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    Antes de me recolher, avisei a André e Joaquim que estaria trancado no quarto. Se houvesse qualquer mudança no campo de batalha, deviam me chamar imediatamente. Meu instinto gritava que eu precisava integrar completamente as memórias de Mahteal. Somente dessa forma eu poderia atingir meu máximo potencial. No entanto, a incerteza me consumia: haveria tempo suficiente para isso?

    Fechei a porta da sala onde havia conversado com Cassiopeia e me sentei no chão. Nix se acomodou à minha frente, segurando minhas mãos firmemente. Seu toque era um elo com a realidade, um ponto de ancoragem. Fechei os olhos, respirei fundo e deixei que minha consciência mergulhasse no oceano de mana dentro de mim.

    Era apenas a segunda vez que acessava esse espaço desde que herdara as memórias de Mahteal. Ainda não estava acostumado com o sol de mana que brilhava no centro do meu ser, substituindo os círculos arcanos tradicionais. Era como sobrevoar um oceano de energia pura, cujas ondas azuladas refletiam a luz dourada acima. Eu não sabia exatamente qual era o meu nível de poder agora, mas certamente superava o sexto círculo. Talvez o sétimo. Contudo, o que realmente importava não era a classificação, e sim o fato de que esse sol de mana representava algo muito maior do que os antigos sistemas arcanos podiam compreender.

    Selune ficaria enlouquecida ao ver isso.

    O pensamento nela quase me fez perder a concentração. A culpa ainda pesava em meu peito. O que havia acontecido com ela e com meu filho… Era minha responsabilidade, e eu fingia ser forte por necessidade, por obrigação. Mas a verdade era que eu não sabia por onde começar a procurá-los. Pior ainda, mesmo que os encontrasse, como poderia enfrentar o Avatar? Eu simplesmente não sabia.

    E era por isso que estava aqui. Precisava aceitar Mahteal completamente, tomar suas memórias e conhecimentos como meus. Desde os eventos com Drael, eu me sentia dividido, como se nunca tivesse sido o verdadeiro dono do meu poder. Agora, diante da batalha iminente, de Valis, do Lich e do perigo que pairava sobre todos nós, eu precisava ser o melhor de mim mesmo. Precisava me redimir. Deixar de ser uma maldição para aqueles que dependiam de mim.

    Mas eu estava com medo. O mesmo medo que me dominara naquela masmorra onde tudo começara. O medo de deixar de ser eu mesmo.

    A vida de Mahteal fora longa, repleta de dor e sacrifícios. Ele abandonara tudo para vagar na névoa, solitário, buscando respostas que nem mesmo sabia se existiam. No início, seu desejo era vingança contra a própria névoa, mas com o tempo, sua luta se tornara sua razão de viver.

    Ele deixara para trás seu maior amor, Malena, para continuar a batalha. Sua força de vontade era algo inalcançável para a maioria. Eu tinha sorte de ter Nix ao meu lado, mas nem tudo fora dor para Mahteal. Durante anos, ele vivera com Naksa. Ela fora sua esposa e rainha por séculos, embora nunca a tivesse amado como amara Malena. Mas seu amor por ambas era real, profundo e complexo, cada uma deixando uma marca indelével em sua existência.

    Ele pesquisou, desenvolveu sistemas de magia, trabalhou ao lado de Naksa e Malena para desvendar os segredos da névoa. Até que descobriu a verdade: a névoa não era apenas um fenômeno. Era o reino do Vazio. A barreira entre realidades e dimensões.

    Nosso verdadeiro inimigo era um Deus. O Deus do Vazio.

    Quanta petulância era pensar em enfrentá-lo.

    Mahteal passara grande parte de sua vida contaminado pelo Vazio. O miasma era uma criação dessa entidade, uma corrupção silenciosa que se infiltrava nos pensamentos, nos desejos, moldando sua consciência sem que ele percebesse. Ele se tornara algo que não era. O Rei dos Necros.

    Quando percebeu que estava sendo corrompido e que o Avatar do Vazio estava dentro dele, compreendeu que sua jornada tomara um rumo errado. Ele fizera descobertas incríveis, mas estava comprometido. Seu inimigo o envenenara. E então, Mahteal percebeu que não sabia como enfrentar um Deus.

    Ele e Malena tinham criado métodos para conter o avanço da névoa. Mas, para impedir que o Avatar usasse seu corpo contra a humanidade, Mahteal tomou uma decisão extrema: aprisionar-se. Naquele momento, já quase não era ele mesmo. O Avatar do Vazio o dominava quase completamente, e seus momentos de lucidez eram escassos.

