Índice de Capítulo

    A enfermaria era um reflexo do caos que assolava o Matadouro. Os colchões e lençóis haviam sido levados para a arena, deixando o espaço nu e frio, com apenas as estruturas metálicas das macas remanescentes. O cheiro de sangue seco e ervas medicinais impregnava o ar, misturando-se à poeira que dançava nas faixas de luz que escapavam por uma janela quebrada.

    Pandora estava deitada em uma das macas, o rosto pálido e imóvel, como uma boneca abandonada. Seus cabelos loiros, sempre tão vibrantes, agora estavam embaraçados e sujos, uma mecha grudada na testa úmida. Eu me sentei em uma das outras macas, o ranger do metal soando alto na quietude.

    Os minutos se arrastavam, e eu não fazia nada além de olhar para ela, tentando acalmar minha mente. Precisava organizar meus pensamentos, buscar dentro de mim a coragem necessária para o que estava prestes a fazer.

    Finalmente, respirei fundo, o ar pesado preenchendo meus pulmões. Saltei da maca, meus pés tocando o chão gelado.

    — Vamos lá, seja o que a névoa quiser… — murmurei, minhas palavras se dissipando no silêncio.

    Aproximei-me de Pandora, meus passos quase silenciosos. Coloquei minha mão espalmada em sua testa, sua pele fria enviando um arrepio até meu ombro.

    Fechei os olhos e me concentrei. Tentei acessar seu oceano de mana do modo convencional, como já havia feito antes, mas as portas estavam fechadas para mim. Era como tentar abrir uma porta trancada do outro lado, cada tentativa ecoando em vão.

    Mudei de tática. Ao invés de usar minha mana, deixei o miasma em meu núcleo corrompido fluir. Era uma sensação diferente, como se mergulhasse em águas escuras e viscosas, o frio me envolvendo de dentro para fora.

    Lentamente, senti minha consciência se infiltrar nas proteções que o cavaleiro cadavérico havia colocado na mente de Pandora. Era como atravessar uma muralha vestindo o uniforme do inimigo. O miasma me camuflava, fazendo com que a magia me percebesse como parte dela.

    O interior da mente de Pandora era um mar revolto. Seu oceano de mana, normalmente azul e cristalino, agora estava coberto por nuvens pesadas e tempestuosas. Raios cruzavam o céu escuro, e o som do trovão reverberava como um coração descompassado.

    Abaixo, as águas ondulavam em padrões erráticos e violentos. Cada onda parecia prestes a colapsar sobre si mesma, como se o próprio mundo interior dela estivesse à beira da ruína.

    No centro daquele caos, vi a representação da consciência de Pandora. Ela parecia uma criança pequena, com bochechas rosadas e cabelo loiro luminoso. Não devia ter mais de cinco anos. Flutuava dentro de uma redoma transparente, adormecida. De tempos em tempos, sua mãozinha ou um pé se moviam, como se lutasse contra um pesadelo do qual não conseguia despertar.

    Aproximei-me da redoma, meu miasma envolvendo o vidro translúcido. Infundi a energia sombria contra a barreira, e rachaduras começaram a se formar, espalhando-se em padrões caóticos.

    Com um estalo seco, a redoma se partiu, os fragmentos desaparecendo no ar como cinzas ao vento. Antes que eu pudesse tocar a garotinha, algo me puxou com força.

    O mundo ao meu redor se desfez, e de repente, eu estava em outro lugar. Uma escuridão enevoada me envolvia, o chão inexistente, o céu oculto. A sensação era sufocante, como se eu estivesse preso entre o mundo real e o pesadelo.

    Fechei os olhos novamente, buscando minha localização. Senti a presença da mana de Pandora, uma chama fraca e oscilante em meio à escuridão.

    Eu sabia que estava em um mundo de sonhos — ou, talvez, de pesadelos. Mas aqui, a lógica se torcia, o tempo se dilatava e a própria realidade parecia escorregar pelos meus dedos.

    Concentrei-me. Se era um sonho, eu podia voar.

    E foi o que fiz.

