Capítulo 145: Notícias de Jorjen
No dia seguinte, fui acordado por uma batida suave na porta. Ainda meio grogue, olhei em volta. Nix já havia despertado, o canto da cama onde ela dormia estava vazio, os lençóis ainda quentes.
— Entre — disse, minha voz rouca pelo sono.
A porta se entreabriu e o rosto de Anne surgiu entre as frestas, com sua habitual expressão contida.
— Lorde Lior — ela disse com um tom respeitoso, mas direto —, alguns oficiais da guarda estão aqui. Querem falar com o senhor.
Hesitou um instante antes de continuar:
— Outra coisa… Lorde Gérard retornou ontem à residência. Trouxe uma convidada com ele.
Gérard de volta. Provavelmente acompanhado por Domina. Não era difícil de imaginar.
Suspirei. Ele merecia algum descanso. Depois de tudo que fizemos, se alguém merecia viver uma vida tranquila, era ele. Eu os deixaria em paz.
— Vou me aprontar e já os recebo — respondi, me levantando.
Vesti-me com rapidez, optando por algo discreto, mas digno. Ainda me sentia um intruso usando roupas de senhor da casa. Ao terminar, fui até a sala de estar, onde os oficiais me esperavam com expressões graves.
— Pois não, senhores?
O mais velho deles deu um passo à frente. Era um homem de meia-idade, com barba curta e olhos fundos, acostumado a más notícias.
— Jovem lorde, encontramos o corpo de Lorde Jorjen. Ele… morreu durante a invasão. Precisamos saber se há um testamento registrado. E, claro, quem ficará responsável pela Casa Aníbal a partir de agora.
A notícia me atingiu com um misto de surpresa e culpa. Eu não tinha grande afeto por Jorjen, a relação entre nós era, no mínimo, complexa. O Avatar do vazio o tinha transformado em um escravo, sua mente sob meu controle. Mas, mais do que isso… era alguém que eu deveria ter protegido. A lembrança dele sendo infectado com a semente do Carniçal pesou nos meus ombros como chumbo. Aquilo tinha sido minha culpa.
— Vou me reunir com meu primo. Depois procurarei os documentos no escritório de Jorjen. Caso eu encontre o testamento, a quem devo apresentar?
— Normalmente seria entregue na área administrativa do Palácio — respondeu o oficial, formal.
— Certo — murmurei, assentindo. — Mais alguma coisa?
— Precisamos que o funeral seja organizado — acrescentou outro, mais jovem. — É o protocolo.
Claro. O funeral. Tinha me esquecido desse “detalhe”. Respirei fundo. Eu não fazia ideia de por onde começar.
Os oficiais se despediram com acenos contidos, e eu fui direto ao escritório de Jorjen. Era um cômodo amplo, com estantes forradas de livros e papéis, e a mesa grande tomada por uma confusão de documentos. Sempre imaginei que ele era mais organizado. Talvez tivesse desistido de tudo nos últimos dias.
“Selune saberia o que fazer”, pensei. Ela sempre tivera mais cabeça para administração, contratos, selos, títulos. Eu não entendia nada daquilo.
Fechei os olhos por um momento, expandindo meus sentidos, procurando qualquer compartimento oculto, qualquer fundo falso em gavetas, armários, paredes. Comecei a bater nos móveis, um por um, escutando o som da madeira, buscando inconsistências. Encontrei alguns compartimentos com pastas organizadas por datas, outros com nomes e selos que eu mal reconhecia.
Mas à medida que a pilha de documentos crescia sobre a mesa, meu ânimo diminuía. Cada pasta parecia uma sentença de tédio e burocracia. Ainda assim, não podia ignorar aquilo. O futuro da Casa dependia disso.
Foi quando duas cabeças apareceram na porta, uma com orelhas vulpinas erguidas e olhos dourados curiosos, a outra com cabelos castanhos presos de forma descuidada, tímida, mas atenta.
