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    Na manhã seguinte, parti cedo rumo ao Palácio. O ancião da Casa Aníbal, Lorde Carlos, já me aguardava. Ao chegar, fui conduzido por um serviçal através de corredores movimentados até um cômodo discreto, transformado em escritório improvisado. As paredes nuas e a mobília funcional deixavam claro: aquele era um espaço de uso múltiplo, prático, não decorativo.
     
    O Palácio estava em polvorosa. Nobres, funcionários, guardas, todos pareciam ocupados em tarefas urgentes. Havia algo no ar, uma tensão e expectativa.
     
    Virei-me para o serviçal que me escoltava.
     
    — O que está acontecendo?
     
    — Os patriarcas… e o Imperador estão voltando — respondeu ele com uma reverência curta, como se até falar já fosse demais.
     
    Meu sangue ferveu ao pensar nos nomes de Juliani e Annabela. Respirei fundo. Não era hora de deixar a raiva me dominar.
     
    Ao entrar na sala, Lorde Carlos me aguardava já sentado. O mesmo homem que, dias atrás, havia me negociado com a Casa Umbrani. Fiz uma mesura formal antes de ocupar a cadeira à sua frente.
     
    — Lorde Carlos — comecei, direto. — Vim para discutir a representação da Casa Aníbal em Thallanor.
     
    Ele entrelaçou os dedos sobre a mesa, seus olhos cravados em mim com aquela serenidade que apenas os mais velhos e astutos sabem manter.
     
    Continuei:
     
    — Herdei os bens e os negócios de Jorjen, tentarei honrar essa escolha. Mas representar a família politicamente… isso está além das minhas habilidades, e talvez do meu interesse.
     
    — Sei disso — disse ele, com um leve sorriso nos lábios. — Nunca esperei que você assumisse essa carga. Pelo menos, não ainda. Pelo que ouvi, você é um desastre social, não é mesmo? O tal “Terror dos Vulkaris”?
     
    Não pude evitar uma careta. Ele tinha razão. Meu envolvimento no episódio com Cassiopeia e o duelo subsequente havia me queimado com muitos nobres. Eu era tudo, menos diplomático.
     
    Ele percebeu minha reação e deu uma risada seca, mas não ofensiva.
     
    — Não se preocupe. Não vamos empurrar isso sobre seus ombros agora. O casamento é o primeiro passo. Depois consolidamos sua posição.
     
    — Sobre isso… — comecei, hesitante.
     
    — Não aceitamos “não” como resposta, Lior.
     
    — Eu sei — suspirei. — Só não sei se tenho tantas pretensões políticas assim.
     
    Ele inclinou-se levemente para frente, com os olhos semicerrados.
     
    — Pretensões ou não, você acendeu um fogo que agora ninguém consegue apagar. Devia ter pensado nisso antes de roubar a cena na invasão. As histórias sobre o que você fez… circulam como lenda. Entre soldados, plebeus, nobres… todos falam do homem que salvou Valis Nonnar e a cidade. A cada repetição, você se torna maior. Tenha certeza que não poderá se esconder disso.
     
    Cocei a cabeça, desconfortável. Eu sabia que isso poderia acontecer, mas ouvir da boca dele tornava tudo mais real.
     
    — Amanhã — ele prosseguiu — o Imperador fará um discurso aberto. Haverá anúncios importantes. Inclusive… sobre o torneio, os jovens e tudo mais. Havera uma cerimônia para lamentar os muitos mortos.
     
    — Ainda pensam em realizá-lo? O torneio?
     
    — Isso será anunciado amanhã. Tenha paciência. Muitas decisões estão sendo revistas. Juliani se esqueceu de que seu poder não é absoluto — sua autoridade vem de nós, os anciãos, e agora… descobrimos coisas interessantes. 
    Ele fez uma breve pausa, os olhos semicerrados avaliando minha reação antes de continuar: 
    — Tudo vai depender do que cada casa pode ganhar com isso. Mortes de jovens? Isso é conversa fiada. Eles não se importam. Para as grandes casas, vidas são números. E números podem ser repostos. Enquanto falamos, novas gerações estão sendo moldadas, treinadas, lapidadas. Uma geração inteira sacrificada não significa nada se o preço for influência, prestígio… poder.
     
