Capítulo 121: Hospitalidade dos Anões
Marius se virou para mim, seus olhos preocupados refletindo as chamas da lareira.
— Já tem umas horas que você desmaiou. Sei que pode ser duro, mas estou preocupado com minha família e minha oficina. Eles devem estar aflitos também. Não podemos esperar muito.
Senti o peso de suas palavras e suspirei. Ele tinha razão, mas sair agora seria imprudente.
— Concordo com você, amigo. Mas não adianta desespero. — Olhei para a janela, onde a escuridão ainda reinava, densa e opressiva. — Assim que começar a clarear, saímos. É muito mais perigoso sair agora.
Ele seguiu meu olhar e, a contragosto, assentiu, retornando ao seu colchão improvisado. O rosto endurecido, os punhos cerrados. A preocupação com a família e a oficina parecia consumir sua calma habitual, e não pude deixar de sentir um aperto no peito por ele.
Hass, que retornara há algum tempo e ouvira minha história em silêncio, tinha comido um prato de sopa e agora se esforçava para dormir, deitado perto da lareira. Claire e Joaquim haviam dormido e acordado, revezando-se em vigília. Alana permanecia aninhada ao meu lado, seus braços ao redor do meu corpo, como se temesse que eu desaparecesse.
A única que ainda não pregara os olhos era Pandora. Sentada no sofá ao lado da cama, observava as chamas com uma expressão distante.
— Vá descansar um pouco — sugeri, mantendo a voz baixa para não incomodar os outros. — Amanhã será tão difícil quanto hoje.
Ela me lançou um olhar hesitante, como se não quisesse me deixar sozinho, mas acabou concordando e se ajeitou no sofá, puxando o manto sobre os ombros. O cansaço finalmente a venceu, e seus olhos se fecharam, ainda que relutantes.
A luz da lareira lançava sombras trêmulas nas paredes de pedra, e o calor confortável começou a pesar em meus sentidos, embalando-me lentamente para o sono.
Em meu sonho, estava perdido na névoa. Mas não estava. Era uma lembrança. Uma memória que não era minha… ou talvez fosse?
Sentia um desespero profundo, uma saudade esmagadora de… Malena. De casa. A dor era tão vívida que me faltava o ar, como se meu peito estivesse preso em um aperto de aço. A névoa se espalhava ao meu redor, pulsante, viva. Mas ela não me tocava. Não mais.
Desde que havia me corrompido e permitido que o miasma se fundisse à minha essência, a névoa deixara de me ver como um inimigo. Na verdade, ela me ignorava, como se eu não fosse mais digno de sua fome insaciável. Seu toque gélido contornava meu corpo, mas nunca me engolia.
E assim, me restava vagar e procurar a origem dela, a raiz do mal que devorava nossa realidade. Minha inimiga eterna. Descobrir tudo que podia para derrotá-la, mesmo que me custasse a sanidade.
A cada passo, o tempo perdia significado. Templos antigos surgiam na densa bruma como ilhas esquecidas, monumentos erguidos em eras que ninguém mais recordava. Alguns envoltos na névoa sufocante, outros protegidos por bolsões de mana que resistiam ao avanço voraz.
Os anos passaram como ecos distantes. Eu continuava, inflexível, juntando fragmentos de saber, explorando ruínas e lugares onde o tempo parecia parado. A cada descoberta, meu poder crescia. Magias novas e terríveis surgiam ao meu alcance, e eu me tornava um reflexo distorcido do que fora um dia.
Aprendi a me guiar na névoa, a extrair o miasma dela, a nutrir-me de sua essência sombria. Mas o preço foi alto: minha mente começava a se corromper, imagens sombrias me perseguiam, instigando-me a subjugar os humanos, a impor minha vontade sobre eles… sobre Malena.
Um dia, esfarrapado, sujo e faminto, vagava sem rumo quando ouvi uma voz. Um canto etéreo e sedutor, ecoando na bruma como um chamado irresistível. A melodia triste ressoava com a solidão que eu carregava no peito. Meu coração parecia pulsar no ritmo daquela melodia.
Perdido naquele som melancólico, avancei. O frio cortava minha pele, mas eu ignorava. A névoa ao meu redor parecia se mover em sintonia com o canto, como se reverenciasse sua origem. Então, ao longe, vislumbrei uma figura.
Uma dama branca como marfim, etérea e sublime, com cabelos que se espalhavam ao vento como uma cortina de neve. A névoa dançava ao redor dela, enfeitiçada por sua presença. Seus olhos, de um rosa intenso, como os de um coelho, atravessavam minha alma, penetrando até os cantos mais escuros da minha essência.