— O que está fazendo? — perguntou Nix, cruzando os braços, com uma sobrancelha arqueada.
— Tentando encontrar o testamento de Jorjen. E tentando entender o mínimo sobre os negócios da Casa Aníbal, respondi, jogando mais uma pasta na mesa com um suspiro.
Nix entrou, fez uma careta ao ver a bagunça e balançou a cabeça. Claire, por sua vez, ficou na porta por um instante antes de se aproximar devagar, os olhos escaneando os documentos.
— Você está fazendo tudo errado — disse ela, com uma doçura quase maternal, mas direta.
Antes que eu pudesse responder, ela já havia começado a mexer nas pilhas, reorganizando os papéis com movimentos precisos. Seus dedos iam de uma pasta a outra, separando títulos, datas e selos com naturalidade.
— Você entende disso? — perguntei, curioso.
Ela mordeu o lábio inferior e respondeu com um encolher de ombros tímido.
— Mais ou menos… Eu ajudava meu tio com os documentos da Casa Umbrani. Tinham bem mais papéis que isso, na verdade.
Claire, sempre se diminuindo. Mesmo quando claramente sabia mais que todos nós ali. Sorri e levantei as mãos, dando um passo para o lado.
— Então… são todos seus.
Ela sorriu de leve, e foi tomar o lugar na cadeira que antes pertencia a Jorjen. A maneira como se sentou ali, com respeito, mas sem hesitação, me deu a estranha sensação de que aquele lugar a reconhecia. Ou talvez fosse eu que começava a ver, finalmente, onde ela se encaixava.
Sentei-me num dos sofás laterais, observando-a trabalhar. Ela era metódica, paciente, mas com leveza. Como se transformar caos em ordem fosse algo natural para ela. Nix, por outro lado, se entediou rapidamente. Encostou-se à parede, bocejou discretamente, e então se despediu com um beijo rápido na minha têmpora antes de sair, o rabo balançando preguiçosamente.
Claire permaneceu. Ajeitou uma mecha de cabelo atrás da orelha e continuou organizando, como se aquele fosse o mundo dela. E por um instante, me peguei desejando que fosse mesmo.
Ficamos em silêncio por um bom tempo, o único som era o leve farfalhar de papéis sendo movidos, e o ocasional suspiro dela enquanto lia alguma coisa mais complicada. Eu observava. Talvez não devesse, mas não conseguia evitar. Havia algo em vê-la ali, centrada, útil, presente, que me tocava de uma forma estranha. Talvez eu tivesse aberto uma porta por onde eu estava deixando ela entrar.
— Você está me encarando — ela murmurou sem desviar os olhos dos papéis.
— Estou admirando o seu talento — respondi, com um meio sorriso. — E também me perguntando como alguém tão doce veio parar no meio do nosso caos.
Claire corou, mas não levantou o rosto. Apenas respondeu, quase num sussurro:
— Eu me pergunto a mesma coisa, às vezes. Mas… eu quero estar aqui. Com você, Lior.
Essas palavras me acertaram mais do que qualquer golpe de espada. Era tão simples, “quero estar aqui,” e ao mesmo tempo tão profundo. Ela não estava ali por obrigação, nem por medo. Ela estava tentando pertencer, achando seu espaço.
Me levantei devagar e me aproximei. Ela percebeu, mas não recuou. Apenas largou a pena e empurrou levemente uma pilha de papéis para o lado.
— Isso tudo vai me ocupar por horas — comentou, com um sorriso nervoso.
— Então você merece uma pausa.
Ela ergueu os olhos para mim. Havia algo nos olhos de Claire que sempre me prendia — uma mistura de insegurança e coragem, como se cada pequeno gesto fosse um salto de fé. Me inclinei, devagar, deixando espaço para que ela recuasse, mas ela não o fez.
O beijo que se seguiu foi tímido, quase hesitante. Nossos lábios se tocaram com leveza, como se ambos estivéssemos testando uma ponte ainda em construção. Um instante delicado, frágil, mas cheio de promessa. Claire se afastou logo em seguida, os olhos arregalados, como se não tivesse certeza do que acabara de acontecer.