    Naksa, acreditando que Mahteal havia sido capturado e não se entregado voluntariamente, declarou guerra contra os humanos. O conflito foi brutal. Milhares morreram. A civilização humana quase foi destruída. As descobertas de Malena e Mahteal foram praticamente perdidas. A magia mudou. Os Necros se tornaram lendas, o miasma virou tabu.

    Malena, desesperada para encerrar a guerra, pegou a pedra onde Mahteal estava selado e fugiu para a névoa, sem destino.

    Os Necros passaram séculos buscando seu rei perdido. Nunca mais se ouviu falar em Malena.

    Mahteal, por sua vez, recuperou-se. Livre da influência do Avatar, ele teve tempo para refletir sobre tudo. Sua vida, suas escolhas, seus erros.

    E agora, era essa sabedoria que eu precisava absorver. Mais do que apenas memórias, eu precisava das conclusões que ele alcançara durante seu cativeiro.

    Respirei fundo. O caminho à minha frente era longo, mas não havia outra opção. Eu precisava continuar.

    Meu maior receio era a vastidão da trajetória dele. Mahteal havia vivido séculos, se não milênios, acumulando conhecimentos, dores e amores que iam além da compreensão de um mero humano. Eu, com apenas dezenove anos, imaturo, marcado por algumas cicatrizes, não passava de uma fagulha comparado ao incêndio de sua existência. Se eu absorvesse tudo isso… quem eu me tornaria?

    Eu sentia suas paixões, suas ambições. E, pior, eu compartilhava de seus sentimentos. Amava Malena sem nunca tê-la visto, entendia a devoção que sentiu por Naksa e carregava o peso de suas escolhas como se fossem minhas. Era como se a fronteira entre o que era dele e o que era meu começasse a desvanecer.

    O que sobraria de mim?

    A identidade de uma pessoa não é definida pela soma de suas experiências? Então, se as experiências dele se sobrepusessem às minhas, o que restaria de Ganimedes? De Lior?

    Não havia resposta para essas perguntas. Apenas um risco a ser assumido.

    A única coisa que me mantinha ancorado à realidade era Nix. Mesmo mergulhado no meu oceano de mana, sentia o calor reconfortante de suas mãos segurando as minhas. Era uma lembrança tátil, um fio de esperança que me impedia de ser engolido pelo turbilhão de pensamentos e memórias que prestes estavam a me consumir.

    Dentro do meu oceano de mana, eu precisava me tornar inteiro novamente. Me concentrei, canalizando o poder da vontade, moldando-o ao meu redor. As memórias, os conhecimentos, as dores de Mahteal começaram a tomar forma diante de mim.

    Uma silhueta brilhante emergiu, materializando-se aos poucos. Ele estava sentado em posição de lótus, sereno, radiante. Diferente do Avatar, cuja presença era um vórtice de trevas consumindo tudo ao redor, Mahteal era luz pura, emitindo um calor reconfortante que afastava parte do medo que eu sentia.

    Por um instante, me permiti apenas observar. Era quase como olhar para um reflexo de mim mesmo, mas um reflexo aperfeiçoado, carregado de sabedoria e poder que ainda não me pertenciam completamente.

    A tentação de correr em sua direção e me fundir a ele foi imensa. Meu corpo tremia, meus instintos gritavam para que eu me entregasse por inteiro, para que me tornasse um com aquele ser que carregava as respostas que eu tanto buscava.

    Mas, no último segundo, hesitei.

    Não era assim que deveria acontecer.

    Eu deveria ser a base. Eu era o presente, a continuidade. Mahteal deveria se fundir a mim, e não o contrário.

    Respirei fundo e ergui minha mão, estendendo-a para ele.

    A figura respondeu ao comando silencioso, levantando-se. Seus olhos brilhantes me encararam com uma calma que me perturbava, mas que, ao mesmo tempo, me preenchia com uma estranha sensação de completude.

    Eu abri os braços. Sem medo. Sem restrições.

    Tudo ou nada.

    Assim que Mahteal se moveu para mim, a dor me atingiu como um golpe brutal. Um rasgo na alma. Um tormento indescritível. Era como se minha própria existência estivesse sendo despedaçada, fragmento por fragmento. O choque me fez soltar um grito mudo, preso na garganta.

    Meus joelhos cederam. Caí dentro do meu oceano de mana, sentindo-me afundar em suas águas azuladas. A cada segundo, sentia meu ser se estilhaçar, apenas para ser remoldado em algo novo. Era insuportável. Minha identidade oscilava entre quem eu era e quem ele foi.

    Mas, no meio da dor e do caos, dois pontos de luz me mantinham preso à realidade.

    O calor das mãos de Nix. A lembrança de Selune.

    Afinal, eu ainda era eu.

    E então, tudo escureceu.

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