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    Olhei ao redor. Meus amigos estavam todos arrebentados e feridos, física e emocionalmente. O ar denso da sala pesava em meus pulmões, cada respiração parecia mais difícil do que a anterior.

    Joaquim estava encostado em uma coluna destroçada, o ombro ferido ainda sangrando. Seu olhar vagava pelo vazio, perdido, sem foco. Sua prima e noiva, Joana, estava caída não muito longe dele. O corpo dela estava torcido em um ângulo impossível, os ossos quebrados e a pele pálida. Mesmo sabendo que o noivado era apenas uma formalidade, que Joaquim não nutria sentimentos românticos por ela, eu podia ver o luto nos olhos dele. Uma dor silenciosa, crua.

    Aiden, normalmente tão enérgico, estava parado, quase imóvel. Sua respiração era rasa, como se ele tivesse esquecido como puxar o ar para os pulmões. Victor, seu melhor amigo, estava morto aos seus pés. O peito afundado e a expressão de espanto congelada no rosto de Victor contavam a história de uma morte rápida, mas terrível. Para Aiden, aquilo era mais do que uma perda, era a perda de uma parte de si mesmo.

    Eu queria dizer algo, qualquer coisa que pudesse aliviar a dor deles. Mas que palavras poderiam suturar feridas tão profundas? Eu mesmo sentia a ausência deles latejando em meu coração. Cada morte era uma lâmina cravada em mim, uma lembrança dolorosa do preço que pagamos. Para mim, não importava se a lógica dissesse o contrário, suas mortes pesavam como minha culpa. Era um fardo frio e implacável, sussurrando que eu deveria ter feito mais, sido mais, e que, de alguma forma eu deveria ter impedido isso.

    Mas não havia tempo para lamentar. A batalha podia ter sido vencida, mas a guerra continuava ao nosso redor, invisível, mas pulsante. Não sabíamos o que acontecia no coração da arena, nem o que aguardava nas ruas lá fora. Meu pressentimento dizia que o caos reinava além dessas paredes, que essa era apenas a ponta do iceberg de desespero que se erguia sobre Thallanor.

    Eu precisava decidir o que fazer.

    Olhei para meus amigos, para o que restava de nós. Claire, exausta, ainda lutava para manter Pandora estável. Rosa, mesmo ferida, continuava vigilante, a mão firme no punho de sua espada. Dante limpava a lâmina ensanguentada, o rosto marcado pela dor e pela determinação.

    Engoli em seco.

    — Precisamos nos reagrupar — minha voz soou rouca, mas firme. — Cuidar dos feridos e descobrir o que está acontecendo lá fora.

    Eles me ouviram. Eles sempre me ouviam.

    Mas eu sabia que a liderança era um fardo pesado, e naquele momento, parecia que o peso do mundo inteiro estava sobre meus ombros.

    Mesmo assim, eu não podia ceder.

    Porque se eu caísse, eles cairiam também.

    Rosa já conseguia se levantar e veio ao meu lado. Seu rosto estava sujo de sangue seco e fuligem, mas seus olhos ainda carregavam aquela determinação fria que eu sempre admirei.

    — Tenho um estoque de poções no escritório. Malkus, o alquimista-cirurgião da arena, estava no laboratório também. Vamos precisar dele, se estiver vivo.

    Concordei com ela, sentindo o peso da responsabilidade nos meus ombros.

    — Do escritório podemos ver a situação na arena.

    Enquanto falava, me lembrei de Philip. O pequeno familiar ainda estava escondido dentro da minha roupa, aninhado contra minha pele. Com um comando mental, ele deslizou para a palma de minha mão, uma pequena sombra inquieta. Não era hora de esconder meus segredos.

    — Posso descobrir a situação lá fora — afirmei, minha voz soando mais confiante do que eu realmente me sentia.

    Rosa me lançou um olhar avaliador, mas não questionou.

    — Vamos ao meu escritório primeiro. De lá, decidimos o que fazer.

