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    Sob os olhares atentos e as perguntas não ditas dos anciãos, me ajeitei na cadeira. O couro rangeu sob meu peso, o som discreto em contraste com o silêncio denso da câmara. A atmosfera ali dentro era sufocante, não por calor, mas pelo julgamento suspenso no ar, como uma lâmina prestes a cair. 

    Para preservar os segredos que ainda precisava guardar, eu sabia que precisaria de ajuda, mesmo que involuntária. Fechei os olhos por um instante, ajustando minha respiração, e mergulhei em meus sentidos. Cada músculo tenso, cada tremor de pálpebras, cada mudança de postura entre aqueles senhores era uma pista. Precisava detectar qualquer mínima reação. 

    — Bem — comecei, minha voz calma, porém firme. — Pode-se dizer que, durante meus treinos incessantes para derrotar Germano — um oponente que, à época, era imensamente superior a mim — acabei descobrindo algo… inesperado. Uma nova forma de organizar o poder. De condensar a mana dentro de nós. 

    Fiz uma breve pausa, como se buscasse as palavras certas, mas na verdade esperava o efeito. 

    — Uma nova forma de cultivo. 

    A palavra caiu como uma pedra em um lago calmo. Vi os corpos antes imóveis se inclinarem, ouvi o frêmito de túnicas sendo ajustadas, e os primeiros murmúrios surgiram como o crepitar de um incêndio distante. 

    Antes que a balbúrdia se transformasse em desordem, a anciã que presidia os trabalhos se ergueu. Seu porte impunha respeito sem esforço, e sua voz, apesar da idade, era clara e firme, agora suavizada por um tom quase maternal. 

    — Ora, ora… — disse, os olhos semicerrados me examinando com mais atenção. — Uma descoberta dessa magnitude… não deveria ser compartilhada com o conselho? 

    Ela sorria, mas não havia nada de gentil naquela expressão. Era o tipo de sorriso que não tocava os olhos, que escondia armadilhas atrás da cortesia. 

    Não me preocupei. Explicar o método não me causaria prejuízo. Mesmo que eu revelasse os princípios, os primeiros a conseguir gerar um núcleo de sol de mana ainda levariam muito tempo. E ainda assim, essa não era a resposta completa para a derrota do lich, e isso, eu jamais revelaria. 

    Para isso, precisava de uma ajuda involuntária. 

    Levantei-me lentamente e me virei para encarar um dos anciãos atrás de mim, dirigindo-me com formalidade: 

    — Na verdade, prezada anciã, minha descoberta pode ser considerada um tesouro de família. E acredito que o ancião representante da Casa Aníbal concorda comigo. 

    O homem era magro como um galho seco, com cabelos brancos apenas nas laterais da cabeça e olhos atentos, embora cansados. Eu não lembrava de ter visto seu nome nos relatórios de inteligência que recebi de Jorjen ou de Selune. Mas ele era o ancião da minha “Casa”. E agora, meu escudo. 

    Os olhares que antes estavam cravados em mim como espinhos mudaram de direção, se voltando para ele. 

    Apesar da surpresa evidente, talvez mais com minha ousadia do que com a situação, ele se recompôs rapidamente. Sabia o valor do que eu trazia. Sabia o que isso significava para a Casa Aníbal na hierarquia. Endireitou-se, a voz cristalina e segura: 

    — Pelo que vejo, sim, jovem Lior. Sua descoberta deve ser considerada um tesouro de família. 

    Respirei fundo. Um pequeno alívio. Mas mal tive tempo de saboreá-lo. 

    Uma voz grave e firme cortou o ambiente como um trovão. 

    — Então o tesouro pertence aos Vulkaris. 

    Senti meu estômago afundar. 

    Era ele. Meu avô. 

    — O garoto é Ganimedes Vulkaris — continuou, sem pressa, saboreando as palavras. — Renascido dos mortos e cheio de surpresas, é o que chegou aos meus ouvidos.

    O impacto foi imediato. Murmúrios se transformaram em exclamações. Alguns se levantaram, outros se viraram para se entreolhar. 