— Desculpa — disse ela, corando ainda mais. — Eu… só…
— Claire — interrompi, com voz baixa — não tem nada para se desculpar. Foi… maravilhoso.
Ela olhou para mim, mordeu o lábio de novo e assentiu, ainda tímida.
— Eu quero fazer parte disso, Lior. Mesmo com tudo novo, mesmo com o medo. Eu só… ainda não sei como.
— Não precisa saber agora. Estamos todos tentando entender o que vem depois. Só… fica. Um passo de cada vez.
Ela respirou fundo, parecendo aliviada. E naquele pequeno instante, com a luz da manhã entrando pelas janelas e iluminando os papéis ao redor, Claire sorriu. Não o sorriso inseguro que eu já conhecia, mas algo mais sincero. Um começo.
Ficamos em silêncio por alguns instantes, sentados lado a lado, até que ela voltou a se concentrar na papelada. Seus olhos correram por um dos cantos da escrivaninha com atenção redobrada.
— Isso aqui… está estranho — disse, inclinando-se para dentro da gaveta. — Tem algo solto no fundo.
— Um compartimento escondido?
Ela assentiu. Pegou um punhal de decoração que estava sobre a mesa e usou com cuidado para forçar a base da madeira. Um estalo seco ecoou e o fundo cedeu, revelando um espaço oculto.
Claire retirou o conteúdo com cuidado. Havia documentos enrolados com tiras de couro escuro e um embrulho grosso, selado com cera.
— Mais segredos do nosso querido Jorjen — murmurei, me aproximando.
Eu já sabia que ele estava envolvido com o Matadouro. Era um dos fundadores, junto com Rosa e outros nomes importantes. E sabia que tinha negócios fora dos registros da Casa. Mas aquilo… parecia mais estruturado do que eu imaginava.
Claire desenrolou os primeiros papéis. Seus olhos se estreitaram enquanto lia.
— Registros de remessas ilegais… compra de escravos… subornos… isso é muito mais do que simples associação com o Matadouro.
— Ele construiu uma rede — murmurei. — E fez dela sua principal fonte de renda.
Claire tirou um envelope de dentro do embrulho selado. O lacre trazia o brasão da Casa Aníbal. Partiu-o com cuidado e desenrolou o pergaminho com olhos atentos.
— É o testamento dele.
Tomei o documento de suas mãos e li em silêncio.
“Deixo minha mansão, bens, contas e negócios a meu sobrinho, Lior Aníbal. Minhas obrigações como representante da Casa devem ser decididas pelo Conselho, conforme o costume.”
Suspirei e fechei os olhos por um instante. Era previsível, ele não tinha herdeiros diretos e, dominado como estava era natural que me visse como o próximo da linhagem. Mas herdar aquilo tudo… a mansão, os negócios, até mesmo essa teia de sujeira cuidadosamente escondida… era um fardo que eu não sabia se queria carregar.
— E agora? — perguntou Claire, delicadamente.
— Agora… vou levar o testamento e os registros principais ao Palácio. O restante deixamos guardado por enquanto, até entender como o Conselho vai se posicionar.
Ela assentiu. Depois, com a voz baixa, falou:
— E o funeral? Já decidiu o que fazer?
— Ainda não — admiti. — Me cobraram isso hoje cedo. Não sei nem por onde começar.
— Posso cuidar disso — disse ela, sem hesitar. — Já organizei cerimônias menores, ajudei com a administração de eventos na Casa Umbrani. E… sei que você tem muito em que pensar. Deixa isso comigo.
Olhei para ela, surpreso e agradecido.
— Obrigado, Claire.
Ela baixou os olhos de novo, tímida, mas havia algo diferente ali, um pequeno fio de orgulho, talvez. Um passo silencioso em direção a um lugar onde ela queria estar. Não apenas ao meu lado, mas dentro do que construímos.
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