Capítulo 139: Perante os Anciãos
Vesti-me com pressa e saí para encontrar minha mãe. Cassiopeia me acompanhava, juntos, nos dirigíamos à residência dos Vulkaris, o ponto de apoio mais próximo do Palácio, onde o conselho dos anciãos havia se instalado.
Embora estivesse ansioso para prestar meu depoimento, havia algo que precisava fazer antes. Conversar com minha mãe e trocar de roupa. Os anciãos prezavam pela força, sim, mas também, e talvez mais ainda, pela aparência, pela etiqueta, pelos rituais. A forma era, muitas vezes, tão importante quanto o conteúdo.
Ao chegarmos, fui conduzido a um dos quartos de hóspedes. O ambiente era sóbrio, com móveis escuros, cortinas pesadas e um espelho de corpo inteiro que me encarava com um ar de julgamento silencioso. Sobre a cama, uma roupa de corte impecável me esperava, ladeada por uma camareira em silêncio respeitoso. Observei com alívio que não havia brasões. Não desejava alimentar ainda mais os boatos de que eu era um Vulkaris perdido. Esse tipo de rumor poderia ser perigoso, não apenas para mim, mas para toda a Casa Aníbal.
Ajustava a gola da túnica quando a porta se abriu sem cerimônia.
Minha mãe entrou.
Ela vestia um manto azul-escuro, de tecido pesado, mas elegante, preso nos ombros com um broche de prata. Seus olhos, cansados, procuraram os meus. Assenti para a camareira, que compreendeu o recado e se retirou discretamente.
Aproximamo-nos um do outro sem palavras. Abracei-a com toda a força que me restava, não física, mas emocional. Ela retribuiu com igual intensidade, pousando os lábios em minha bochecha como fazia quando eu era criança.
— Ah, meu filho querido… — murmurou ela, com um suspiro.
— Mamãe… — sussurrei de volta.
Ficamos ali, por um instante que pareceu suspenso no tempo, apenas sentindo o pulsar do coração um do outro. O silêncio entre nós dizia mais do que qualquer frase ensaiada.
Depois de um tempo, ela afastou-se levemente e pousou as mãos nos meus ombros, examinando-me com um olhar crítico e carinhoso.
— Os anciãos chegaram ontem à noite. Já tomaram o Palácio. Eles têm a autoridade das Casas, Lior. Estavam furiosos com tudo o que aconteceu na ilha. Chamaram os oficiais do exército, os administradores imperiais, e os chefes das Casas que ainda têm representantes aqui. Eu mesma já prestei meu testemunho, disse ela, com o tom de quem atravessou um campo minado e sobreviveu.
Assenti, absorvendo a gravidade da situação.
— E o que me recomenda, mãe?
Ela hesitou por um instante, como quem pondera cuidadosamente cada palavra antes de dizê-la.
— Mantenha os segredos que precisar manter… mas não minta. A mentira, aqui, seria um abismo sem volta. Sobre sua verdadeira identidade… — Ela me olhou nos olhos. — Orientei a todos, inclusive Cassiopeia, a manterem a versão de que você é Lior Aníbal. Ganimedes deve continuar sendo apenas um nome entre tantos outros do passado. Qualquer coisa diferente pode trazer consequências sérias. Para você, para mim… e para a Casa Aníbal. Além disso, portar documentos e identidades falsas é um crime grave perante os anciãos.
Respirei fundo, sentindo o peso das expectativas que se acumulavam sobre meus ombros. Organizei os pensamentos e endireitei a postura.
— Estou pronto — anunciei, mais para mim do que para ela.
O Palácio Imperial parecia diferente. Mesmo com sua grandiosidade intacta, havia um ar sombrio pairando no ambiente, como se os próprios corredores soubessem que algo sério estivesse ocorrendo.
Fui conduzido até uma das grandes salas do palácio, reconheci o espaço imediatamente. Ali havia acontecido o baile de máscaras, pouco antes da invasão. Agora, o salão estava completamente transformado. No centro, um grande tapete de tom vermelho escuro cobria o mármore polido, delimitando o caminho que levava a uma cadeira solitária, o meu destino.
Diante da escadaria e do mezanino, uma longa mesa havia sido montada. Atrás dela, sentavam-se seis anciãos. Reconheci Caius Vulkaris, meu avô, com sua expressão severa, postado à direita de uma idosa que ocupava o centro da mesa.
Caius, patriarca da Casa Vulkaris, pai de meu pai Tibérius. Eu só o vira duas vezes em toda a vida, e mesmo assim, de longe, como se sua figura pertencesse a um mundo distinto, separado por um véu de poder e silêncio. Pela minha conta, devia ter mais de cento e vinte anos, mas seu porte permanecia firme e seu olhar, afiado como a lâmina de um punhal mergulhado em gelo. Havia algo de implacável nele, como se o tempo o tivesse respeitado em vez de o corroê-lo.
As outras cadeiras formavam um semicírculo, disposto dos dois lados do salão. Cerca de quarenta e cinco anciãos estavam ali, representando casas grandes e pequenas, todos igualmente poderosos em influência.
