Capítulo 109: O sonho de Pandora (2)
A garotinha loira espiava por detrás das pilastras, o pequeno corpo tremendo diante da cena que se desenrolava à sua frente. O cheiro de sangue e carne queimada pairava no ar, pesado, sufocante. Ela não entendia exatamente o que havia acontecido, mas seus instintos gritavam que era perigoso. Muito perigoso.
Sua mente infantil, em um esforço desesperado para se proteger, recusava-se a processar as imagens diante de seus olhos. O horror era grande demais. Tudo parecia distante, como se estivesse vendo através de um véu turvo. Mesmo agora, só conseguia revisitar aquele momento por causa da magia do cavaleiro cadavérico, que arrancava essas memórias do fundo de sua consciência e as forçava a tomar forma novamente.
E, conforme ela revivia o passado, eu percebia que a mana ao seu redor começava a enfraquecer. A lembrança cobrava um preço.
E eu, preso à minha forma fantasmagórica, nada podia fazer além de assistir enquanto a lembrança se desenrolava diante de nós.
Então, o mundo ao redor mudou.
A câmara sombria desapareceu, e, de repente, eu estava dentro de uma carruagem luxuosa, sacolejando suavemente pelas estradas pavimentadas do império. O interior era bem iluminado, forrado com veludo carmesim, e os assentos eram largos o suficiente para acomodar confortavelmente a família ali presente.
À minha frente, um homem de cabelos castanhos e barba cerrada exibia feições altivas e nobres. Seus olhos azuis brilhavam com inteligência e um toque de orgulho contido. Ao seu lado, sentava-se uma mulher de beleza radiante. Devia ter pouco menos de trinta anos, os longos cabelos loiros formando cachos volumosos que desciam até os ombros. Seus olhos verdes eram profundos, expressivos, e seus lábios traziam um sorriso sincero, daqueles que aquecem o coração.
No banco à frente deles, duas crianças brincavam entre si. A menina, loira como a mãe, herdara os mesmos olhos verdes intensos e carregava uma postura naturalmente curiosa. O menino, um pouco mais novo, lembrava o pai, seus cabelos castanho e um olhar astuto, perspicaz demais para a pouca idade. Eles se cutucavam e provocavam, rindo baixinho, imersos em uma brincadeira só deles.
Da última visão até agora, a menina havia crescido. Eu estimava que ao menos três anos tinham se passado desde então.
A mulher pousou a mão sobre a perna do marido e sorriu.
— Você está radiante, querido — disse, com ternura. — Sabe de algo que a gente não saiba?
A garotinha coçou a cabeça, como se tentasse lembrar de algo importante, mas logo voltou a brincar com o irmão, como se o pensamento lhe escapasse pelos dedos.
O homem respirou fundo antes de responder.
— Minha nomeação como sucessor será anunciada em breve — revelou, sua voz carregada de expectativa e seriedade. — Talvez no mês que vem.
A mulher arregalou os olhos por um instante, mas logo seu sorriso se alargou, e ela apertou com força a mão do esposo.
— Isso é maravilhoso, Arturus! — exclamou, a felicidade transbordando em cada palavra.
Ele retribuiu o aperto, um brilho de satisfação passando por seus olhos.
Então, um solavanco repentino fez a carruagem estremecer, jogando as crianças ao chão.
— Cuidado com a condução! — gritou Arturus para o cocheiro, a irritação evidente em sua voz.
Do lado de fora, o trotar dos cavalos soou mais descompassado, seguido de um segundo solavanco, mais forte, mais brusco. O riso e a alegria esvaíram-se em um piscar de olhos. A tensão caiu sobre os ocupantes da carruagem como uma nuvem pesada.
Arturus afastou o cortinado e colocou a cabeça para fora. Seu rosto, ao retornar, estava pálido como a morte.
Ele virou-se para a esposa, e a voz que saiu de sua boca não era a de um homem prestes a ser coroado. Era a de alguém que sabia que estava prestes a morrer.
— Vieram me pegar.
Seus dedos apertaram o punho da espada ainda embainhada.
— Segure as crianças.
A mulher obedeceu sem questionar. Num único movimento, puxou os pequenos para seus braços, protegendo-os com o próprio corpo. O menino começou a chorar, sentindo o perigo mesmo sem entendê-lo. A garotinha, por outro lado, ficou séria. Seus bracinhos finos envolveram o irmão, abraçando-o com força, como se pudesse protegê-lo de algo que nem ela compreendia.
Arturus respirou fundo.
Então, sem hesitar, abriu a porta da carruagem e se jogou para fora, desembainhando sua espada no ar.
Tentei me afastar, tentar enxergar além, mas estava preso à lembrança da garotinha, vendo tudo através de seus olhos, meu universo era o interior restrito da carruagem. A visão tremia, indistinta, mas o medo, a impotência e o horror eram nítidos.
De repente, o mundo girou. Não, não era o mundo. Era a carruagem que capotava, jogada ao caos. O rangido ensurdecedor da madeira se partindo misturava-se aos gritos abafados e ao estrondo de corpos e destroços colidindo contra o chão. Cada volta roubava um pedaço da carruagem, reduzindo-a a tábuas quebradas e ferros retorcidos.
No centro da destruição, a mãe envolvia os filhos em seu abraço, protegendo-os com o próprio corpo. Mas uma ponta de ferro afiada atravessou sua barriga, saindo em suas costas, cravada fundo em sua carne. O sangue empapava suas roupas, escorrendo quente sobre os pequenos. Ainda assim, ela sorria para eles. Seu rosto estava pálido, a dor devia ser insuportável, mas seu sorriso não vacilava. Como se, de alguma forma, aquele gesto pudesse protegê-los mais do que seu próprio corpo agonizante.
