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    A notícia da gravidez de Selune roubou meu chão. O mundo ao meu redor pareceu se tornar um borrão distante, vozes abafadas como se eu estivesse submerso em águas profundas. Selune… dominada pelo Avatar do Vazio. E agora… meu filho. 

    Meu filho. 

    Um frio subiu por minha espinha. O que aconteceria com eles? O Avatar já havia provado ser implacável, um parasita devorador de consciências. Selune ainda existia, ou já havia sido engolida completamente? E o bebê? Seria ele apenas mais um receptáculo para aquela entidade maldita? 

    Meu pensamento se afunilou em um único foco. 

    Eu precisava caçar esse desgraçado.

    Mas a realidade bateu forte logo em seguida. Não tinha forças para tanto. Ele me espancou dentro do meu próprio oceano de mana, onde eu era mais forte. Nem mesmo Mahteal, com todo o seu poder, conseguiu lidar com ele. Aprisioná-lo em uma joia  foi a única solução que Malena e ele encontraram. 

    Se quisesse ter a menor chance, teria que absorver por completo a herança que Mahteal me deixou. Mas isso ainda não seria suficiente. Teria que superar minhas próprias limitações, buscar caminhos diferentes.

    Meus punhos se fecharam com força. Em nossa conversa, o Mahteal mencionou que talvez houvesse pistas de Malena. Será que poderia seguir essas pistas? Será que ainda haveria algo dela no mundo? Poderia encontrar esse caminho?

    Uma voz distante me puxou de volta. 

    — Lior? — Nix me chamava, preocupação estampada no rosto. — Tudo bem? 

    Pisquei algumas vezes, voltando à realidade. Minha mente ainda fervia, mas fiz um gesto afirmativo, mesmo sabendo que ela não seria enganada tão facilmente. 

    — Podemos continuar depois, se precisar de um momento — sugeriu ela. 

    — Não. Preciso saber de tudo agora. Temos uma luta pela frente, e não sei quando teremos outra pausa. 

    Ela me estudou por um instante, como se ponderasse se devia insistir. No fim, apenas assentiu e retomou a história. 

    — No primeiro dia na hospedaria, Selune parecia normal… por incrível que pareça , o cheiro dela estava diferente,  com todo tabaco, foi difícil de saber, mas eu soube. Naquela noite que descobri que ela estava grávida. 

    O chão oscilou sob meus pés de novo, mas me obriguei a permanecer firme. 

    — Ela mesma não sabia até então. Foi um choque para todos nós. 

    Nix respirou fundo antes de continuar. 

    — Enquanto isso, todos os dias eu ia à arena, tentando alcançar minha irmã. Eu queria que ela me reconhecesse, que lembrasse de quem éramos… mas era frustrante. Quando conseguimos comprar sua liberdade e a levamos embora, achei que tudo mudaria, mas… 

    Ela fez uma pausa, apertando as mãos sobre os joelhos. 

    — Nada mudou. Ela continuava selvagem, irracional. Um animal enjaulado. Se não fosse pelo contrato de escravidão, eu não teria controle sobre ela. E não era só comigo. Se Selune ou Karlom chegassem muito perto, ela os atacaria sem hesitar. Eu não tinha nem como viajar de volta, ela não conseguiria obedecer ordens.

    A sombra de uma lembrança cruzou seu rosto, e percebi que a parte da história que ia contar ainda a assombrava. 

    — Então… dois dias atrás… 

    O tom dela ficou mais pesado. 

    — Selune teve um ataque. Um daqueles que fazem o coração parar no peito. Ela estava bem, conversando comigo, quando de repente gritou e caiu no chão. Shade… ele se transformou, virou uma névoa negra e a envolveu completamente, como se fosse uma mortalha viva. 

    Me inclinei para frente, prendendo a respiração. “Shade, aquela filha da puta que me enganou”.

    — O que aconteceu depois?

    — Foi como se algo dentro dela despertasse. Do mesmo jeito que caiu, ela se levantou. Mas… 

    Nix olhou para mim e sua voz saiu num sussurro: 

    — Seus olhos… estavam completamente pretos. 

    Meu coração parou de bater.

    — E Shade… ele se abriu como duas asas negras, cobrindo suas costas, como se fosse parte dela. Ela parecia… 

    Nix hesitou, buscando as palavras certas. 

    — Um anjo da morte, Lior. Linda… e assustadora. 

    A descrição fez minha pele se arrepiar. Eu conseguia ver a cena em minha mente, nítida como se estivesse ali. Selune, com as asas de trevas se espalhando atrás dela, o olhar vazio como o abismo. 

    — Por um instante, achei que fosse nos atacar — continuou Nix. — Mas então… seus olhos voltaram a ser prateados por um momento. E foi quando ela falou comigo. 

    Nix abaixou a cabeça, e quando ergueu os olhos novamente, estavam cheios de angústia. 

    — “Volte para Lior. Ele precisa de você. Diga a ele para não vir atrás de mim… A Selune que vocês conheciam não existe mais.” 

    O impacto das palavras atingiu meu peito como um soco. 

