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    Andamos por mais algumas vielas, agora já do outro lado do riacho. A diferença era que ali não havia as choupanas simples que encontramos nas margens. O terreno era desabitado e afastado das vias principais, uma zona morta, onde o abandono e o silêncio dominavam. A chance de encontrar mortos errantes ali era menor, mas não inexistente.

    Marius seguia na frente, atento a qualquer movimento suspeito, enquanto Alana vinha por último, com passos trôpegos. Ela não demonstrava fraqueza, mas eu percebia seu nariz sangrando copiosamente, um filete escarlate escorrendo pelo queixo. De vez em quando, ela perdia o ritmo dos passos e quase caía. O esforço brutal para nos atravessar pela horda cobrava seu preço.

    — Alana, você tá bem? — murmurei, tentando manter o tom baixo para não chamar atenção.

    Ela fez um gesto vago com a mão, como se quisesse afastar minha preocupação.

    — Tô viva, mais ou menos. Dá pro gasto — respondeu, respirando fundo, forçando-se a manter o equilíbrio.

    De repente, Marius virou uma esquina abruptamente e parou, tão de repente que quase colidi com ele. Senti alguém trombando em mim por trás — provavelmente Joaquim — mas nem tive tempo de reagir, pois o anão permanecia imóvel, olhando adiante com expressão grave.

    — O que foi? — sussurrei, seguindo seu olhar.

    Na nossa frente, uma praça ampla se estendia, circular e coberta de ervas daninhas que cresciam entre as pedras rachadas. Quatro estátuas de mármore guardavam uma espécie de mausoléu quadrado no centro, imponentes e austeras, apesar da decadência ao redor. Mas o que realmente chamava atenção não era a estrutura em si, mas a multidão de zumbis que se amontoava contra a porta de pedra, socando e arranhando a superfície maciça com violência frenética.

    Uma centena, talvez mais, lutando desesperadamente para invadir o mausoléu. No meio deles, um colosso montado se destacava, uma massa grotesca de carne costurada e deformada, comandada por um cavaleiro cadavérico. Ele gritava ordens com sua voz cavernosa e arranhada, incitando as criaturas a redobrar os esforços contra a barreira de pedra.

    — Que merda é essa…? — Pandora murmurou, incrédula.

    Com uma nova ordem do cavaleiro, os mortos se afastaram, abrindo caminho para o colosso. A criatura avançou com passos pesados que faziam o chão tremer. Nos últimos três passos, pegou impulso e atirou sua mão grotesca contra a porta.

    Inesperadamente, uma proteção brilhou intensa e reluzente. O impacto foi devastador, mas a barreira resistiu, e o colosso foi arremessado para trás, caindo pesadamente. O brilho desapareceu logo depois, mas os mortos caíram para trás como folhas ao vento, atordoados pelo poder repelente. Um arrepio gelado percorreu minha espinha. Algo dentro de mim reconheceu aquela magia, uma força antiga e protetora que reverberava nas profundezas da minha mente.

    — Os Protetores de Névoa… — murmurei, quase sem perceber que falava em voz alta.

    Pandora me lançou um olhar rápido, mas antes que pudesse questionar, a urgência tomou conta de mim. Os outros ainda estavam atordoados, Alana caída mais atrás, tentando se reerguer. Respirei fundo e bradei:

    — Claire, Joaquim, Marius! Distraiam os errantes! Pandora, Hass, o colosso! Eu pego o cavaleiro. Precisamos pará-los a todo custo!

    Marius foi o primeiro a reagir, puxando sua arma e começando a disparar. Sua armadura estava parcialmente montada, com uma proteção rudimentar no torso e as torretas já ativas. Os errantes explodiam em nuvens avermelhadas com cada disparo, os corpos se desfazendo como barro seco. Os que estavam ao redor rosnaram e partiram para o ataque, enquanto os projéteis cortavam o ar com estalos agudos.

    Pandora e Hass já estavam correndo em direção ao colosso. Hass fez um movimento rápido com o pulso, e uma lança se materializou em sua mão. A lâmina negra brilhava de forma ameaçadora, e eu percebi que se tratava de uma raríssima pedra de armazenamento.

    Antes que me desse conta, minha mente operava em duas frentes, uma para a magia, outra para o combate. Um raio disruptivo de miasma já estava pronto, pulsando em minha mão como um fio de energia bruta. O colosso tentava se equilibrar após o impacto anterior, mas Pandora distraía sua atenção, golpeando os flancos com agilidade felina. Hass atacava com força brutal, desferindo cortes profundos que arrancavam nacos de carne pútrida.

    O cavaleiro não me viu chegando. Lancei meu raio direto em seu peito, e o impacto foi instantâneo e devastador. O miasma ao redor dele brilhou intensamente antes de explodir em chamas azuladas de mana pura, consumindo seu corpo cadavérico em uma onda de poder destrutivo. Senti meu coração acelerar. A criatura que nos dera tanto trabalho havia sido derrotada com uma única magia, mas não subestimei o preço desse poder. A fusão do conhecimento de Mahteal comigo havia potencializado minhas habilidades de um jeito que eu ainda não compreendia totalmente.

