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    A realidade à minha frente se fragmentou como vidro rachando, dissolvendo-se em ecos e imagens sobrepostas. Em um instante, eu estava diante do horror do passado de Pandora, e no seguinte, vi a garotinha voltar ao início da lembrança. Lá estava ela de novo, se esgueirando pelos corredores da casa, tentando se esconder dos primos. Vi seu pequeno corpo rolando pelo chão até encontrar, por acaso, a entrada para a sala secreta. O ciclo recomeçava.

    — Caramba… ela tá presa nisso… — murmurei, sentindo um nó se formar em minha garganta. Quantas vezes ela já tinha revivido esse pesadelo? Quantas vezes sua mente havia sido arrastada para esse mesmo ponto, revivendo a dor sem escapatória?

    Estendi meus sentidos, buscando sentir o fluxo de sua mana. Fraco. Mais fraco do que antes. Era como se, a cada repetição desse tormento, algo nela estivesse se esvaindo, se dissipando.

    Tinha vindo aqui apenas para testemunhar seus pesadelos? Havia alguma maneira de interromper esse ciclo, de desfazer a magia que a prendia?

    Me concentrei. Mahteal havia me ensinado a alterar magias, a compreender suas estruturas e desmantelá-las, mas minha forma incorpórea aqui me impedia de interagir diretamente com qualquer coisa. Era como se eu fosse um mero observador, incapaz de tocar, de mudar o que quer que fosse.

    Então, lembrei-me dos ensinamentos de Selune. Do conceito do “oceano de mana”, da correnteza que fluía dentro de cada um de nós.

    A ideia me atingiu como um raio.

    E se… e se eu tomasse o controle do oceano dela? Se conseguisse entrar no fluxo de sua mana, talvez pudesse impor minha vontade dentro desse espaço. Se tivesse êxito, não haveria mais barreiras entre mim e o sonho.

    Fechei os olhos e expandi minha percepção. Senti as ondas sutis da mana de Pandora, um rio invisível que se movia ao redor da ilusão. Com cuidado, liberei a minha própria mana, tentando emular o fluxo dela, como se fosse parte de seu próprio ser.

    Por um breve instante, pareceu funcionar.

    Mas então, tudo deu errado.

    Seu corpo reagiu violentamente, como se eu fosse uma doença invasora. Um elemento estranho que precisava ser expelido e destruído.

    Minha mente foi inundada pela compreensão aterradora da discrepância entre nossos poderes. Pandora possuía cinco círculos completos em seu oceano de mana. Eu, apenas o início do quarto. A diferença era colossal. O fluxo que veio dela não foi apenas uma rejeição. Foi um ataque.

    E veio para me obliterar.

    A energia me atingiu como um tsunami. Em um instante, fui arremessado para trás, engolido por uma corrente avassaladora que me arrastava sem misericórdia.

    E então, ouvi aquela voz.

    — De novo não… Ahhh!

    Minha contraparte sombria rugiu em fúria.

    A escuridão me tragou, e quando recobrei a percepção, já não estava mais no mundo dos sonhos de Pandora.

    Eu havia regredido ao meu próprio oceano de mana.

    E lá estava ele.

    Minha sombra, minha outra metade, meu espelho distorcido. Ele lutava, os dentes cerrados, os olhos queimando em ódio. Mas não era comigo que ele lutava. Não dessa vez.

    Havia algo mais.

    Uma força avassaladora tentava nos inundar, um fluxo de energia vinda do oceano de Pandora, uma tempestade que ameaçava nos engolfar por completo. Minha contraparte lutava para conter aquilo, para impedir que nos destruísse.

    E então, vi.

    No centro daquele caos, estava A esfera que continha Mahteal.

    A esfera pulsava, cercada por amarras negras e oleosas, algo que eu nunca havia visto antes. Não pareciam naturais, não eram parte da magia original que o havia prendido. Pareciam… enxertadas. Como se alguém, ou algo, tivesse reforçado sua prisão.

    E no entanto, algo ali estava mudando.

    O negrume ao redor de Mahteal estava se fragmentando. Pequenas fissuras deixavam escapar uma luz azulada, pulsante, quase como as batidas de um coração.

    Uma mudança. Uma purificação.

    Minha sombra rugiu, agarrando as amarras como se sua própria existência dependesse daquilo.

    — Não! Você não vai escapar!

    A esfera tremulou, como se estivesse reagindo a algo muito mais profundo do que qualquer magia.

    E então, compreendi.

    Se quisesse salvar Pandora, primeiro precisava me salvar.

    O oceano ao meu redor se revolvia em marés furiosas de escuridão, liberadas pela minha sombra, ondulando como uma fera indomável que sentia o cheiro do sangue na água. O miasma que emanava dele colidia violentamente com a mana de Pandora, que ainda tentava me aniquilar. O choque entre essas forças criava uma tempestade caótica, relâmpagos de energia rasgando o vazio ao nosso redor.

    Do centro desse turbilhão, minha sombra rugiu, sua presença crescendo, alimentada pelo caos.

    — Seu tolo… — sua voz reverberou, fria e cortante como lâmina. — O que foi que você fez dessa vez?

    — Estou tentando salvar Pandora.

    Ele riu. Uma risada amarga e exasperada, como se estivesse ouvindo a confissão de um lunático.

    — Claro que está. — Seus lábios se curvaram num sorriso cruel. — Você sempre acha que pode salvar alguém. Sempre tentando carregar um peso que nem percebe esmagando seus ombros.

