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    A sala de hóspedes era espaçosa, com mobílias sólidas de madeira maciça que exalavam um aroma amadeirado e reconfortante. Os sofás estavam estrategicamente posicionados ao redor da lareira, cada um com um estilo próprio, mas harmonizando-se com o ambiente rústico e acolhedor. Havia estofados de couro escuro e de tecido estampado, que pareciam contar histórias de gerações passadas. As almofadas, desgastadas pelo tempo, eram cobertas por mantas de lã grossa e confortável. 

    Nas paredes, quadros majestosos retratavam paisagens montanhosas e cenas de batalha, com anões imponentes empunhando martelos e machados. Alguns dos retratos mostravam figuras solenes com longas barbas trançadas, carregando símbolos de clãs antigos. Um em particular chamou minha atenção: um anão robusto, com expressão severa, segurando uma bigorna ricamente ornamentada. 

    — Meus antepassados… — murmurou Marius, os olhos brilhando com um misto de orgulho e melancolia. 

    Passada a recepção um tanto quanto violenta, Elga se mostrava agora carinhosa e preocupada, sua expressão de dureza suavizando-se enquanto abraçava o marido com força. A tensão em seus ombros diminuía visivelmente, como se o simples toque de Marius fosse um bálsamo contra a dor e o medo que ela carregava. 

    — O que aconteceu lá fora? — ela perguntou, com a voz embargada. — O mundo ficou louco… Conseguimos segurar a barra por causa dos seus protótipos, mesmo assim Gina e Rob… — Sua voz falhou, e ela precisou fazer uma pausa para engolir o choro. — Eles morreram defendendo as crianças. 

    Marius apertou os olhos, tentando conter as lágrimas que insistiam em escapar. Ele passou uma mão trêmula pelo rosto, limpando as gotas teimosas, antes de puxá-la para um abraço apertado. 

    — Maldição… — ele murmurou, a voz rouca e carregada de culpa. — Eu… eu não sabia. Se eu estivesse aqui… 

    Elga acariciou a nuca dele, os dedos se enterrando na barba desgrenhada. 

    — Não se culpe, Marius — ela sussurrou, com o tom mais firme que conseguiu. — Todos nós fizemos o que pudemos. Eles sabiam do risco, e… Gina e Rob escolheram ficar. Preferiram lutar do que correr. 

    Um serviçal entrou com um bule de chá fumegante e nos serviu em delicadas xícaras de porcelana decoradas com motivos rúnicos. O aroma adocicado e apimentado preenchia o ambiente, aquecendo os pulmões e trazendo um raro momento de conforto. Nos sentamos nos sofás ao redor de uma mesa de centro robusta, próxima à lareira, cujas brasas ainda reluziam em tons avermelhados, lançando sombras dançantes pelas paredes. 

    Elga respirou fundo e se recompôs, sentando-se ao lado de Marius enquanto ele ainda lutava para controlar as emoções. 

    — Os Necros invadiram Thallanor — Marius explicou, tomando um gole do chá, que parecia acalmar um pouco seus nervos. — A cidade virou um caos completo. Todos os guerreiros mais fortes saíram da cidade para lidar com algum problema desconhecido… e, com isso, a cidade ficou vulnerável. 

    Elga balançou a cabeça, incrédula. 

    — Então foi isso… — ela murmurou. — Todos foram pegos de surpresa. 

    — A arena foi atacada com força brutal — acrescentou, lembrando dos momentos intensos de luta e da morte que rondava cada movimento. — Se não fosse por esses jovens aqui, eu não teria conseguido voltar para casa. 

    Ela nos lançou um olhar atento e curioso, como se só agora percebesse nossa presença de verdade. Seus olhos vagaram de um a um, analisando-nos com discrição, até que finalmente abriu um sorriso genuíno. 

    — Vocês foram corajosos em ajudar meu marido. Não sei como agradecer — disse Elga, com um tom mais gentil. — Fiquem para almoçar. A propriedade está segura agora e temos muita comida na despensa. Vocês parecem exaustos. 

    O convite era tentador. Depois de tudo o que havíamos enfrentado, uma refeição quente e um momento de descanso não pareciam maus. Olhei para meus amigos, buscando suas reações, mas o cansaço em seus rostos era evidente. Mesmo assim, seus olhares transmitiam uma determinação teimosa. Todos estavam ansiosos para partir e verificar como estavam suas próprias famílias. 

    Respirei fundo antes de responder, tentando encontrar as palavras certas. 

    — Agradeço muito a hospitalidade, Elga — comecei, oferecendo um sorriso sincero. — Mas temos que partir. Não podemos perder mais tempo. 

    Elga abriu a boca para argumentar, mas fechou novamente, percebendo que nossa decisão estava tomada. Ela assentiu, com um misto de compreensão e pesar. 

    Virei-me para Marius, que parecia dividir sua atenção entre a esposa e nós. 

