Índice de Capítulo

    Quando abri meus olhos, a primeira coisa que percebi foram os sons. Não o estrondo seco da guerra, mas os detalhes sutis que antes me escapavam. O farfalhar do vento carregando o cheiro de cinzas e magia. O bater irregular do coração de Nix, tão distinto do meu. O ruído quase imperceptível da poeira se assentando no chão de madeira do quarto.

    Nix estava na janela, olhando para o céu, que clareava e escurecia repentinamente. Eram relâmpagos sem chuva, explosões mágicas ecoando pelo campo de batalha. Seu corpo estava tenso, a cauda imóvel, os dedos crispados no parapeito.

    Algo em mim havia mudado, mas eu não sabia dizer o quê. Foi quando percebi que o quarto estava escuro, iluminado apenas pelo luar pálido, e ainda assim, eu via tudo nos mínimos detalhes. As partículas de poeira flutuando preguiçosamente no ar, os cabelos de Nix sendo movidos pela brisa noturna, as gotículas de suor em sua testa. E mais que isso: eu percebia o que estava além das paredes, atrás da porta fechada. Meu campo de percepção tinha se expandido de forma absurda.

    Mesmo de olhos fechados, eu enxergava através da mana. Todas as coisas emitiam mana. O ar à minha volta pulsava com energia. Eu via a mana sendo absorvida e expelida por Nix a cada respiração, o fluxo entrando por seus pulmões, circulando até seu núcleo antes de ser redistribuído.

    Minha mente estava diferente. Era como se várias consciências tivessem despertado dentro de mim, cada uma responsável por um cálculo, uma interpretação, uma percepção. Eu compreendia, instintivamente, a estrutura de cada feitiço lançado no campo de batalha. Pelo tom das explosões lá fora, distinguia os tipos de magia sendo usadas. O cheiro no ar me dizia qual o tipo de mana predominante.

    — O cheiro da mana… — murmurei, maravilhado. Então, ri. Uma risada alta, solta, como fazia tempo que não dava.

    Nix se virou, os olhos arregalados de preocupação.

    — Calma — falei, entre um sorriso. — Ainda sou eu mesmo, minha linda raposinha…

    Ela hesitou, mas depois sorriu e veio até mim.

    Mas eu era mesmo eu? Sim e não. Minha essência ainda era a mesma. Meu amor por Nix, minha responsabilidade, minha história e minha família ainda estavam lá. Mas agora havia algo mais. Um peso, uma profundidade, um novo olhar sobre o mundo. Eu sentia as dores de Mahteal, suas preocupações, seus amores, e eles eram meus também.

    Meu instinto estava certo. Eu tinha que ser a base. Suas experiências e memórias não deviam me consumir, mas sim me complementar. Eram cores adicionando profundidade ao quadro da minha existência.

    Me levantei e a abracei.

    — Começou — ela disse. — Não a batalha em si, mas as preparações.
     
    — E o nosso lado?

    — Somos o coringa desse jogo. Estamos escondidos e anônimos. O exército imperial e a horda estão testando um ao outro com magias de cerco de longa distância.

    Assenti.

    — Bom — concluí  — nosso comando está esperando a batalha principal começar para atacar no momento oportuno. Estratégia inteligente. Não vieram atrás de mim?

    — Cass veio uma vez. Depois, Lady Isolde apareceu com os generais para avisar que havia começado.

    — Então vamos descer.

    Quando íamos para a porta, Nix hesitou e disse:

    — Todos sabem que você é Ganimedes. Cassiopeia gritou para a mãe de vocês sobre isso. Muitos ouviram… mesmo sem querer.

    Suspirei. Era inevitável.

    Antes de cruzar a porta, senti a movimentação do lado de fora. Meus novos sentidos me mostraram tudo como se eu estivesse olhando de cima. O pátio estava cheio de soldados e civis. Além dos reforços prometidos por Jonas, havia um grande número de cidadãos comuns, homens e mulheres que vieram ajudar da maneira que podiam, trazidos pela aglomeração de combatentes. Alguns traziam suprimentos, outros ajudavam a carregar munições, água, equipamentos. O medo estava presente, mas havia algo maior que o medo: a determinação.

    Sorri. Humanos nunca se rendiam, por mais assustados que estivessem.

    A primeira pessoa que me viu foi Cassiopeia. Seus olhos se arregalaram e, sem hesitar, ela disparou até mim, se atirando nos meus braços.

    — Irmão! Ganimedes, querido…

    Minha garganta ficou seca. Eu a abracei de volta, forte.

