Capítulo 142: Surpreendendo todos
A anciã voltou lentamente para a mesa central e se sentou com a solenidade de quem carrega séculos de autoridade sobre os ombros. Fez um leve gesto com os dedos, e o sacerdote postado ao fundo se adiantou alguns passos, colocando-se no centro da sala.
— Incrivelmente — disse o homem, com a voz embargada por um misto de surpresa e reverência. — Nenhuma mentira foi proferida. Todos os depoentes estão convictos de suas versões.
O salão mergulhou em um burburinho inquieto. Os membros do conselho trocaram olhares, alguns murmurando entre si, outros se recostando como se tentassem digerir a informação.
— Chamem o inquisidor — declarou a anciã, com a voz calma e firme como uma lâmina.
Houve um breve silêncio. Em seguida, os portões ao fundo da câmara se abriram pesadamente, revelando uma figura encapuzada que adentrava com passos suaves, mas carregados de intenção. A figura estava envolta em mantos escuros, cobertos de fitas bordadas com runas douradas que cintilavam levemente sob a luz mágica do salão.
A figura caminhou até quase me alcançar, mas no último instante desviou a trajetória e se dirigiu à mesa central. Ali, fez uma reverência baixa, quase coreografada, curvando o corpo inteiro em um gesto de respeito rígido.
— Inquisidora Isadore se apresentando perante o conselho — disse a figura, revelando uma voz feminina, aveludada e doce, mas com um tom gelado, quase desdenhoso, que serpenteava por entre as palavras.
— Faça a inspeção desses três — ordenou a anciã, apontando para mim, Claire e Dante.
Isadore inclinou levemente a cabeça.
— A garota já foi inspecionada, milady. Deseja que eu repita o exame?
— Qual foi o resultado? — perguntou a anciã, erguendo uma sobrancelha arqueada.
— Está completamente livre de corrupção — respondeu a inquisidora. — Tão pura quanto no dia em que veio ao mundo.
A anciã reprimiu um sorriso sarcástico, uma expressão breve que escapou antes de sua máscara de neutralidade retornar ao lugar.
— Então não há necessidade de repetir nela.
A inquisidora virou-se para mim, afastando o capuz. Seus cabelos curtos, negros como breu, emolduravam um rosto anguloso e belo. Os olhos, da mesma cor intensa, pareciam me atravessar como se procurassem algo além da carne. O sorriso em seus lábios tinha algo de perturbador — e me remeteu, por um instante, à criatura que havia me tocado no pântano. Drael.
Ela se aproximou até que estivesse a menos de um palmo de mim e pousou as mãos em meus ombros. Sua voz desceu para um sussurro, carregada de uma ameaça disfarçada de gentileza:
— Se resistir, vai doer.
Senti sua mana penetrar em mim como uma maré densa e intrusiva, fria no início, mas carregada de uma intenção voraz. Ela se espalhava, tateando cada fibra do meu ser, sondando os veios por onde minha mana fluía, espreitando as dobras da minha alma, tentando alcançar o coração do meu núcleo. Era como dedos invisíveis revirando meus segredos mais profundos. E eu permiti.
Durante quase um minuto, o salão inteiro pareceu conter a respiração. O silêncio era absoluto, tenso, como se todos esperassem por algo que não sabiam nomear. Então, sem aviso, a inquisidora soltou um grito estrangulado, como alguém que tocasse uma lâmina incandescente. Recuou bruscamente, as mãos erguidas como se tivesse sido ferida, os olhos arregalados em choque.
Deu dois passos trôpegos para trás, ofegante. Seu olhar se fixou em mim com um misto de incredulidade e temor.
Guardas deram um passo à frente, puxando as armas das bainhas num movimento instintivo. O salão se agitou.
— O que foi isso? — perguntou a anciã, já em pé, os olhos brilhando de interesse.
Isadore respirava com dificuldade, claramente abalada. Sua expressão estava cheia de algo entre fascínio e receio.