    — Você vem? — perguntei, sabendo que a escolha era difícil. 

    Ele olhou para Elga, e a troca de olhares entre os dois foi carregada de sentimentos não ditos. Ela tocou o rosto dele com ternura e sorriu, apesar da dor ainda evidente. 

    — Não posso — respondeu, quase num sussurro. — Preciso ficar e garantir que a propriedade esteja segura… e que ninguém mais se machuque. 

    Assenti, compreendendo sua escolha. Coloquei uma mão em seu ombro e apertei de leve, num gesto de despedida. 

    — Entendo perfeitamente — respondi, tentando não demonstrar a decepção que me corroía. — Cuide bem dela, Marius. 

    Ele forçou um sorriso, os olhos ainda úmidos. 

    — Vocês também… se cuidem. Que a sorte esteja com todos. 

    Deixamos a casa com o coração apertado, sabendo que a despedida talvez fosse definitiva. O peso da separação se misturava à urgência que nos impulsionava adiante. Não havia tempo para lamentações, o caos continuava lá fora, e precisávamos seguir em frente, encontrar nossas famílias e sobreviver ao inferno que Thallanor havia se tornado. 

    Saímos pela rua, mantendo-nos atentos a qualquer som ou movimento suspeito. A tensão no ar era palpável, quase sufocante, e cada passo parecia ecoar pela calçada de pedras desgastadas. Nos entreolhamos em silêncio, trocando olhares de preocupação e determinação, mas ninguém dizia nada. O vazio das ruas trazia uma sensação estranha, como se estivéssemos caminhando por um cemitério a céu aberto. 

    Seguimos rumo à residência dos Umbrani. Apesar de serem parentes da família imperial, sua propriedade ficava na periferia da área nobre, um contraste curioso com o poder que supostamente possuíam. Talvez fosse um reflexo de algum conflito interno ou de uma preferência pela discrição. De qualquer forma, não era longe, uma caminhada de uns dez minutos nos separava do destino. 

    As ruas continuavam desertas, com um silêncio tão absoluto que até nossos passos pareciam profanar a tranquilidade mortal que havia tomado conta da cidade. Em uma ou outra janela, conseguíamos ver vultos curiosos acompanhando nossos movimentos, mas, assim que percebiam que os havíamos notado, se escondiam rapidamente, puxando as cortinas ou apagando as lamparinas. Era como se todos estivessem esperando que a tempestade passasse, torcendo para que a violência não os encontrasse. 

    — É como se estivessem se protegendo da própria sombra — Pandora murmurou, sua expressão tensa. — Nunca vi tanta gente com medo de sair de casa. 

    — Eles têm motivos — Claire respondeu, os olhos atentos a cada beco e porta entreaberta. — Se perderam alguém, não vão querer repetir a dose. 

    Eu não tinha muito o que acrescentar. A sensação de impotência me corroía, e a visão de Raksa ainda pairava em meus pensamentos, como um espectro tentando me guiar. Mas de que adiantava isso agora? Sacudi a cabeça, afastando as dúvidas. 

    De repente, o chão tremeu sob nossos pés, como um animal gigante despertando de um sono profundo. O estrondo veio de longe, mas foi forte o suficiente para fazer pedaços de telha caírem de um telhado próximo. Uma rajada de vento seco e quente nos atingiu logo em seguida, bagunçando cabelos e roupas. 

    — Droga… — murmurei, sentindo um arrepio frio percorrer minha espinha. 

    — O que foi isso? — Claire perguntou, visivelmente alarmada. 

    — Um dos mausoléus… — respondi, com os olhos arregalados. — Eles destruíram um dos mausoléus.

    Antes que pudéssemos assimilar o que aquilo significava, uma revoada de pássaros negros cruzou o céu em pânico, espalhando penas pelo chão. O céu na direção oposta a nós trovejou e escureceu como se a noite tivesse caído subitamente. A névoa começou a se agitar naquela região, girando sobre si mesma como uma serpente colossal que acabava de despertar. 

    O vento trouxe um cheiro podre e rançoso, como carne decomposta e flores murchas. A névoa se movia com uma precisão antinatural, espalhando seus tentáculos brancos por ruas e becos, engolindo construções inteiras com uma fome selvagem. E então ela avançou como uma muralha viva, rápida e impiedosa. 

    — Que merda… — murmurei, quase sem voz, incapaz de desviar o olhar daquela destruição iminente. 

    Todos nós estávamos boquiabertos, estáticos diante do que presenciávamos. A névoa avançava sem qualquer resistência, devorando casas, pessoas e terrenos, até que, de repente, parou de forma abrupta. Tinha avançado como uma mola que se contrai após se esticar ao máximo. Não houve hesitação ou suavidade, simplesmente avançou e parou, como se tivesse se saciado momentaneamente. 

    Pandora estreitou os olhos, tentando analisar o fenômeno. 