    O colosso ficou imóvel por um instante, confuso e desorientado, antes que Hass, impiedoso, se aproveitasse da chance. Sua lança varou o peito da criatura, e ele seguiu desmembrando o monstro com precisão brutal. Mãos, braços e pernas eram arrancados com golpes rápidos e certeiros, e o colosso colapsou como um boneco de trapos grotesco.

    Ao redor, os outros continuavam lutando. Marius, Joaquim, Claire e a inconsciente Alana estavam protegidos por uma redoma de energia conjurada pela Umbrani, enquanto as torretas de Marius já apresentavam os canos vermelhos do calor dos disparos incessantes. Metade dos errantes havia caído, e comigo, Hass e Pandora entrando na briga, varremos os restantes com eficiência. Meu raio disruptivo cortava o miasma como uma lâmina quente, e as criaturas se desmanchavam em montes de carne inerte.

    O último errante cambaleava, sem forças para continuar, mas algo no ar me fez parar de respirar. O calor do combate desapareceu num piscar de olhos, substituído por um frio cortante que mordia a pele. A temperatura despencou como se a própria morte tivesse chegado. O miasma no ambiente tornou-se denso, quase palpável, provocando uma vertigem sufocante.

    A figura emergiu das sombras, arrastando a escuridão consigo. Seu corpo parecia flutuar, envolto em um manto negro que ondulava como fumaça, sem jamais tocar o chão. O rosto era uma caveira amarelada pelo tempo, os ossos corroídos e quebradiços, mas os olhos eram duas chamas vermelhas, ardendo com um brilho sombrio e irreal, como se queimassem a própria essência da vida.

    — Vamos devolver essa terra à névoa. — Sua voz ecoou, aguda e distorcida, uma sinfonia de dor e desespero que penetrava a mente e arranhava a alma. — Pela Rainha Naksa. Pelo Rei Mahteal. Morram, humanos!

    A sensação era como se garras arranhassem as paredes da minha consciência. Era quase insuportável, mas uma parte profunda da minha mente reconheceu as palavras, como um eco antigo e esquecido.

    Então, ele levantou a mão ossuda, cheia de anéis brilhantes e cravejados de pedras preciosas. Um raio negro se formou na ponta do dedo indicador, um feixe de trevas mais escuro que a noite mais profunda, carregado com puro miasma. Meu coração deu um salto, e um calafrio percorreu minha espinha. A magia era antiga e devastadora, um raio desintegrador de miasma.

    Minha mente disparou, processando a situação em um frenesi de pensamentos. Mahteal sabia como lidar com aquilo. Mas eu tinha mana suficiente? Meu nível era alto o suficiente para suportar o esforço? A resposta parecia ser “não”. No entanto, não havia escolha, todos morreríamos.

    Movi-me instintivamente, saltando para a frente e erguendo meu próprio dedo, convocando a energia em meu núcleo. A magia fluiu, e um raio oposto, branco e vibrante, escapou de mim. As runas dançavam na minha mente, mas eu podia sentir a presença do lich tentando apagá-las, desfazendo a estrutura mágica que eu mal conseguia manter.

    Minha mente se dividiu em duas… em quatro… em oito… multiplicando-se para sustentar as runas, enquanto ele atacava diretamente os padrões mágicos que eu desenhava na minha consciência. O duelo não era apenas físico, mas mental, era uma guerra de vontades e conhecimento.

    O ponto onde as magias se chocaram tornou-se um vácuo absoluto. A colisão criou um círculo liso no chão, apagando qualquer vestígio de combate anterior. O ar ficou pesado, como se o próprio mundo hesitasse em respirar.

    O lich ficou imóvel, os olhos vermelhos flamejando com algo que poderia ser surpresa, ou reconhecimento. Sua voz cortou o silêncio, vacilante e aguda.

    — Impossível… — ele murmurou, hesitante. — Essa magia… esse padrão mental…

    Minha visão começou a turvar. O esforço tinha me drenado completamente. Cada fibra do meu corpo tremia, e minha cabeça latejava como se tivesse sido esmagada. O chão subiu ao meu encontro, e eu caí, mal conseguindo manter os olhos abertos.

    O lich hesitou, os olhos incandescentes se estreitando, como se ponderasse algo. Então, sem aviso, ele mergulhou nas sombras e desapareceu.

    Meu corpo estava dormente, e a dor na cabeça era insuportável. Minha visão falhava, mas antes de tudo escurecer de vez, vi Claire e Pandora correndo em minha direção, suas vozes soando distantes e abafadas.

    A última coisa que senti foi o toque frio das pedras contra meu rosto e a certeza de que, por um momento breve e terrível, eu havia confrontado a própria morte.

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