Capítulo 138: De volta a normalidade?
A luta dos meus aliados tinha sido dura. Mais difícil do que eu previa. Se o ritual de Valis não tivesse eliminado os errantes, provavelmente estaríamos todos mortos. Sobrevoava lentamente o campo de batalha, e o que via abaixo era um cenário de devastação. Corpos de ambos os lados, o cheiro de sangue e morte no ar, e a própria terra, esburacada, marcada pelas cicatrizes do combate.
A raiva que sentia por Annabela e pelo Imperador Juliani borbulhava no peito, como um veneno prestes a transbordar. Seu descaso pela vida, sua ganância.
Pousei onde meus aliados haviam lutado. Cerrei os dentes ao ver os corpos, muitos corpos. Das Manaclastes, que seguraram o avanço dos inimigos com bravura, restava apenas uma em pé, e mesmo ela estava avariada, quase desmontando.
Pandora tinha um corte profundo sobre o olho. Seu rosto era uma máscara de sangue. Ao longe, identifiquei Niana e Nix. Ambas estavam exaustas, com o rosto pálido e os corpos cobertos por pequenos cortes. Ao lado delas, Cassiopeia. Ela segurava a espada com a mão esquerda, o seu braço destro pendia inútil ao lado do corpo, com a armadura totalmente destruída naquela região.
Nix a apoiava pelo ombro. Aterrissei à frente delas.
— O que aconteceu? — perguntei, já temendo a resposta.
— Ela se jogou na frente de uma daquelas coisas… pra salvar minha irmã — respondeu Nix, com um tom de gratidão difícil de disfarçar.
— Somos família, não? — disse Cass, forçando um sorriso apesar da dor — Ou você não é minha cunhada?
Nix corou, e eu ri. A tensão do momento se aliviou por um instante. Eu estava quase sem mana, mas juntei o que me restava e curei o braço da minha irmã. Só então percebi: se não fosse a cura mágica, ela teria ficado com sequelas permanentes.
— Não faça mais aquilo! — exclamou Nix, me acertando um tapa leve no peito.
— O quê? — perguntei, surpreso.
— Levar uma pancada daquelas e cair do céu daquele jeito! Achei que você tinha morrido!
— Devia estar prestando atenção na sua frente, e não em mim — brinquei, tentando disfarçar o cansaço.
— Eu achei mesmo que tinha morrido… só não corri até você porque Niana e Cass me seguraram…
Cassiopeia aproveitou o momento e, com um sorriso curioso, provocou:
— Imagino as coisas que meu irmãozinho passou pra mudar tanto assim… Tão diferente que nem posso mais chamar ele de “zinho”. Agora é irmãozão mesmo.
Olhei ao redor. Corpos. Terra revolvida. Ar fétido. Sangue. Morte. Feridos e sofrimento. Me senti enojado. Nos últimos dias, vi e vivi mais mortes do que em toda minha vida. Queria sair dali. Ir embora. Que o cuidado com o “depois da guerra” ficasse com outros.
Olhei para Cass, Nix e Niana.
— Vamos sair daqui? — perguntei. — Ir pra mansão de Jorjen. Tomar um bom banho, comer bem… e então, Cass, vou contar todas as histórias que você quiser ouvir, longe desse inferno.
Nix assentiu, aliviada. Cass foi avisar nossa mãe, fui atrás de Alana e logo estávamos todos prontos.
Caminhamos entre os sobreviventes. À medida que avançávamos, as pessoas me olhavam. Meus companheiros também, claro, mas os olhos se voltavam especialmente para mim. Alguns vinham me cumprimentar, tocar meu ombro, expressar gratidão.
— Obrigado, Lior.
— Que luta… foi incrível.
— Seu desempenho foi… inspirador.
Sorri. Parte do meu plano estava dando certo.
Ao chegarmos à mansão de Jorjen, os portões estavam escancarados, como Nix havia relatado. Entrei na frente, guiado pelos meus sentidos de mana, atento a qualquer sinal de sobreviventes, magia residual ou algo fora do lugar.
Foi num dos depósitos de comida e bebida, escondidos entre sacos de grãos e barris de vinho, que os encontrei. Uma dúzia de serviçais, amontoados, assustados. Entre eles, Anne, uma das minhas serviçais pessoais, me viu e, ignorando qualquer protocolo, correu para os meus braços sob os olhares atentos de Nix e Alana.
Afastei-a gentilmente.
— O que aconteceu aqui?