    — Sou seu irmão. Mas Ganimedes morreu, Cass. Sou Lior.

    Ela me olhou, lágrimas escorrendo pelo rosto.

    — Nunca vou esquecer que você me salvou naquele dia… nunca… — Ela riu entre soluços e me deu um soco no braço. — E nunca vou esquecer que me fez passar a maior vergonha de todos os tempos.

    Ri com ela e enxuguei suas lágrimas.

    Aquele abraço quebrou o silêncio do pátio. Quando percebi, dezenas de olhos estavam voltados para nós, cheios de curiosidade, expectativa e dúvidas. Eu sentia o peso daquelas expressões, o murmúrio baixo que se espalhava conforme a notícia da minha presença corria entre os soldados e voluntários. Me endireitei, respirando fundo. Era hora de mostrar a eles que, Ganimedes ou Lior, eu estava ali para lutar.

    — Onde está mamãe? E o comando? — perguntei, tentando manter a voz firme.

    Cass assentiu e fez um gesto com a cabeça.

    — Me siga.

    Atravessamos o portão do pátio e entramos em um beco estreito que nos dava visão direta para a passagem do castelo. Lá, a infantaria imperial se posicionava em linhas ordenadas, um bloco maciço de soldados, disciplinados e implacáveis. Havia uma barreira mágica tremeluzente envolvendo suas fileiras, um escudo de energia que dançava com tons azulados, repelindo as investidas da necromancia inimiga.

    Além da infantaria, no lado oposto do campo de batalha, o exército dos mortos aguardava. Eu sentia a mana profana impregnada no ar, o fedor do miasma, o frio espectral que se espalhava como uma sombra invisível. Criaturas esqueléticas e abominações de carne necrosada se alinhavam, esperando silenciosamente suas ordens. Acima delas, como um presságio de destruição, um lich pairava no ar, sua silhueta encapuzada como um buraco na própria realidade.

    De tempos em tempos, esferas de mana e projéteis de miasma eram disparados de ambos os lados, colidindo contra barreiras mágicas. As explosões iluminavam o céu, relampejando um brilho fantasmagórico sobre o campo. Não era uma batalha ainda. Era um teste de força. Um prelúdio para o verdadeiro confronto.

    Todos se viraram quando Cass, Nix e eu chegamos. Lady Isolde, imponente mesmo em meio ao caos, me observou por um instante antes de sorrir. Havia alívio em seus olhos, mas também um peso, como se já soubesse a resposta para a pergunta que faria.

    — Você está bem? — sua voz era suave, mas carregava autoridade.

    — Sim, mãe, estou. — Respondi sem hesitar. — Qual a situação?

    — Eles estão esperando algo — disse Isolde, cruzando os braços. — Algo que ainda não conseguimos descobrir.

    Mas eu sabia.

    O ritual de Valis.

    O exército dos mortos e o exército imperial eram apenas peças no tabuleiro do Imperador e de Annabela. Valis precisava ser o herói inconteste, aquele que salvaria a humanidade da ameaça necromântica. Mas havia um problema no plano deles. Alana, o catalisador que tornaria possível essa farsa, estava comigo. E continuaria assim, Ela era minha filha acidental, e eu não a abandonaria.

    Eu limpei a garganta, sentindo todos os olhares voltados para mim.

    — Eles estão esperando um ritual do lado humano que vai enfraquecer os Necros em alguma medida. — Minha voz soou firme, mas percebi a tensão crescer ao meu redor.

    Hass me lançou um olhar de advertência, como se dissesse para medir minhas palavras. Lorde Jonas franziu o cenho, sua expressão uma mistura de incredulidade e inquietação.

    — Mas por que os mortos estariam esperando isso? — Jonas perguntou, a descrença em sua voz evidente.

    — Tire suas próprias conclusões — respondi com um tom seco, deixando claro o que estava implícito em minhas palavras.

    Apontei para o lich que pairava sobre suas tropas, imóvel como um sentinela da morte. Sua presença era um peso no campo, um poço de poder sombrio que parecia sugar até mesmo a luz ao seu redor.
     
    — Ele é muito perigoso. Sua classificação está acima do sétimo círculo. — Minha afirmação fez com que todos engolissem em seco. Um inimigo desse nível podia aniquilar a maioria dos presentes sozinho.

    O medo rastejou pelo ar. Mas eu o cortei pela raiz.

    — Mas não se preocupem com ele. — Minha voz era firme, inabalável. — Ele é meu.
     

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