Então, um urro dilacerante rasgou o ar. Era o grito de um pai diante do perigo iminente para sua família.
Arturus rugia.
Sua voz não formava palavras, apenas um brado de puro desespero e fúria. Eu não precisava vê-lo para saber que estava lutando, mas agora, livre da limitação que me restringia, pude ver a cena que se revelava por completo.
Vários mortos-vivos cercavam os destroços, seus corpos retorcidos se movendo de forma errática. Pelo caminho, um rastro de cadáveres esmagados pelo capotamento marcava a estrada como um aviso sombrio do caos que se desenrolava. No centro da carnificina, dois gigantes de carne costurada avançavam sobre Arturus.
Quimeras grotescas, costuradas a partir dos restos de inúmeras criaturas. Seus corpos eram um mosaico profano de ossos expostos, peles remendadas e membros desalinhados, movendo-se com uma força absurda, como se alguém as tivesse moldado para a carnificina e a matança. Pareciam versões inacabadas das abominações que enfrentamos na entrada do Matadouro, mas sem um cavaleiro para guiá-las. Agiam com um instinto voraz e caótico, mais brutais do que estratégicas, apenas feras criada para dilacerar e destruir.
Ao longe, no topo de uma colina, uma mulher de cabelos negros e um homem de fios grisalhos observavam a cena em silêncio. Permaneciam imóveis, como se fossem apenas espectadores de um espetáculo cruel.
Arturus rugiu e atacou. Sua espada traçou um arco feroz, um golpe desesperado, alimentado mais por fúria do que estratégia. A lâmina abriu uma das criaturas do peito ao ventre, partindo-a ao meio. Mas o movimento, impetuoso e imprudente, o expôs.
A outra quimera não hesitou.
Suas garras desceram com força brutal, rasgando as costas de Arturus em dois cortes profundos. O impacto o fez cambalear para frente, o sangue jorrando em uma torrente quente. Ele tentou se virar, mas a dor o paralisou por um instante.
Enquanto isso, a mãe ainda segurava as crianças, seus braços ao redor delas como se pudesse impedir que o horror as alcançasse. Mas sua força esvaía. O sangue formava uma poça cada vez maior sob seu corpo, e seus dedos começavam a ceder.
Foi quando o garotinho escapou de seu abraço.
Seu rosto estava molhado de lágrimas e respingos de sangue, mas sua expressão era pura determinação. Ele viu o pai tombando, viu o monstro se aproximando, e não pensou duas vezes.
Soltou um grito agudo, infantil, mas carregado de raiva e medo, e correu em direção à criatura. Pequeno demais para lutar, frágil demais para fazer frente àquilo, mas na sua mente, isso não importava. Seu pai estava em perigo. E ele faria qualquer coisa para protegê-lo.
Pandora percebeu tarde demais.
Ela se lançou atrás do irmão, a mão estendida, os pés batendo com força no chão, mas os segundos que os separavam foram fatais.
Ela não conseguiu alcançá-lo a tempo.
A garra da criatura desceu sobre o pequeno com força brutal. O impacto foi seco, definitivo. Sangue quente espirrou em todas as direções, salpicando o rosto delicado de Pandora, que ainda corria em vão. Seus olhos se arregalaram, mas nenhum som saiu de sua boca, o choque era grande demais até para um grito. Ela estacou. Sua mãe, Gritou com as forças que lhe restavam.
Arturus viu.
E, sem hesitar, lançou-se para proteger a filha. Seu corpo se interpôs entre ela e a monstruosidade no último instante. As garras da criatura o atravessaram, perfurando carne e osso, erguendo-o por um instante como se fosse um mero obstáculo em seu caminho.
Mas ele não caiu.
Seu corpo tremia, sua respiração era um gemido entrecortado de dor, mas ele ainda estava ali. Se mantinha de pé apenas pela força de sua determinação, pelo desejo absoluto de salvar o que restava de sua família. Cada segundo que resistia era uma afronta à morte, uma recusa em sucumbir.
Seus joelhos começaram a fraquejar. O sangue escorria de sua boca, tingindo sua barba.
Foi então que Hass apareceu.
Surgiu como um vulto na lembrança, mais jovem do que eu o conhecia, mas já grisalho, e tão letal quanto. Seu olhar era frio, calculista, sem hesitação. Com um golpe preciso e veloz de sua espada, atravessou o crânio da criatura restante. A abominação estremeceu, seus membros se contraíram em espasmos violentos antes de desmoronar, tornando-se apenas um monte disforme de carne morta.
Hass suspirou, limpando a lâmina ensanguentada com um movimento rápido.
— Que bagunça… Isso não deveria ter acontecido assim — murmurou para si mesmo, sua voz carregada de descontentamento.
Então, sem perder tempo, abaixou-se e pegou Pandora nos braços. A menina tremia, os olhos vidrados no horror ao seu redor. Ele a segurou firme, tentando confortá-la.
Antes de partir, seu olhar se desviou para a colina. Lá no alto, a mulher de cabelos negros continuava imóvel, observando tudo com expressão inescrutável. Por um breve instante, seus olhares se cruzaram.
Então, sem uma palavra, Hass se virou e seguiu seu caminho, carregando a pequena consigo.
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.