Os demais se aproximaram, ansiosos por notícias, mas foi Anne quem respondeu, com a voz trêmula:
— Mestre Jorjen enlouqueceu, jovem mestre… Ele atacou os próprios secretários. Comeu as pessoas. Depois, Marcus, o capataz, também mudou. E os mordidos… começaram a se levantar e atacar os outros. Jorjen correu até os portões e os abriu. Um monte daquelas coisas entrou. Nós conseguimos escapar e nos esconder aqui. Barricamos tudo. Estávamos esperando que… tudo isso acabasse.
— Fizeram bem. Não havia como enfrentá-los.
Respirei fundo. Havia muito a fazer ali. A mansão estava imunda, tomada por um ar pesado, denso, como se os horrores ainda sussurrassem pelas paredes. Os corpos… eram pessoas com quem convivi, que serviam a casa há anos. Precisavam de um fim digno.
Levamos horas limpando. Quando o sol começou a nascer, a vontade de comemorar já havia se dissipado por completo.
Reuni os serviçais restantes.
— Vão procurar por suas famílias. Verifiquem quem sobreviveu. Tirem alguns dias. Vocês merecem.
Voltei-me para Cassiopeia:
— Se quiser, fique aqui. Tenho quartos na minha ala. Pode tomar um banho com as meninas, descansar. Amanhã almoçamos juntos e… aí sim, te conto tudo o que aconteceu comigo desde que me perdi na névoa.
Ela assentiu. Seguimos para nossos aposentos. A guerra havia terminado. Mas não a dor. Nem as promessas.
Depois de banhado e trocado, me deitei, esperando Nix. Ela chegou pouco depois.
— E agora, Lior?
— Ainda não posso ir embora. Preciso acompanhar o desenrolar do fim da batalha… frustrar os planos de Annabela e Juliani. Eles não podem ter sucesso. Também tem Claire, Pandora, essa confusão toda com Jorjen. Não achamos o corpo dele. E… por mais que eu queira ir atrás de Selune, não tenho a mínima ideia de por onde começar.
— Entendi… — disse ela, deslizando o dedo pelo meu peito, em provocação. — Senti sua falta.
— Eu também senti a sua…
A puxei para mim, e encerramos, por um tempo, nossas preocupações. O prazer de estarmos juntos, de matar a saudade, tornou-se tudo o que importava. Mais tarde, suados e ofegantes, adormecemos sem pressa, sem planos.
Acordei já com o dia avançado. Nix não estava mais comigo. A casa estava estranhamente silenciosa… Sem Jorjen, sem Selune, Karlom, sem os serviçais. Saí à procura de alguém, Nix, Niana, Alana, Cassiopeia.
Como suspeitava, ouvi vozes vindas da cozinha da casa principal e o cheiro de comida quente fez meu estômago roncar alto.
Encontrei-as lá. Sentadas em volta de uma das mesas de trabalho, mordiscavam pães recém-saídos do forno. Havia também presunto, sangria e vinho com especiarias. No forno, uma cozinheira corpulenta, de face corada, retirava mais pães, ajudada por Anne, que se dividia entre sovar a massa e picar temperos.
— Não lhes dei folga? — perguntei, curioso.
— Não tenho parentes, senhor. A única casa que tenho é esta — respondeu a cozinheira, com simplicidade.
— Eu também — completou Anne, com um sorriso cansado.
— Ainda bem que elas ficaram — brincou Cassiopeia. — Eu nem sei acender o forno, quanto mais fazer pão…
Cocei a cabeça, constrangido. Eu também não sabia.
Sentei-me e comi até me satisfazer. Convidei as serviçais para partilharem a refeição conosco.
Depois, reunidos na sala de estar, devolvi o alaúde de Alana e contei a Cassiopeia sobre minhas viagens, batalhas e experiências. Revelei tudo, ou quase tudo. Ocultei os segredos que pertenciam a outros, como a origem de Pandora, e a ligação com Annabela e Naksa.
O entardecer já se insinuava pelas janelas quando ouvimos batidas à porta. Ela se abriu, revelando Lady Althéa, braço direito de minha mãe.
— Lior. Cassiopeia. Os anciãos vieram… muitos, de diversas casas. Formaram um conselho. Mensageiros já foram enviados para chamar os patriarcas… e o Imperador. — Ela respirou fundo antes de continuar. — E eles querem ouvir o relato de vocês.
Cass me olhou de lado, com um meio sorriso.
— Pronto para mais uma batalha, irmãozão?
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