    A escuridão ao nosso redor pulsou, como se respondesse ao seu desprezo.

    — Você é um idiota sentimental mesmo! — sua voz trovejou, e o oceano de miasma se agitou ainda mais. — Chega. Já fui muito paciente. Você não vai estragar mais nada!

    De repente, sua presença se intensificou. Uma onda sufocante de energia negativa irrompeu dele, espessa e pegajosa, impregnando cada centímetro do espaço ao nosso redor. Seu corpo cresceu, e cresceu, e cresceu. Dobrou de tamanho, depois triplicou. Sua silhueta se tornou monstruosa, as bordas distorcidas como se o próprio oceano de mana estivesse sendo devorado por sua influência.

    Meu corpo fraquejou. Ele estava assumindo o controle.

    — Droga… — rosnou para si mesmo, franzindo a testa por um breve momento. — Não estou completo. Mandar Selune e Shade além da névoa… foi um erro.

    Seu olhar retornou para mim, e seu sorriso se tornou uma lâmina afiada.

    — Mas isso não importa. — Sua voz pingava veneno. — Você já era, vou fazer bom uso de seu corpo, e das suas doces noivas.

    A pressão aumentou. Meus joelhos ameaçaram dobrar.

    — Eu ia esperar mais um pouco, deixar que as coisas se resolvessem naturalmente… mas já que você insiste em estragar tudo… — Ele ergueu uma mão, garras negras se formando na ponta dos dedos. — Vou resolver isso agora.

    Ele avançou.

    Uma sombra monstruosa, veloz demais para algo tão grande.

    A mão dele se chocou contra meu corpo com a força de uma catapulta, e fui arremessado para trás, o impacto reverberando por toda minha existência. Minha visão se turvou por um instante. O espaço ao redor oscilou.

    Eu não podia vencê-lo. Eu sabia disso.

    Mas, por instinto, ainda tentei reagir. Ainda tentei me erguer, ainda tentei usar minha vontade para moldar o espaço ao meu redor.

    Meu oceano. Minha mana. Minha mente.

    Mas nada mudou.

    Ele riu ao ver minha tentativa.

    — Não adianta, Lior. — Sua voz era pura satisfação. — Depois que absorvi parte de você, esse lugar pertence a nós dois. Você não tem domínio absoluto sobre ele. E só existe uma maneira de me parar.

    Ele sorriu.

    — Me destruir.

    O oceano estremeceu.

    — Mas você não tem força para isso, tem?

    Minha respiração ficou irregular.

    Ele tinha razão.

    Eu só podia fugir.

    E fugir.

    E fugir.

    Eu ordenei a mim mesmo que crescesse, que me tornasse tão grande quanto ele, que me equiparasse à sua força. Mas toda vez que tentava, uma risada cruel ressoava às minhas costas.

    Ele me impedia.

    Cada tentativa minha era negada. Cada esforço, esmagado antes de se concretizar.

    Minha energia estava se esvaindo. Meu corpo, ficando mais fraco.

    Se continuasse assim, eu perderia.

    Mas eu não podia perder.

    Eu precisava de um plano.

    Mas não conseguia pensar.

    Cada vez que tentava alterar algo no oceano, ele antecipava e me esmagava com seu domínio. A verdade cruel era inegável: ele conhecia esse espaço tanto quanto eu. Ele tinha absorvido parte de mim. Não importava o quanto tentasse me expandir, ele simplesmente negava minha autoridade com um pensamento.

    E eu só podia fugir.

    Mas por quanto tempo? Minha energia estava caindo. Aos poucos, minha forma se tornava mais fraca, como se eu estivesse sendo drenado apenas por me manter ali.

    A sombra riu de novo, a voz reverberando por todo o oceano.

    — Olha pra você, Lior. Correndo como um rato encurralado! — A gargalhada de minha sombra ecoou pelo oceano revolto, um trovão cruel que sacudia tudo ao meu redor. — Você se acha um herói? Acha que pode salvar alguém? Sequer consegue salvar a si mesmo!

    As palavras dele eram lâminas afiadas, cortando fundo. A imagem de Joana e Victor atravessou minha mente como um golpe inesperado. O peso da culpa apertou meu peito, um lembrete cruel de como havia falhado. Por um instante, senti o desespero me puxar para baixo, tentando me afogar no oceano sombrio que ele controlava.

    Mas então, outra lembrança emergiu — Selune, Nix, Pandora. Elas precisavam de mim. Ainda havia pessoas que eu podia proteger.

    Eu cerrei os dentes. Tinha que haver uma saída.

    Meus olhos correram pelo caos ao redor, até pararem na esfera negra que aprisionava Mahteal. Uma ideia nasceu em meio ao turbilhão. Minha sombra me perseguia, cega pelo desejo de me destruir. Podia usar isso contra ele.

    Respirei fundo, ajustando minha posição no campo etéreo. Calculei o ângulo certo, a trajetória exata. Então, parei de fugir.

    Girei nos calcanhares para encará-lo.

    Os olhos de minha sombra brilharam com triunfo. Ele veio com tudo, um borrão negro de fúria e destruição. O impacto foi como ser atingido por um meteoro. Cada fibra do meu ser gritava em dor enquanto era arremessado para trás, minha consciência oscilando.

    A esfera negra de Mahteal preencheu minha visão, crescendo rapidamente. A última coisa que ouvi antes de ser engolido pelas trevas foi o grito de pavor de minha sombra.

    — NÃO!

    E então, eu sorri.
     

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