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    De longe, avistei a torre onde Alana estava. Sua silhueta se erguia contra o céu carregado, uma sentinela solitária no caos da cidade. Não havia tempo a perder. Corri em direção à entrada, sentindo o peso da batalha iminente pesar em meus ombros. 

    A porta da torre estava entreaberta, balançando levemente ao sabor do vento. Não havia sinais de inimigos por perto, mas mesmo assim, mantive a mão próxima da arma enquanto subia a escadaria de pedra em espiral. Meus passos ecoavam no espaço vazio, aumentando a sensação de urgência. 

    No topo, encontrei Alana. Ela estava encostada no parapeito de uma das janelas, meio escondida, os olhos fixos no horizonte. A luz do sol que entrava iluminava seu rosto, e uma brisa fria agitava seus cabelos. 

    Me aproximei com cautela e segui seu olhar. 

    A horda estava a uns cento e cinquenta metros da torre, seus gemidos e grunhidos chegavam indistintos.

    Havia mais inimigos do que eu imaginava. Muito mais. Uma massa disforme de mortos se espremia pelas ruas, uma multidão grotesca de corpos em decomposição. Entre eles, colossos montados marchavam em formação irregular, enquanto criaturas de sombras deslizaram pelas paredes como espectros vivos. E no alto, sobrevoando tudo com um olhar frio e calculista, estava ele. 

    O lich que havia nos enfrentado.

    Meu estômago se revirou ao vê-lo. Mesmo à distância, sua presença era opressora. Eu ainda me lembrava do raio devastador que ele disparara antes. Ele era poderoso, implacável. Mas o que me intrigava era sua retirada anterior. Por que fugiu? Por que não acabou conosco quando teve a chance? 

    Alana se virou para mim, e feliz em me ver abriu um sorriso. 

    — Eles quase não se moveram, papai. Estão juntando mais e mais regimentos. 

    Me abaixei ao lado dela, garantindo que não estava visível para o lich. 

    — Eu tenho muitas perguntas para você, Alana. E quero respostas diretas. Sem mentiras. 

    Ela arqueou uma sobrancelha, mas logo assentiu, séria. 

    — Primeiro de tudo — continuei, medindo bem minhas palavras —, quem é você? Ou melhor, o que você é? E por que me chama de pai? Apesar de eu ainda não conseguir lidar bem com as lembranças de Mahteal, sei que ele não tem memórias de você. 

    A expressão dela se fechou por um momento, como se tivesse ficado ofendida. Mas o ressentimento durou pouco. 

    — Ele não tem como se lembrar de mim — disse, recostando-se contra a parede. — Fui criada por Naksa, rainha e mãe dos Necros, que também foi esposa de Mahteal. Minha matéria orgânica vem dos dois. Então, tecnicamente, ela é minha mãe e ele, meu pai. Sou um homúnculo, como você já sabe. 

    Homúnculos. Criaturas orgânicas, porém artificiais, moldadas com propósitos específicos. Isso explicava muita coisa… e, ao mesmo tempo, nada. Mas uma coisa era certa: Mahteal, ainda que sem muito amor, havia sido esposo de Naksa. Isso estava em suas memórias, havia sonhado com ela.

    — E com que propósito ela criou você? — perguntei. — Homúnculos não são feitos sem um motivo. 

    Alana suspirou e cruzou os braços. 

    — A história é mais complicada do que parece — ela disse, cruzando os braços. — Mas vou tentar resumir do jeito que consegui entender, ouvindo as conversas ao meu redor. Nunca me explicaram nada diretamente, sabe? 

    Ela desviou o olhar para fora, observando a movimentação da horda por um instante, como se medisse cada passo das criaturas. 

    — Acho que temos tempo. Eles não vão a lugar nenhum agora. 

    Assenti, e ela prosseguiu. 

    — Tudo começou quando Naksa e Esther se fundiram. 

    Fiz uma careta. Lembrava-me nitidamente do pesadelo de Pandora, no qual presenciei esse momento. A lembrança ainda me arrepiava. 

    — As duas eram apaixonadas, e mulheres apaixonadas são capazes de tudo — Alana continuou. — Esther amava o Imperador Juliani, seu bisneto na época. Já Naksa era obcecada por Mahteal. Mas ele nunca a amou de verdade. Ela morria de ciúmes de Malena. Foi por isso que escrevi aquela canção, para provocá-la. 

    Meu coração acelerou. 

    — A canção que ouvi no bar — murmurei, sentindo as notas tristes ressoarem em minha mente. 