    Engoli em seco, sentindo meu coração bater descompassado. Aquilo não era mais um simples incidente. Não era só uma invasão de mortos-vivos. Havia algo maior e mais terrível em andamento, o que Annabela e Raksa plenejavam me escapava completamente, e só pensar nisso fazia minha pele se arrepiar. 

    — Quantas pessoas… — Claire murmurou, os olhos marejados. — Quantas pessoas foram pegas… 

    Pela primeira vez em muito tempo, me senti impotente. Não importava quantas espadas eu tivesse ou quantas magias dominasse — aquilo estava além de nossa compreensão. A verdadeira face do antigo inimigo de Mahteal se erguia diante de nós, revelando um poder que parecia distorcer a própria realidade. Uma pressão esmagadora se abateu sobre meus ombros, como se o mundo inteiro me espremesse sem piedade. 

    “Como ele suportou isso?” pensei, tomado por um misto de admiração e desespero. 

    De alguma forma, eu sabia que enfrentar a névoa significava encarar um pesadelo sem rosto, sem corpo e insidioso, uma presença oculta, faminta e implacável, que corroía tudo em seu caminho. O medo pulsava dentro de mim, como uma chama prestes a apagar, mas algo mais forte se impôs: a determinação de não ceder ao terror. 

    Pandora respirou fundo, os olhos firmes e determinados cravados em mim. Seu olhar dizia tudo, não podíamos nos render agora. 

    — Precisamos fazer alguma coisa — murmurou Hass, com a voz mais trêmula do que de costume. 

    Eu sabia que eles estavam certos. Por mais que nossos instintos gritassem para salvar nossas famílias primeiro, aquilo já não era mais uma escolha individual. Se não agíssemos, Thallanor inteira sucumbiria. 

    Olhei para cada um deles, tentando encontrar nos rostos a mesma determinação que eu sentia. Para minha surpresa, ninguém hesitou. Claire ergueu seu cajado, os dedos firmes no cabo desgastado, enquanto Pandora apertava o punho de sua espada com um brilho feroz nos olhos. Joaquim ajeitava a aljava, conferindo as flechas com uma expressão concentrada. 

    — Precisamos parar aquilo, impedir os mortos de destruírem outro mausoléu — falei, tentando manter o tom firme, mesmo que meu coração ainda batesse descompassado. — Isso é mais importante que verificar nossos parentes… mais importante que qualquer coisa agora. Mas eles são muitos e são fortes. Vocês viram o lich… ele deve ser o chefe dessa incursão. 

    Pandora deu um passo à frente, os olhos cintilando de determinação.

    — Não podemos atacá-lo de frente. Se não formos cuidadosos, ele vai nos aniquilar antes mesmo de chegarmos perto. 
     
    — Vamos aproveitar que eles estão reunidos em um só lugar e arregimentar forças — propôs Hass, os olhos avaliando cada um de nós, já calculando os próximos passos. 
     
    Concordei com sua proposta. Corríamos contra o tempo, e não havia espaço para indecisões. 
     
    — Vou até os Vulkaris — falei, sabendo que, se alguém pudesse oferecer reforços rápidos, seriam eles. 
     
    — Vou até o exército imperial — disse Hass, com um brilho decidido no olhar. — Ainda tenho amigos lá. 
     
    — Vou voltar para o Matadouro — Pandora declarou, apertando o cabo da espada. — Juntar os gladiadores, trazê-los para a luta. As coisas mudaram de proporção, e precisamos de toda a força que conseguirmos. 
     
    — Vou até os Umbrani — Claire disse, sua expressão determinada. 
     
    — Vou com você — Joaquim acrescentou prontamente, recebendo um olhar firme de aprovação da garota.
     
    Olhei para o grupo, sentindo uma ponta de orgulho pela coragem deles. 
     
    — Vamos, então. Não podemos perder tempo. 
     
    Fechei os olhos por um instante e conjurei uma magia do arsenal de Mahteal, uma ligação mental entre nós, para podermos nos comunicar à distância. A magia serpenteou pelo ar como um fio de energia etérea, conectando nossas consciências com uma leve pulsação no fundo de nossas mentes. 
     
    — Estamos ligados — anunciei. — Qualquer problema, qualquer avanço… avisem imediatamente.
     
    — Vou seguir a horda, sou quase invisível para eles — sussurrou Alana, com a voz fraca. — Posso nos manter atualizados das movimentação deles.
     
    Olhei para ela e concordei.
     
    Respirei fundo, permitindo que o medo se dissipasse, substituído por uma sensação de propósito. Não estávamos mais lutando apenas por nossas vidas ou por nossas famílias, estávamos lutando por Thallanor, pelo futuro de todos que ali viviam. 
     
    — Vamos — ordenei, liderando o caminho. 
     
    E com passos firmes e olhares determinados, marchamos em direção aos nossos destinos, cada um carregando o peso de suas escolhas, mas com a certeza de que não estávamos sozinhos nessa luta.

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