    Olhei para o lobby da entrada, o lugar onde o caos havia começado. Precisávamos impedir que novas criaturas entrassem, ou seríamos esmagados.

    — Essa é a única entrada?

    — Temos mais duas. A do bar e uma que sai direto no meu escritório.

    A notícia me fez cerrar os punhos. Mais pontos vulneráveis, mais riscos.

    — Temos que barrar essas portas. Não podemos ter mais dessas coisas entrando para nos pegar desprevenidos.

    — Concordo — exclamou Rosa, sem hesitação.

    Eu e Dante nos movemos rapidamente. Encostamos as portas duplas que davam acesso ao estacionamento das carroças e carruagens. Uma grande travessa de ferro estava ao lado, enferrujada, mas firme. Com esforço, trancamos as portas por dentro. Pegamos entulho — pedaços da porta interna destruída, fragmentos do chão e das paredes — e empilhamos diante de uma pequena porta lateral, criando uma barreira improvisada.

    O suor escorria pela minha testa, misturando-se à sujeira e ao sangue seco. Troquei um olhar com Rosa, que assentiu, aprovando nosso trabalho.

    A mulher limpou a garganta e falou em um tom imperioso:

    — Vamos todos para meu escritório.

    Joaquim, ainda atordoado, pareceu emergir de sua névoa mental.

    — E eles? — perguntou, apontando com a cabeça para os corpos de Joana e Victor.

    A visão dos corpos fez minha garganta se apertar, mas eu não hesitei.

    — Vamos levá-los conosco — falei, firme.

    Não havia espaço para objeções. Não era apenas um gesto de humanidade, mas também uma precaução. O miasma denso no ar fazia minha pele arrepiar, um lembrete constante do perigo. Se deixássemos os corpos ali, poderiam voltar como mortos-vivos, marionetes de carne sob o controle daquele poder sombrio.

    Eu não permitiria isso. Não deixaria suas lembranças serem maculadas dessa forma.

    Com cuidado, enrolamos os corpos em pedaços das cortinas e tapeçarias arruinadas e os levantamos. Cada passo parecia mais pesado do que o anterior, mas seguimos adiante. Não havia outra escolha. Joaquim levava Joana, Aiden carregava Victor, e eu, Pandora.

    Chegamos ao escritório sem grandes complicações. Alguns zumbis perambulavam pelos corredores, mas não eram páreo para Rosa. Mesmo ferida, sua espada cantava no ar, cada golpe preciso, encerrando as não-vidas rapidamente.

    Em um dos sofás, deitei Pandora. Seus olhos se moviam sob as pálpebras fechadas, como se estivesse presa em um sonho do qual não conseguia despertar. Havia uma aura perceptível ao seu redor, uma névoa de miasma que apenas eu parecia ver. Uma ideia insana começava a se firmar em minha mente.

    Os corpos de Joana e Victor foram depositados em um canto, junto à parede. Claire estava encolhida no chão, as mãos cobrindo o rosto enquanto lágrimas escorriam, deixando trilhas límpidas na sujeira incrustada em sua pele.

    Aproximei-me dos corpos, o ar ao redor deles pesado e estagnado. O miasma se acumulava nos tecidos, nas feridas abertas, ameaçando corromper o pouco de paz que lhes restava. Com meu controle sobre aquela energia sombria, criei uma barreira, impedindo que o miasma invadisse seus corpos. Era o mínimo que eu podia fazer por eles naquele momento.

    Rosa saiu por uma porta lateral e retornou em poucos instantes.

    — Pronto. Fechei o caminho para o lado de fora. Só falta barrar o acesso pelo bar.

    Assenti, o cansaço ameaçando me derrubar ali mesmo. 

    — De onde podemos ver a arena?

    Rosa fez um gesto para que eu a seguisse. Atravessamos um corredor estreito e subimos uma pequena escadaria que levava a um camarote na área VIP. Assim que alcançamos a janela, meu coração apertou no peito.

    Lá embaixo, a arena era um cenário de pesadelo.