    A escuridão se dissipava conforme eu avançava, e um brilho surgiu no horizonte, fraco, mas chamativo. Segui seu chamado até que, de repente, estava ali, como um fantasma, observando uma garotinha loira.

    Mesmo sem entender como, eu sabia o que acontecia. Não era apenas um sonho, era uma memória.

    A menina se esgueirava por uma passagem escondida e esquecida na mansão imperial — não a da capital, Thallanor, mas a da ilha da família. Estava brincando com os primos e outras crianças, procurando o esconderijo perfeito. Estranhamente, naquele dia, não havia guardas ali.

    Ela avançava por corredores apertados e empoeirados, um mundo secreto dentro da grandiosidade da mansão. Ao passar por uma passagem estreita, alguns tijolos se soltaram, e, num instante, o chão cedeu sob seus pés. A garotinha caiu por um buraco oculto, rolando desajeitada por um declive de pedra.

    Parou alguns metros abaixo, com o cotovelo e o joelho ralados. Sem ninguém por perto para vê-la, não chorou. Apenas esfregou a dor embora, contendo o desconforto. Foi então que ouviu vozes.

    Franziu a testa. Aquele lugar era uma ala esquecida da mansão. Ninguém deveria estar ali.

    Sentindo um instinto estranho, talvez uma intuição de perigo, seguiu em silêncio, esgueirando-se até onde as vozes soavam.

    O corredor se abriu em uma sala circular, de pé-direito altíssimo e abóbada escura. Colunas largas e imponentes se erguiam ao redor, formando um anel. No centro da sala, havia algo ainda mais estranho.

    Uma jaula.

    Não era uma cela comum. As barras brilhavam com runas arcanas, e o chão, encravado na pedra, ostentava um círculo mágico de complexidade assustadora. A garotinha engoliu em seco, sentindo um medo profundo do que estava preso ali.

    Dentro da jaula, havia uma mulher.

    Ela era linda, etérea, quase irreal. Os cabelos lisos e brancos desciam como fios de seda, sua pele era alva como porcelana, e os olhos tinham um tom rosado incomum. A boca, pequena e vermelha como um botão de flor, não sorria.

    Diante da jaula, uma figura diferente se aproximava. Uma pessoa muito idosa, magra como uma vareta, as costas curvadas, e um coque grisalho e apertado no topo da cabeça. A garotinha nunca tinha visto aquela anciã antes.

    Foi a mulher presa quem falou primeiro. Sua voz era doce e melodiosa, mas carregava um peso oculto.

    — Veio para que eu lesse sua sorte novamente, minha filha? — disse, com um tom quase divertido. — Não acho que tenha mudado muita coisa.

    A velha não pareceu gostar da provocação. Respondeu com uma voz áspera, arrastada como areia seca.

    — Não. Não quero saber minha sorte. Quero mais tempo. Quero poder forjar meu próprio futuro. — A voz da anciã tremeu por um instante, mas logo recuperou sua firmeza. — Sou a única que sabe da sua existência… e se eu simplesmente deixasse de vir? — Sua ameaça pairou no ar como uma lâmina afiada.

    A mulher na jaula soltou uma risada cristalina, que ecoou pelas colunas da sala esquecida.

    — Você? — zombou, arqueando uma sobrancelha. — A arrogante que acredita ter todas as respostas? Você nem sequer compreende a verdadeira história do seu próprio mundo. O sacrifício de Mahteal e Malena para domar as Névoas… — Seus lábios se curvaram em um sorriso mordaz. — Quanto a deixar de me ver… acho que precisa de mim muito mais do que eu de você.

    Os olhos rosados se estreitaram, cintilando com diversão cruel.

    — Você se apaixonou mesmo pelo seu bisneto, não é? — Sua voz era um sussurro venenoso, escorrendo como veneno pelas sombras da sala. — Nunca imaginei que ainda houvesse um coração batendo nesse peito… sempre tão fria, tão calculista.

    Os olhos rosados brilharam com malícia.

    — Mais morta que um cadáver ambulante. Mais vazia que eu… que sou uma morta-viva.