— Seja bem-vindo, Mahteal — disse ela, com uma voz suave e envolvente, que se derramava como mel em meus ouvidos. — Sou Raksa, e estava esperando por você.
Eu estava paralisado, incapaz de compreender o que sentia. Fascínio? Medo? Admiração? As emoções se misturavam, turvas e confusas. Aquela figura diante de mim parecia ao mesmo tempo etérea e concreta, uma presença que oscilava entre realidade e devaneio. Mas uma coisa era certa: naquela presença, a névoa não era mais apenas um inimigo… ela era uma criatura viva, pulsante, com vontades e desejos próprios. E Raksa participava de alguma forma daquilo.
Senti na alma que ela teria muitas das respostas que eu precisava. A intuição pulsava como um tambor dentro do meu peito. Raksa era a chave para desvendar os mistérios da névoa, para compreender o poder que eu mesmo começava a sentir brotar dentro de mim.
Mas antes que pudesse fazer qualquer pergunta, ou sequer articular um pensamento coerente, a visão se dissipou como fumaça ao vento.
Um balanço suave me despertou, e minha mente demorou alguns segundos para reconhecer onde estava. O calor da lareira ainda aquecia o ambiente, e Alana permanecia enroscada em mim, respirando tranquila. Marius me olhava de pé ao lado da cama, com uma expressão que misturava ansiedade e alegria.
— Está amanhecendo. Vamos? — Ele falou baixo, mas a intensidade em sua voz era clara.
Balancei a cabeça, concordando enquanto espantava o sono que ainda pesava em meus olhos. Com cuidado, afastei Alana e me levantei, alongando os músculos rígidos pela noite mal dormida. Caminhei até a janela e puxei a cortina, deixando um fio de luz cinzenta atravessar o ambiente. O céu ainda carregava resquícios da noite, mas o tom pálido anunciava o alvorecer.
— Vamos acordar todos — murmurei, virando-me para o anão. — É hora de partir.
Um a um, os outros foram despertando, com rostos cansados e movimentos pesados. Pandora foi a primeira a se erguer, já alerta, enquanto Hass resmungava algo incoerente antes de se levantar. Claire e Joaquim trocaram olhares sonolentos, enquanto Alana esfregava os olhos e bocejava.
Nos aprontamos rapidamente, dividindo o restante da sopa em porções pequenas, mas suficientes para enganar a fome. A fumaça da lareira já se dissipava quando deixamos a casa para trás, todos carregando o peso da incerteza sobre os ombros.
— Claire, se importa de passarmos primeiro na oficina de Marius? — perguntei, olhando para a garota.
Ela hesitou por um momento, claramente ponderando a situação. Claire sempre teve uma determinação silenciosa, mas eu sabia que o perigo a preocupava. Apesar disso, assentiu, tentando manter a expressão firme.
— Não me importo — respondeu, ajeitando a capa sobre os ombros. — A próxima parada será na residência dos Umbrani.
O anão abriu um sorriso largo e fez uma mesura exagerada na direção da garota, arrancando risos nossos.
— Milady — disse ele, em tom dramático.
Claire corou, a expressão rígida cedendo a um sorriso tímido. Era raro vê-la relaxar assim, e por um instante o clima ficou um pouco mais leve. Eu sabia que Claire era órfã, criada pelos tios, pais de Zia. Apesar de terem a mesma idade, a criação das duas foi bem diferente. Zia sempre teve preferência nos treinamentos e no desenvolvimento, enquanto Claire ficava à margem, forçada a se provar constantemente. Foi só depois que nos conhecemos que ela começou a ganhar confiança, passando a acreditar no próprio valor.
Caminhamos pelas ruas, atentos ao menor movimento. O silêncio era opressor, diferente da agitação usual da cidade. A ausência dos errantes naquela região era desconcertante, como se algo os tivesse afastado. Miasma ainda estava por todos os lugares, mas sua presença parecia menos densa.
Não demorou para que alcançássemos uma propriedade murada, com portões altos de ferro e paredes de pedra robustas. A estrutura estava em bom estado, diferente de muitos lugares que cruzamos no caminho. Havia runas entalhadas nas pedras, algumas brilhando levemente sob a luz da manhã.
— É aqui — disse Marius, avançando até o portão.