    — Depois disso — Nix prosseguiu, num tom mais fraco —, ela fez um gesto com a mão, e minha irmã desmaiou. Como se tivesse arrancado o peso da loucura dela com um estalar de dedos. 

    Eu não sabia se isso era um alívio ou algo ainda mais aterrorizante. 

    — E então, Selune olhou para Karlom e perguntou se ele queria ir com ela. Ele disse que sim. 

    Minha respiração ficou presa na garganta. 

    — Eu imaginava que ele iria com ela…

    — Foi isso que aconteceu, ela o colocou em uma espécie de casulo, abriu aquelas asas negras e desapareceu na névoa. 

    Silêncio. 

    Meus pensamentos estavam em um turbilhão. Selune… Karlom… Se ela ainda tinha alguma consciência, por que pedir para que eu não fosse atrás? Isso era proteção… ou alguma forma de manipulação?

    — Depois disso, quando minha irmã acordou… estava mudada. Sua fúria diminuiu, ela não lembrava direito do que aconteceu na arena. Era como se tivesse sido libertada de algo. 

    — E então, você partiu, voltou para cá. 

    Nix assentiu. 

    — Peguei as Pedras de Ancoragem e vim direto para cá. O resto você já sabe. Fui até a mansão, depois ao Matadouro… e agora estou aqui. 

    Ela terminou a história, e o silêncio se estendeu entre nós. 

    Minha mente girava com perguntas sem respostas, e pela primeira vez na vida, eu não sabia o que fazer. 

    Tudo parecia se embaralhar em minha cabeça. Selune, Karlom, o Avatar do Vazio… Como ela conseguiu resistir? Será que ainda conseguia? Tinha sido temporário?

    Meus olhos pousaram sobre a irmã de Nix, que estava sentada um pouco afastada, visivelmente desconfortável. Seus dedos tamborilavam contra o tecido da roupa, inquietos. Ela evitava me encarar diretamente, como um animal acuado, apenas suportando nossa presença. 

    Foi então que um pensamento surgiu, frio e cortante. 

    Semente de Carniçal.

    O Avatar do Vazio gostava de usá-las. Pequenas criaturas de miasma implantadas no cérebro, controlando a vítima como marionetes. O hospedeiro acreditava que tinha alguma autonomia, mas no fundo era apenas um espectador da própria vida. 

    Minha garganta secou. Se fosse isso, então Selune estava ainda mais comprometida do que eu pensava, talvez nem tivesse resistido.

    Apertei levemente as mãos da minha raposinha, tentando encontrar alguma firmeza antes de falar. 

    — Nix… posso analisar sua irmã? — Minha voz saiu mais grave do que pretendia. — Desconfio de algo… 

    Ela hesitou por um momento, e vi a tensão em seu olhar. Mas então, com um suspiro, assentiu. 

    — Faça o que for preciso. 

    Deixei meu mana circular enquanto me aproximava de Niana. 

    Ela imediatamente ficou tensa. 

    Seus olhos, antes apenas desconfiados, adquiriram um brilho perigoso. Ela estava com medo do que eu pudesse fazer. Um mau sinal. 

    Quando ergui a mão, um brilho sutil envolveu minha palma. Não precisei de muito para sentir… 

    O ponto negro de miasma alojado em seu cérebro.

    Meu estômago revirou. 

    Antes que ela tivesse qualquer reação, fiz um gesto ágil com os dedos, canalizando um feixe preciso de Disrupção de Miasma. A energia cortou o espaço entre nós como um raio afiado e certeiro. 

    O efeito foi instantâneo. 

    O ser negro evaporou antes de produzir qualquer malefício, dissipando-se em uma fumaça escura e disforme. 

    Niana soltou um gemido surdo, suas mãos voando para a cabeça. Seu corpo oscilou, como se tivesse acabado de acordar de um pesadelo prolongado. 

    Ela cambaleou.

    Antes que caísse, Nix e eu a seguramos pelos braços, amparando-a. 

    Ela piscou várias vezes, o olhar perdido no vazio. Então, repentinamente, ergueu os olhos para Nix e a abraçou com força. 

    — Irmã… estou livre. 

    A voz dela soou trêmula, quase incrédula. 

    — Eu… eu via tudo, mas não conseguia fazer nada. Era como se eu estivesse presa dentro de um aquário. Uma passageira dentro do meu próprio corpo. 

    Senti um calafrio percorrer minha espinha. Poderia ter sido Nix também.

    Nix a segurava firme, as mãos deslizando pelos cabelos da irmã em um gesto reconfortante. Então, ela olhou para mim. 

    — Você está dizendo que… não foi Selune quem mandou a gente voltar para cá?

    Respirei fundo. 

    — Não. Ele queria usá-la para nos espionar. 

    O silêncio caiu sobre nós, pesado como um túmulo. 

    Nix fechou os punhos, seu rosto adquirindo uma expressão sombria. 

    A desgraça do Avatar do Vazio estava sempre um passo à nossa frente.

    E então, uma voz ressoou em minha mente. 

    Era Pandora.

    “Estamos saindo do Matadouro. Onde nos encontramos?”

    O tempo para hesitação havia acabado.

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