    Alana sorriu, um brilho nostálgico nos olhos. 
     
    — Sim. Eu compus aquilo ouvindo minha mãe falar sobre ela. Ela nunca quis que eu tocasse e cantasse. Você sabia? — riu, balançando a cabeça. — Foi por isso que fugi de casa. Quer dizer… não só por isso. Mas estou me adiantando.

    Ela respirou fundo antes de continuar. 

    — Esther precisou de uma nova identidade. Passou a se chamar Annabela. Pelas regras imperiais, ela não podia se casar com Juliani, então… ela e Naksa fizeram outros planos. 

    — Que tipo de planos?

    — Planos de benefícios mútuos — riu ela, como se aquilo fosse engraçado. — Elas criaram três homúnculos. Eu fui a primeira. Pode-se dizer que sou um protótipo. Os dois que vieram depois de mim são indistinguíveis de humanos normais. Eu fui criada com matéria orgânica de Naksa e de Mahteal. Elizabeth veio do material de Esther. Valis, do Imperador Juliani. 

    Um frio percorreu minha espinha. Valis… Elizabeth… Não podia ser…

    — Espere — falei, interrompendo-a, tonto com a informação. — Valis e Elizabeth são homúnculos? 

    — Sim. Fomos criados juntos, como uma irmandade. Educados para cumprir nossos papéis. Valis deveria vencer o torneio dos jovens, entrar para o círculo interno do Imperador e, no momento certo, assumir o trono. Elizabeth deveria guiá-lo e ajudá-lo, garantir que nada saísse dos trilhos. Mas os jovens dessa geração eram mais fortes do que o esperado. Isso atrapalhou o plano delas. 

    Ela fez uma pausa, os dedos deslizando lentamente pelo parapeito da janela. 

    — A consciência de Annabela vai habitar Elizabeth, e a de Juliani, Valis. Faz parte do plano delas. 

    O peso das palavras caiu sobre mim como uma marreta. 

    — Mas por quê tanto trabalho? Não faz sentido. 

    Alana suspirou, cruzando os braços. 

    — Você é tão esperto e tão bobinho, papai. — Seu tom era uma mistura de ironia e carinho. — A resposta é poder. Mais uma geração reinando. 

    Ela levou um dedo ao queixo, pensativa. 

    — E também porque Annabela, depois de se unir com mamãe, não podia mais engravidar. Com o corpo de Elizabeth, ela finalmente poderia carregar o filho de Juliani. E tem Naksa também… Com Esther abandonando Annabela, Naksa recupera um corpo para ela. Um corpo vivo. Algo que faz milênios que ela não tem. 

    O silêncio se estendeu entre nós, denso, sufocante. 

    — E então você fugiu — murmurei. — Por isso estavam atrás de você. Era a mando de Annabela o tempo todo… 

    Alana assentiu, o olhar pernão na cidade lá fora. 

    — Sim. Fugi. Para poder viver. Para ser eu mesma.

    Ela me olhou nos olhos, buscando algo. Aceitação, talvez. 

    Será que estou errada? 

    Engoli em seco. As informações ainda giravam em minha mente, confusas, caóticas, mas algo na voz dela me atingiu profundamente. 

    — Não — respondi, firme. — Não está errada. Nem um pouco. 

    Um sorriso pequeno e hesitante surgiu nos lábios dela. 

    — Sabe… eu também meio que fugi de casa para me encontrar — confessei.

    Ela piscou, surpresa. Então, sem aviso, se jogou sobre mim, rindo.

    — Papai!

    O momento foi interrompido pelo som de passos apressados no andar abaixo. 

    Uma voz familiar ecoou pela escada. Um tom alegre e ao mesmo tempo ansioso.

    — Lior, onde está… 

    A figura de Nix surgiu na entrada, acompanhada de outra vulpina. 

    Ela parou, os olhos se arregalando ao nos ver. Alana ainda estava em cima de mim, e pelo jeito como ela arqueou as sobrancelhas, a cena parecia incrivelmente suspeita. 

    — … você? 

    Meu coração perdeu uma batida ao ver minha querida raposinha. Parecia que uma eternidade tinha se passado.

    Vê-la bem era o que eu mais desejava.

    Tentei me levantar rápido, mas tropecei em Alana, que ainda me segurava. 

    Nix estreitou os olhos, sua expressão se tornando sombria. A fúria em seu olhar era completamente compreensível. 

    — Calma, eu posso explicar tudo. — levantei as mãos, tentando apaziguar a situação. 

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