira podre cederam sob o peso dela, estalando como ossos velhos.
O cavaleiro virou-se, sua expressão uma máscara desfigurada de ódio. O cetro em sua mão brilhou com uma luz negra, e ele o brandiu contra ela.
Pandora não se importou. Sua mão se cravou na carne enegrecida do cavaleiro, seus dedos pálidos como garras. O cetro atingiu sua têmpora, e uma explosão de energia sombria estourou ao redor deles.
Um grito abafado escapou de Pandora. Seu corpo ficou mole, seus olhos reviraram, mas sua mão, como uma âncora, permaneceu cravada no cavaleiro.
O peso dela fez o pequeno trono improvisado se inclinar. O cavaleiro tentou se soltar, as unhas mortas arranhando o ar, mas não havia mais equilíbrio.
Em câmera lenta, vi o corpo de Pandora puxá-lo para baixo. Eles caíram juntos, uma colisão entre o que restava de vida e o que era apenas morte animada.
O chão tremeu, poeira e ossos se espalhando.
O impacto do corpo de Pandora contra o chão reverberou pela sala, um som seco e final. O cavaleiro cadavérico, arrancado de seu pedestal grotesco, caiu ao seu lado, suas vestes esfarrapadas se espalhando como asas negras. Por um momento, o silêncio reinou, quebrado apenas pela respiração ofegante de todos nós.
Dante avançou e separou a cabeça do cavaleiro com um golpe de espada. Senti o fluxo de miasma ligando ambas criaturas se dissolvendo.
A abominação, privada de seu mestre, hesitou, seus membros disformes tremendo em espasmos. Sem a orientação direta do cavaleiro, ela parecia perdida, como um fantoche cujos fios haviam sido brutalmente cortados. A ausência da mente que a guiava transformava a criatura em um amontoado de carne morta e ossos que não sabia mais como existir. Mas aquela quietude era uma falsa segurança. Sabíamos o que viria em seguida.
Em instantes, a abominação entraria em frenesi, como a anterior. Sem controle, seu corpo titânico se tornaria uma tempestade de ossos pontiagudos e carne corrompida, esmagando tudo ao redor.
Eu não podia desperdiçar aquela chance.
— Dante, acabe com ela! — minha voz saiu rouca, o gosto de sangue e pó amargo na boca.
Dante não hesitou. Seus músculos responderam antes mesmo que o comando deixasse meus lábios. Ele avançou, a espada cortando o ar, sua lâmina uma promessa de destruição. Cada golpe desferido contra a criatura era uma melodia brutal, o som do aço encontrando a carne pútrida e ossos deformados.
Aproveitei o impulso, a hora era agora. Minha mente se concentrou, e o miasma respondeu ao meu chamado. Ondas sombrias serpentearam ao redor das pernas da abominação, enrijecendo seus músculos mortos e prendendo suas articulações. Se conseguíssemos mantê-la imóvel, teríamos uma chance de acabar com ela antes que o frenesi começasse.
Claire aproveitou o movimento, seus feitiços cruzando o ar como meteoros. Mísseis mágicos e esferas explosivas colidiam contra o monstro, cada impacto uma explosão de luz e sombras. O chão tremia sob nossos pés, as paredes da sala ressoando com o eco dos feitiços.
Joaquim, mesmo ferido, com apenas um braço funcional, lutava com a fúria de um homem sem nada a perder, lágrimas escorriam em seu rosto, que era uma máscara de ódio e determinação, cada golpe uma vingança por Joana.
A espada de Dante cortava e cortava, seus golpes incessantes abrindo fendas na carne necrosada. Eu me movia ao redor da abominação, minhas lâminas procurando por pontos frágeis, meu miasma tentando penetrar na mente selvagem da criatura.
Subi nas costas do monstro, usando protuberâncias ósseas e carne enrijecida como apoios. O fedor de morte e podridão queimava minhas narinas, mas continuei, o foco consumindo qualquer outro pensamento.
Com um grito, cravei minha espada na base de seu crânio. O aço encontrou resistência, mas meu ódio e minha determinação romperam qualquer barreira.
