Capítulo 13: Selune
Eu e Selune estávamos no quintal dos fundos da estalagem. Sentado em posição de lótus, com o dorso nu, eu sentia suas mãos firmes nas minhas costas enquanto ela me ensinava métodos de respiração e fluxo de mana. Selune queria avaliar o melhor método para minha circulação, adaptando-o ao meu corpo. Diante de nós, Nix e Karlom trocavam golpes. Nix manejava uma adaga em cada mão, movendo-se com rapidez surpreendente, quase predatória; sua destreza lembrava a de uma assassina. Karlom, porém, bloqueava ou desviava seus ataques com facilidade, interrompendo ocasionalmente para corrigir sua postura ou ajustar a empunhadura das lâminas. Vê-los em ação era um lembrete amargo do longo caminho que eu tinha pela frente para dominar meu novo corpo.
Selune quebrou o silêncio:
— Jovem mestre, passando esses dias com você, posso dizer pelos seus modos que é de uma das grandes casas. Fico intrigada em saber por que esconde sua identidade… E ainda mais curioso, vindo da nobreza, por que ainda não tem ao menos um terceiro círculo completo?
— É uma longa história… — murmurei, tentando não perder o foco na respiração.
Ela aproximou-se, de modo que seus seios pressionaram levemente minhas costas. Inclinou-se até seu rosto ficar próximo ao meu ouvido e sussurrou:
— Espero que, algum dia, satisfaça minha curiosidade, jovem mestre…
Engoli em seco, e a concentração que mantinha na respiração se quebrou. O mana dentro de mim descontrolou-se, colidindo de forma caótica. Uma dor intensa tomou conta do meu corpo, e eu grunhi. Antes que pudesse reagir, senti um leve tapa em minha cabeça.
— Foco! — disse ela, com firmeza. — Uma provocação como essa não pode abalar sua concentração… vamos de novo.
Respirei fundo, recomeçando o fluxo, e Selune, com as mãos ainda pousadas em minhas costas para sentir a mana circular, iniciou uma explicação calma:
— Pessoas comuns, simplesmente por nascerem em um ambiente com mana, ao atingir a idade adulta, desenvolvem pelo menos um círculo. Um círculo completo significa que o mana está infundido no organismo, não apenas no núcleo. Uma pessoa com um círculo completo tem mais força física e resistência que alguém sem essa infusão. Com mais círculos completos, mais mana está inserido no corpo, e, proporcionalmente, maior é a força do organismo.
Ela pegou uma pequena pedra do chão, quebrando-a entre o polegar e o indicador para ilustrar sua força.
— Eu sou uma maga de sexto círculo (embora incapaz de circular minha mana), então sou cerca de quinze vezes mais forte que uma pessoa comum. Karlom possui o quarto círculo completo, e nossa “raposinha” tem o terceiro círculo incompleto.
Selune retomou a explicação:
— Therians não costumam cultivar mana; seu crescimento é natural, mas ela pode se beneficiar ao aprender formas de meditação e respiração. — Sua voz estava calma e precisa. — Quando adquirimos o segundo círculo, precisamos escolher uma especialização, conforme nossos objetivos. Existem dois grandes ramos: o mágico, para manipular mana em feitiços, e o corporal, que usa mana para aumentar capacidades físicas. No ramo corporal, há aqueles que conseguem revestir armas e armaduras com mana e, em alguns casos, manifestá-lo externamente em forma de campos de força ou espadas de mana.
Ela fez uma pausa, medindo minhas reações, e então acrescentou:
— A escolha é sua, jovem mestre, mas, dado seu potencial, eu recomendaria o caminho mágico. Curiosamente, seu corpo parece ser muito mais poderoso e mais reativo à mana do que o normal — e riu, murmurando para si mesma — mais um segredinho do meu jovem mestre…
— Já lhe pedi para não usar formalidades. Pode me chamar de você, ou simplesmente pelo meu nome.
— Como quiser, jovem mestre. — Sorriu, irônica.
Enquanto treinávamos, eu refletia sobre a trajetória de Selune. Mesmo com suas provocações, ela parecia extremamente séria e sábia. Pela primeira vez, considerei a possibilidade de abrir-me com ela sobre o que realmente tinha acontecido comigo e meus planos para o futuro. Isso poderia prevenir mal-entendidos e ainda me permitiria aprender com sua experiência.