— Incrível… — murmurou. — O núcleo desse homem é… diferente de tudo que já vi. Há um poder ali… uma radiância que quase me feriu.
O murmúrio virou uma torrente de vozes exaltadas. O conselho inteiro se alvoroçou. A presidente da sessão bateu com o bastão para tentar restaurar a ordem, mas demorou alguns minutos para que os ânimos se acalmassem.
Foi quando percebi que o ancião da Casa Aníbal havia se colocado ao meu lado, como um escudo silencioso. Seu gesto, por si só, dizia tudo.
Sorri de leve. Em uma sociedade onde apenas a força e poder ditava respeito, eu acabara de conquistar algo que nenhuma retórica poderia oferecer. Dante estava acabado.
Quando o silêncio foi enfim restaurado, a anciã voltou-se para Isadore.
— E quanto à inspeção em Lior?
— Limpo — disse ela, ainda um pouco trêmula.
— Agora examine Dante.
O rapaz tentou se afastar, mas o sacerdote o segurou firmemente pelos ombros, fixando-o no lugar.
A inquisidora avançou e repetiu o gesto. Dante grunhiu ao sentir a mana invadir seu corpo.
Depois de algum tempo, Isadore retirou as mãos e falou, sem muita emoção:
— Há um resquício de miasma, sim, mas nenhuma corrupção ativa.
Outro alvoroço. A informação corroborava minha versão dos fatos — e enterrava, definitivamente, a narrativa de Dante.
A anciã cochichou com os membros do conselho mais próximos. Alguns balançaram a cabeça, outros simplesmente assentiram. Então ela se voltou para todos e anunciou:
— Lior e Claire estão livres para ir. No entanto, gostaria que aguardassem em uma sala reservada. Desejo conversar com ambos em particular mais tarde.
Levantei-me sem pressa, deixando escapar um suspiro. Claire fez o mesmo, o rosto ainda tenso, mas agora com um vislumbre de alívio.
Um serviçal surgiu, curvando-se brevemente, e nos guiou por um corredor decorado com tapeçarias antigas até uma ampla sala de espera. O ambiente era luxuoso e acolhedor, com um grande sofá de couro escuro, uma mesa de centro de madeira entalhada, sobre a qual repousavam quitutes variados e uma jarra de vinho fumegante, temperado com especiarias finas.
Assim que a porta se fechou, Claire desabou. Ela começou a chorar silenciosamente e se atirou em meus braços. Seu corpo tremia.
— Me desculpe, Lior… — disse ela, entre soluços abafados contra meu peito.
Retribuí o abraço com suavidade, passando a mão por seus cabelos de forma reconfortante.
— Não há nada a perdoar.
Ela se afastou ligeiramente, os olhos marejados fixos nos meus.
— Não por hoje… mas por antes. Por não conseguir acreditar que meu tio, minha tia… e Zia… seriam capazes de fazer uma coisa dessas. Me denunciar aos inquisidores? Nós poderíamos ter sido executados se eles acreditassem na versão deles…
Toquei seu rosto com cuidado.
— Por isso mesmo vou mandar um serviçal buscar suas coisas. A partir de agora, você vai morar comigo, na mansão de Jorjen.
Claire me olhou, surpresa. Os olhos arregalados, a boca entreaberta, talvez tentando decifrar minhas intenções, talvez se perguntando se havia algo mais por trás das palavras.
Mas minha mente estava limpa: eu queria protegê-la. E mais do que isso, queria prepará-la. Claire tinha potencial, e eu precisava de alguém como ela ao meu lado para as mudanças que pretendia trazer à magia e ao cultivo deste mundo.
— Nix está de volta — completei — perguntou de você.
Ela parou de chorar. Um sorriso suave se formou em seus lábios, e ela assentiu com a cabeça, finalmente em paz.
— Obrigada… — disse, num sussurro.
E naquele momento, soube que havíamos vencido mais do que uma audiência: havíamos plantado a primeira semente de um novo futuro.
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