Ele pressionou a mão aberta contra uma runa no centro da estrutura. O brilho da inscrição se intensificou por um momento antes de o portão destravar com um estalo metálico. O anão se virou para nós com um sorriso satisfeito.
— Vamos entrar? — perguntou, fazendo um gesto para que o seguíssemos.
Troquei um olhar rápido com Claire e Pandora antes de assentir, liderando o grupo para dentro da propriedade. O terreno era espaçoso, com um jardim que já começava a ser tomado por ervas daninhas. Algumas esculturas de pedra estavam espalhadas pelo caminho de cascalho, e uma oficina ao fundo liberava um cheiro característico de metal e fuligem, embora parecesse vazia há algum tempo.
— Esperava mais resistência — murmurou Hass, passando os olhos ao redor.
— Pode ser sorte — comentei, embora um frio percorresse minha espinha. — Ou estamos caindo em uma armadilha.
Pandora franziu a testa, seus olhos estreitados como se tentasse captar um som distante, algo que os outros não conseguiam perceber. O silêncio ao redor continuava denso e incômodo, cada passo ecoando como um trovão abafado no terreno coberto de cascalho e mato alto.
Conforme nos aproximávamos da residência principal, o ar parecia ficar mais pesado, como se a própria atmosfera tivesse se tornado mais densa e opressora. Foi então que percebemos os corpos. Errantes, espalhados pelo chão como marionetes abandonadas, suas formas retorcidas e deformadas cobertas por marcas de queimaduras e cortes profundos.
Marius engoliu em seco ao ver a cena, seus ombros tensos e a expressão rígida. Sem dizer nada, apressou o passo, ignorando o sangue seco que manchava o solo. Um cheiro metálico e acre impregnou o ar, invadindo nossas narinas e deixando um gosto amargo na boca.
— Isso não está certo… — murmurei, atento a qualquer movimento. — Quem fez isso?
— Não foram errantes — Pandora respondeu, sua voz firme, mas cautelosa. — Isso é trabalho de alguém com técnica.
Me abaixei para examinar um dos corpos enquanto os outros permaneciam em guarda. As queimaduras eram profundas e localizadas, e os cortes tinham um padrão preciso, como se alguém os tivesse executado com disciplina e intenção clara. Olhei para Marius, que estava claramente abalado, mas determinado a seguir em frente.
— Vamos logo — ele rosnou, desviando o olhar dos corpos e continuando a avançar.
Seguimos o anão, mantendo a formação e os sentidos aguçados. A sensação de calma era desconcertante, como um prelúdio de algo pior. Mesmo assim, uma parte de mim não conseguia deixar de pensar na visão de Raksa, na presença etérea que permanecia vívida na minha memória. Por mais que houvesse perigo à nossa volta, a lembrança dela aquecia meu coração, como se a certeza de que algo grandioso estava por vir me desse forças para continuar.
De repente, um estalo seco cortou o ar.
— Cuidado! — gritei, mas já era tarde demais.
O local onde Marius ia colocar o pé explodiu. Terra e grama foram lançadas para todos os lados, atingindo-nos como uma onda de detritos e poeira. O impacto me jogou para trás, e senti pedras arranharem meu rosto e braços. Quando a poeira começou a assentar, levantei-me rapidamente, buscando por qualquer sinal de ameaça.
Na sacada da residência principal, uma figura se destacava contra a luz pálida da manhã. Era uma anã, pequena, mas imponente, com um olhar feroz e determinado. Em suas mãos, uma arma estranha que lembrava a do Germano, mas menor e mais compacta. Um resquício de mana ainda escapava da boca do cano, dispersando-se como um vapor azul acinzentado.
— Finalmente apareceu, não é? — A voz dela era áspera e carregada de desprezo. — Seu anão tratante.
Marius cambaleou para trás, surpreso e claramente irritado.
— Elga?! O que diabos você está fazendo?
A mulher soltou um grunhido irritado e ergueu a arma novamente, mirando diretamente nele.
— O que eu estou fazendo? Limpando a sujeira que você deixou para gente cuidar, abandonados!
— Isso não é verdade! — Marius rebateu, erguendo as mãos em um gesto conciliador. — Eu estava na arena, fiquei preso lá! Tive que esperar ajuda para voltar, não podia lutar sozinho contra aquela horda!
Elga bufou, os olhos faiscando de raiva.
Olhei para Marius, que parecia ser consumido pela culpa, sua expressão carregada de arrependimento. Queria intervir, mas parecia uma situação que ele precisava resolver por conta própria.
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