Nix e Karlom terminaram sua sessão de sparring e se aproximaram de onde estávamos. Selune levantou-se, foi até Nix e lhe deu um tapinha afetuoso na cabeça:
— Muito bem, treinou bem hoje. Boa garota. — Nix, ofegante e suada, balançava a cauda, claramente satisfeita. Então, Selune pegou a jovem pela mão e a puxou para dentro da estalagem, dizendo: — Banho das garotas…
Karlom se aproximou de mim, trazendo a espada em sua mão, e pude observá-lo mais de perto. Seu rosto era marcado pelo sol, com um bronzeado profundo, o que deixava seus olhos ainda mais intensos e vigilantes. O queixo quadrado e a barba malfeita lhe davam uma aparência severa, como se ele estivesse sempre entre uma batalha e outra, nunca tendo tempo para o luxo de um descanso verdadeiro. Os cabelos cortados bem rente reforçavam seu perfil prático e rígido. Todo o seu corpo era uma fortaleza de músculos definidos e bem trabalhados, o tipo de constituição que só o treino árduo e anos de combate poderiam esculpir.
Quando ele me ofereceu a espada, ergui a mão, hesitante. Seu olhar parecia me medir, calculando meu valor a cada movimento.
— Levante-se — disse ele com a voz firme, estendendo o cabo da arma para mim. — Temos pelo menos mais umas duas horas de luz do sol… e muito trabalho pela frente.
Engoli em seco ao tomar a espada, sentindo o peso e a seriedade no olhar de Karlom. Havia algo implacável nele, algo que parecia vir de uma vida inteira dedicada ao combate. Aquela presença me intimidava e me motivava ao mesmo tempo, deixando claro que, se eu quisesse sobreviver ao mundo que se abria à minha frente, teria que me tornar forte de verdade — e ele estava ali para me forçar a alcançar isso.
Após meu banho, voltei ao quarto completamente exausto. As costas, os braços e as pernas latejavam do esforço, e, sempre que eu fechava os olhos, via a sequência interminável de cortes de espada que Karlom me obrigara a repetir, cada movimento partindo do mesmo ponto. A voz dele ainda ecoava em minha mente: “Errado! de novo…”.
Ao entrar, encontrei Nix e Selune sentadas na cama, conversando animadamente como se fossem amigas de longa data. Selune, com uma calma natural, trançava os cabelos da vulpina. Observei como ela conseguia ganhar a confiança de Nix sem esforço, e aquela cena fortaleceu minha decisão. Finalmente contaria a Selune o que eu vinha passando e os planos que tinha para o futuro.
— Preciso lhe contar algumas coisas, Selune.
Ela ajeitou-se na cama, ficando em uma posição confortável, e assentiu com um leve som, indicando que me escutava sem interromper o que fazia com os cabelos de Nix. Quando estava prestes a começar, minha contraparte sombria murmurou em minha mente: “Cuidado ao falar sobre Mahteal e sobre o que Drael fez com a gente… É melhor não mencionar nada sobre ter a consciência de Mahteal no seu oceano de mana. Na verdade, é melhor não falar nada sobre mim…”. Estranhei a incoerência, lembrando-me de como ele se mostrara ávido por negociar com Selune na outra noite.
Selune percebeu meu silêncio hesitante e me olhou, como se perguntasse o que me travava. Tomei fôlego e comecei. Falei sobre minha casa de origem, Vulkaris, o defeito de nascença, meu pai, minha mãe Isolde, minha irmã Cassiopeia, as intrigas entre as esposas e concubinas de meu pai, os atentados contra Cass, o acidente que me jogou nas névoas… Quando cheguei a Drael e aos experimentos que sofri, mantive uma descrição vaga, dizendo apenas que os Necros haviam feito algo em mim que ainda tentava entender, o que, no fim, não era uma mentira. Evitei qualquer menção a Mahteal e à minha sombra. Contei da minha “morte” e do funeral, da troca de identidade, do desejo de participar do torneio, e como eu esperava contar com a ajuda de minha mãe para validar essa nova identidade.
— Uau! Realmente é muita coisa para digerir. — Selune me olhou com um sorriso divertido, mas seus olhos tinham uma centelha de curiosidade genuína. — Você me deu muito em que pensar, jovem mestre.
— Espero que não precise usar minha autoridade para garantir que você mantenha tudo isso em silêncio, certo?
— Pode ficar tranquilo — respondeu ela, ainda sorrindo. — Não pretendo dizer nada a ninguém. Só falarei disso com você, claro.
Selune se levantou e caminhou até a porta. Antes de sair, lançou-me um último olhar:
— Vou refletir sobre o que ouvi. Amanhã, provavelmente terei algum conselho para lhe dar.
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