    Me sentei de volta, controlando o ritmo da respiração, e esperei. Sabia que não adiantava rebater de imediato. A anciã se levantou novamente. Quando falou, sua voz se sobrepôs a todo o alvoroço: 

    — Chega de bagunça! Silêncio! — Seus olhos se fixaram em mim como punhais. — O que tem a dizer sobre isso, Lior Aníbal? 

    A sala silenciou. 

    Levantei o queixo, minha postura composta. 

    — Meu nome é Lior Aníbal. Pertenço à Casa Aníbal. Não posso acreditar que pessoas tão sábias e vividas como os senhores e senhoras aqui presentes possam dar ouvidos a rumores e histórias de corredores. Quantas pessoas já voltaram da Névoa? E voltaram… mudadas, com dons que não possuíam antes? Talvez seja fácil se agarrar a histórias de crianças e lendas antigas, mas a realidade é uma só. E eu não posso mudá-la. 

    A tensão pairava no ar como uma nuvem carregada. 

    Meu avô se sentou, sua raiva evidente nos músculos rígidos do rosto envelhecido. Mas a anciã, após alguns segundos em silêncio, assentiu quase imperceptivelmente e prosseguiu: 

    — Que entrem a garota e o inquisidor. 

    Senti o baque no estômago antes de vê-la. 

    O sacerdote entrou primeiro, os passos solenes. Claire vinha logo atrás, guiada por ele. 

    Minha pulsação acelerou. Não esperava por isso. Mas mantive o controle. Graças a Mahteal, não havia nenhum traço de miasma em mim. 

    Enquanto ela se aproximava, comecei a vasculhar as memórias deixadas por Mahteal, agora minhas. Precisava encontrar, entre as camadas de lembranças e saber oculto, alguma técnica discreta de proteção contra a detecção de mentiras. Eu achava que sabia de um jeito seguro, sem despertar suspeitas.

    Claire foi conduzida até o centro da sala. Um servo trouxe uma cadeira, e ela se sentou, os ombros tensos, os olhos fundos. Estava abatida, mas não parecia ferida. Seus olhos buscaram brevemente os meus e desviaram. Senti raiva de seus tios por sujeitarem ela à aquilo.

    Outra cadeira foi colocada do lado oposto. Era um julgamento. E eu no banco dos réus. 

    Dante entrou pela porta lateral, o olhar já me procurando. Quando me encontrou, seus olhos me fuzilaram com ódio contido. Ele se sentou em silêncio. 

    A anciã, impassível, estreitou os olhos na minha direção. 

    — Temos algumas acusações contra você, Lior Aníbal. Acusações sérias. Seu envolvimento na trama que resultou no ataque à capital precisa ser esclarecido. E, mais grave ainda, há quem diga que você tenha feito uso de miasma. 

    Pausou. E então: 

    — Diga, diante deste conselho: é culpado ou inocente? 

    Olhei nos olhos dela. 

    — Sou inocente. 

    — Pois bem — disse ela, com um leve aceno. — Vossa santidade, por favor, ative a Aura da Verdade. 

    O sacerdote fechou os olhos e começou a orar. As palavras em língua sagrada ecoaram pelo salão. Senti a mana se agitar, como um campo sutil, invisível, que se adensava ao nosso redor. 

    Rápido, desenhei mentalmente as runas. 

    Sabia que as magias de detecção da Igreja focavam nas reações corporais, não nos pensamentos, exceto em casos extremos, quando a mente era invadida à força. Isso não aconteceria ali. Não diante dos anciãos. 

    Projetei as runas para dentro de mim, pequenas linhas de controle sensorial. Com elas, teria domínio absoluto sobre minha respiração, ritmo cardíaco, contrações involuntárias. Uma marionete de mim mesmo. 

    A aura se instalou. A mana do sacerdote cobriu o espaço como um véu translúcido. 

    — Leia a acusação, ordenou a anciã. 

    O sacerdote que estava atrás de Dante desenrolou um pergaminho com gestos cerimoniais. Limpou a garganta. Sua voz era fria, neutra, como se recitasse uma sentença há muito escrita: 

    — Dante Avaris acusa Lior Aníbal de conluio com os Necros, fazendo uso de magia profana e miasma. 

    Um leve silêncio caiu. 

    — O que diz em sua defesa, Lior Aníbal? 

    Me levantei. Encarei todos. 

    Agora, era minha vez de falar.
     

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