A abominação estremeceu. Seus membros se moveram em espasmos descontrolados, e então, como uma torre sendo demolida, seu corpo colapsou. O impacto sacudiu o chão, uma onda de choque que fez pedras caírem do teto e o ar se encher de poeira.
Silêncio.
Minha respiração vinha em arfadas, cada inspiração um esforço. Minha visão dançava nas bordas, mas eu me forcei a permanecer de pé. Não havia tempo para fraquejar.
Corri para onde Pandora estava.
Seu corpo estava mole, os olhos semicerrados, mas o movimento fraco de seu peito indicava que ela ainda estava conosco.
— Pandora… — chamei, minha voz um sussurro rouco. Minha mão encontrou seu ombro, o calor de sua pele uma fagulha de esperança. — Fique comigo.
Ela piscou lentamente. Os lábios se moveram, formando palavras sem som. Sua respiração era rasa, mas ela estava ali. Sua consciência flutuava na borda entre o mundo dos vivos e o abismo da morte.
Apoiei Pandora com cuidado no chão, meus dedos trêmulos afastando os fios de cabelo sujos de sangue de seu rosto. Seu semblante, mesmo pálido e machucado, ainda mantinha a bravura que sempre admirei nela.
Eu olhei ao redor, meus olhos varrendo o campo de batalha. Meus amigos estavam espalhados pelo chão, cada um carregando marcas dessa luta brutal. Minha família. Minha responsabilidade.
O sangue manchava tudo, do chão, às paredes, nossas roupas e pele. O cheiro metálico e o gosto amargo na boca me lembravam de cada golpe, de cada sacrifício. A exaustão pesava nos meus ossos, uma âncora tentando me arrastar para o chão frio e manchado de sangue.
Mas eu não cedi.
— Conseguimos… — murmurei, as palavras saindo sem que eu notasse. Minha voz soava oca, distante. — Mas… a que custo?
Pandora estava deitada, o peito subindo e descendo lentamente, viva, mas à beira do colapso. Aiden permanecia imóvel, mas seu peito ainda se movia, um fio de esperança. Rosa, mesmo coberta de ferimentos, mantinha a expressão dura e os olhos cheios de determinação. Dante limpava sua espada, os ombros caídos pelo cansaço, mas a postura firme.
Claire estava próxima, ajoelhada. Seu rosto estava pálido, o suor colando os cabelos à testa. Suas mãos ainda brilhavam com os últimos resquícios de mana, mesmo que seu corpo tremesse de esgotamento. Ela mantinha a magia ativa, como se pudesse mudar o inevitável, mesmo quando tudo nela parecia prestes a ceder.
Joaquim estava encostado em uma coluna destroçada, o ombro esquerdo encharcado de sangue. Sua respiração era irregular, o rosto contorcido em dor, mas seus olhos não perderam o brilho feroz. Os nós dos dedos brancos pela força com que os apertava.
E então, meus olhos pararam em Joana.
Ela estava caída próxima à parede, o corpo torcido em um ângulo antinatural. Seus membros estavam quebrados, a cabeça caída para o lado, os olhos vítreos mirando o vazio. Havia algo profundamente errado na forma como seu corpo repousava, como se a própria morte tivesse se enraizado ali, naquelas articulações tortas e na pele sem cor.
Victor estava mais adiante, deitado de lado. Sua expressão era de surpresa, talvez dor, os olhos abertos, mas sem vida. Ele parecia ter caído no meio de um movimento, interrompido por um golpe que nem teve tempo de perceber.
Um nó se formou na minha garganta.
A realidade pesava, esmagando o pouco de esperança que eu ainda tinha.
Mas eu não podia cair. Não ainda.
O silêncio era quase palpável, apenas quebrado pelas respirações entrecortadas e o gotejar do sangue sobre o chão de pedra.
No fundo do meu ser, uma certeza sombria se agitava. Aquela vitória, marcada por mortes e ferimentos, era apenas o início do que nos esperava.
Aquilo não era o fim.
Apenas o começo.
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