    A idosa ajoelhou-se diante da jaula, os dedos ossudos pressionando o chão frio.

    — O velho escolheu Arturus como sucessor. Prefere aquele idealista ingênuo a Juliani. — Sua voz carregava uma fúria contida. — Não posso permitir isso. Juliani será o novo Imperador… e eu reinarei ao seu lado.

    A mulher na jaula riu, um som doce e perverso ao mesmo tempo.

    — Que ambição patética… — murmurou, e desta vez, sua voz carregava uma crueldade afiada. — Acha mesmo que ele vai se interessar por uma velha decrépita? Ou que a família permitirá isso? — Seus olhos rosados brilharam com malícia. — Ele já não tem uma esposa?

    A anciã rosnou, sua postura curvada tornando-se ainda mais rígida.

    — Eu tenho impedido aquela vagabunda e as putas que rondam sua cama de engravidar. — Seu tom transbordava desprezo. — Só eu darei um herdeiro a ele.

    A mulher na jaula sorriu, mas não de maneira gentil.

    — Com esse útero mumificado…? — zombou, inclinando a cabeça. — Não me faça rir.

    A anciã cerrou os punhos, sua frustração evidente.

    — É por isso que preciso de você. — Sua voz era um sussurro tenso. — Você tem o conhecimento. Você permaneceu bela e perfeita por mais de quatrocentos anos.

    Atrás da coluna, a garotinha sentiu um arrepio percorrer sua espinha. O que aquela velha estava dizendo? Quem era essa mulher na jaula? E como podia ter vivido por tanto tempo? Por que falavam de Arturus, seu pai?

    O silêncio entre as duas se alongou, carregado de intenções ocultas.

    A mulher na jaula inclinou-se ligeiramente para frente, avaliando a anciã com um olhar divertido.

    — Então é isso. Você quer fazer um pacto.

    A idosa hesitou por um momento, mas então avançou lentamente, sua respiração pesada e entrecortada.

    — Sim. Um pacto.

    A mulher na jaula observava cada movimento com olhos afiados, como uma predadora se deliciando com a submissão de sua presa.

    — Mulheres apaixonadas são mesmo fascinantes… capazes de tudo por um pouco de poder, por uma ilusão de controle. — Seu sorriso se alargou, e ela ergueu uma das mãos pálidas, os dedos longos e delicados se estendendo para além das barras. — Venha… aproxime-se.

    A anciã engoliu em seco, seus olhos brilhando com uma mistura de desejo e receio.

    Atrás da coluna, a garotinha apertou os joelhos contra o peito, o coração martelando no peito. Ela não entendia tudo o que aquelas palavras significavam, mas sentia, instintivamente, que estava diante de algo proibido… e perigoso.

    A idosa se aproximou, o rosto quase colando nas barras da jaula.

    — Mais perto… — sussurrou a mulher pálida, sua voz um convite e uma armadilha.

    A anciã obedeceu, inclinando-se um pouco mais.

    Foi rápido demais. Um gesto súbito, um movimento tão veloz que o olho mal podia acompanhar. A mulher pálida enfiou o dedo indicador no peito da velha.

    Não houve grito. Nem resistência. Apenas um instante congelado no tempo.

    E então, o corpo da prisioneira caiu no chão com um barulho seco.

    A idosa ficou parada, erguendo as mãos lentamente, como quem se espreguiça após um longo sono. Depois, levou os dedos à cintura e estalou as costas, um som alto que ressoou no silêncio da câmara.

    Seus cabelos começaram a escurecer. O grisalho deu lugar ao negro lustroso da juventude. Ela ergueu uma mão até o coque apertado e puxou os fios para soltá-los, permitindo que caíssem em cascata por suas costas — agora volumosos, brilhantes… vivos.

    A transformação era hipnotizante e aterrorizante.

    Quando ela se virou para sair, um arrepio subiu por minha espinha.

    O rosto que agora usava não era mais o da idosa.

    Era o rosto de Annabela, a concubina de Juliani, o Imperador.

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