Cada passo que me aproximava daquela cadeira solitária fazia meu coração bater mais forte. Era como atravessar um campo de julgamento invisível. Cada olhar que me atravessava parecia pesar sobre meus ombros como chumbo. Tentei parecer calmo, indiferente, mas por dentro… tremia. A experiência de Mahteal me dava alguma força, mas a sociedade daquele tempo era brutalmente diferente da minha.
Quando estava a poucos metros da cadeira, um sacerdote da Igreja do Julgamento e da Retribuição surgiu à minha frente, impedindo minha passagem com uma presença cerimonial.
— Qual seu nome, filho? Diga alto, para que todos ouçam.
— Sou Lior, da Casa Aníbal. Filho de Kaleb e Marta.
Ele me estendeu um tomo grosso, encadernado em couro escuro e reforçado com metal dourado. Havia símbolos gravados em relevo e marcas antigas do Império.
— Jura dizer apenas a verdade?
Coloquei a palma da mão sobre a capa fria do tomo.
— Juro — respondi, com um leve tremor. Sabia que não havia magia ali… mas o peso da tradição era por si só um feitiço antigo.
— Pode sentar-se.
Acomodei-me na cadeira, costas eretas, mãos repousadas sobre as coxas, olhos à frente, nem desafiadores, nem submissos. Apenas firmes.
Foi então que a voz da mulher idosa ao centro da mesa ressoou. Sua presença era quase etérea. Os cabelos brancos como neve contrastavam com a pele enrugada e o olhar firme, frio como o inverno.
Ela se levantou devagar, apoiando as mãos na mesa à sua frente.
— Jovem lorde Lior Aníbal. Desejamos ouvir, de sua própria boca, o relato completo de sua participação nos eventos da invasão dos necros. Desde os dias anteriores à invasão, os primeiros sinais, sua atuação, o que viu e fez, e o que ocorreu depois. Fale com clareza, e com respeito aos presentes.
Engoli em seco. Estava começando.
— Os dias que antecederam a invasão foram intensos… — comecei, a voz soando mais firme do que eu esperava.
E então, narrei. Relatei como fui convidado para o jantar na casa dos Rulmar, omitindo, claro, o episódio do miasma. Falei dos treinos com a equipe Javali, do Matadouro, das lutas. Expliquei como tudo aquilo fazia parte da minha preparação para o Torneio.
Hesitei por um segundo antes de prosseguir. Peguei o copo de água ao meu lado e bebi um gole, tentando manter o foco.
— Minha luta contra Germano foi o auge da minha preparação. Mas antes que pudéssemos começar… a invasão começou.
Não tinha nada a esconder. Com voz firme, revelei que não estive sozinho nos acontecimentos daquela noite. Estavam comigo outros jovens lordes e ladies: Claire Umbrani, Dante, Joaquim, Joana, Gérard Aníbal, Aiden e Victor. Falei de como lutamos lado a lado, da coragem que cada um demonstrou, dos inimigos que enfrentamos, mortos que não morriam, bestas feitas de criaturas remendadas, e a própria loucura da noite.
Quando mencionei a morte de Joana e Victor, minha voz vacilou. As palavras vacilaram em meus lábios e, antes que percebesse, lágrimas começaram a se formar. Ainda me sentia responsável por eles, mesmo sabendo que todos ali haviam escolhido lutar. A culpa era um fardo que não se diluía com justificativas.
Contei como conseguimos sair da arena, com o intuito de percorrer as casas e recolher informações, entender a extensão do ataque. E como, em uma dessas buscas, nos deparamos com a destruição de um dos mausoléus, e com ele, a ruptura do antigo selo que protegia a ilha contra a Névoa.
O choque diante daquilo foi profundo. A percepção da gravidade da situação nos forçou a agir. Decidimos não nos esconder, mas reunir reforços, alertar quem pudéssemos, formar uma linha de defesa e lutar. Não por glória, mas porque sabíamos o que aconteceria se nada fosse feito.
Por fim, relatei o que soubera: que os soldados e guardas foram misteriosamente removidos de seus postos na tarde anterior à invasão. E então, com certa hesitação, narrei a última batalha. Falei da luta com o morto-vivo de poder assombroso, mas minimizei meu papel. Exagerar pareceria vaidade, e naquele lugar, diante daqueles olhos antigos, vaidade poderia ser confundida com mentira.
Assim que terminei, um burburinho se espalhou pela sala, como o farfalhar inquieto de folhas num vento súbito.
A idosa no centro ergueu uma das mãos, e o silêncio retornou com força.
— Como explica — disse ela, com a voz pausada como um martelo que prepara o golpe — que enfrentou e derrotou uma criatura classificada próxima ao sétimo círculo? Sendo você alguém que, segundo todos os registros, ainda não completou sequer o quarto?
Sabia que essa pergunta viria. Ela era inevitável, apenas uma das que surgiriam ate o final de meu depoimento. Era o caminho tortuoso que eu teria de atravessar com cautela.
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