    Corpos, uma multidão deles, espalhados pelo chão manchado de sangue, em pilhas. De onde estava, o cheiro pútrido já era insuportável, só podia imaginar como estava lá embaixo. As poucas criaturas decrépitas que ainda vagavam entre os escombros eram eliminadas rapidamente pelos gladiadores que ainda restavam de pé. Uma parte dos espectadores se espremiam nos cantos, protegidas por poucos gladiadores.

    Não havia sinal de Germano, Gérard ou Domina, mas eu vi Marreta e Marius entre os gladiadores que organizavam as coisas lá embaixo. Aparentemente, a horda tinha sido contida, mas não sem um grande custo. De onde eu estava podia ver vários corpos com as roupas chamativas de um gladiador. Poucos, menos de uma dúzia perambulavam ali, como se estivessem perdidos. Em alguns lugares, focos de incêndios, já controlados ainda queimavam, soltando uma fumaça densa e preta.

    Notei que em determinados momentos algum corpo convulsionava e voltava a se mexer. Era efeito do miasma.

    O cheiro de carne queimada e o eco de gritos chegavam até nós, diminuídos pela distância, mas não menos angustiantes.

    Involuntariamente, prendi a respiração, o terror gelando meu sangue.

    — Isso… Isso é um massacre — murmurei, as palavras escapando quase sem som.

    Rosa apertou o cabo de sua espada, os nós dos dedos esbranquiçados.

    Olhei para Rosa, meus olhos suplicando sua compreensão.

    — Por favor, guarde segredo, mas é para nosso bem.

    Ela arqueou uma sobrancelha, mas não questionou. Havia mais urgência do que desconfiança em seu olhar.

    Fechei os olhos e me concentrei. O miasma se movia ao meu redor como uma maré escura, uma sombra viva que banhava cada cadáver, pronta para reanimá-los. Se eu não fizesse nada, continuaríamos presos em uma luta sem fim, esmagados pela exaustão e pelo número crescente de inimigos.

    Busquei o miasma que repousava em meu núcleo, uma centelha sombria que, se alimentada, poderia se tornar uma chama devoradora. Expandi minha percepção, puxando cada fio de energia negra em direção a mim.

    A princípio, o miasma resistiu, serpenteando ao redor dos corpos, grudando nas paredes, mas então cedeu, atraído pela minha presença. Era como beber veneno. Cada nova onda de energia sugada parecia pesar mais em meu peito, corroendo minhas forças.

    Mas eu não podia parar.

    Os corpos que antes convulsionavam começaram a se aquietar. As sombras que se erguiam deles murcharam, desvanecendo-se na poeira ensanguentada da arena.

    Senti o chão sob meus pés tremer. Talvez fosse o mundo, talvez fossem apenas meus joelhos fraquejando.

    Finalmente, abri os olhos. O ambiente parecia mais claro, como se uma névoa espessa tivesse se dissipado.

    Rosa ainda estava ali, seu rosto sério, mas seus olhos refletiam algo próximo à esperança.

    — Está feito — sussurrei, minha voz saindo rouca.

    — Não vou perguntar nada agora — disse ela, me oferecendo o ombro como apoio.

    Apoiando parte do meu peso nela, senti o chão mais firme sob os pés.

    — Precisamos descobrir se Malkus está vivo lá embaixo. Ele pode nos ajudar.

    Concordei. Iríamos precisar de toda a ajuda possível para superar aquele pesadelo.

    — Vou descer — continuou Rosa. — Preciso organizar as coisas ali embaixo.

    Hesitei por um instante, mas sabia que ela estava certa.

    — Vou voltar para o escritório ver se meus amigos precisam de alguma coisa. Assim que puder, te encontro lá embaixo.

    Ela assentiu, seu olhar determinado.

    — Se cuida.

    Assim que Rosa desapareceu pelo corredor, respirei fundo. Ainda havia muito a fazer, mas cada pequena vitória era uma fagulha na escuridão.

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