    Ele parou. Esperei, achando que revelaria algo mais. Mas não o fez.
     
    — Tenho sua licença?
     
    Ele fez um gesto simples com a mão, indicando a porta. Quando me levantei para sair, sua voz me alcançou de novo:
     
    — Três meses parecem muito tempo. Mas passarão num piscar de olhos. O pessoal do casamento começará a organizar tudo com você e suas noivas a partir da próxima semana. Estamos correndo contra o tempo. Somos uma casa pequena, Lior, mas os Umbrani são a espinha dorsal do Império. Os Imperadores sempre tiveram laços conosco, de uma forma ou de outra. Sua responsabilidade… é grande. E seus passos, a partir de agora, serão vigiados. Por todos.
     
    Assenti em silêncio e saí.
     
    A preocupação me acompanhou no caminho de volta. Claire estava em casa, cuidando dos preparativos para o funeral, e embora eu não tivesse muito a contribuir com os detalhes, queria estar presente. Apoiar. Compartilhar o peso com ela.
     
    Ao chegar à mansão, tive uma surpresa.
     
    Uma enorme cobertura havia sido erguida sobre o gramado da frente, criando um espaço cerimonial amplo. Tecidos brancos ondulavam com a brisa, e pessoas corriam de um lado ao outro, ajeitando cadeiras, posicionando arranjos florais, supervisionando mesas e trilhas. Era como assistir a um balé caótico, mas eficiente.
     
    Claire veio ao meu encontro assim que entrei. Seu rosto iluminou-se ao me ver, mas a tensão logo falou mais alto. Me beijou rápido, sem cerimônia, e começou a desfiar uma torrente de preocupações, sobre flores que haviam chegado em tons errados, sobre convidados que confirmaram tarde demais, sobre o clima, os músicos, os discursos.
     
    Francamente… ouvi metade. Talvez menos.
     
    — Está me ouvindo, Lior?
     
    — Mais ou menos — admiti, com um sorriso de canto de boca. — Mas tenho certeza de que tudo vai dar certo, Claire.
     
    Ela franziu o cenho e me empurrou de leve, contrariada. Fechou a cara por uns segundos. Mas logo voltou à sua maratona de tarefas.
     
    Acabamos almoçando ali mesmo, no jardim, sentados entre caixotes de flores e listas de confirmação. Até Alana, Nix e Niana se envolveram, cada uma a seu modo. Nix, sempre prática, organizava os guardas e a segurança com precisão militar. Niana ajudava na decoração, enquanto Alana supervisionava a organização das bebidas e a disposição das mesas e os músicos.
     
    O tempo passou num piscar de olhos. Quando faltava pouco mais de uma hora para a cerimônia, nos recolhemos para nos banhar e trocar de roupas. Claire havia escolhido tudo com extremo cuidado, nossas vestes, os adornos, até os tons das joias.
     
    A etiqueta das grandes casas era uma arte em si. E Claire… ela a dominava com maestria.
     
    Enquanto me vestia, não pude evitar compará-la a Cassiopeia, minha irmã. Esta era uma guerreira, feroz e orgulhosa. Mas Claire… Claire se tornava outra coisa. Uma dama. Uma organizadora. Líder de uma casa. Sem minha mãe por perto, não tenho dúvida de que Cassiopeia se perderia no meio de tudo aquilo.
     
    Claire não. Claire florescia. E eu, observando, me dava conta de que havia muito mais nela do que eu imaginava.
     
    Ela não era apenas uma companheira. Era um alicerce. Uma força silenciosa, mas constante. Bastava deixá-la brilhar, dar-lhe espaço, apoio e confiança, e ela florescia, revelando seu talento. E isso… isso eu lhe daria. Não por obrigação, mas porque ela merecia. Porque era o certo.
     
    Me olhei no espelho, ajustando a lapela do traje formal preto. O emblema prateado da Casa Aníbal reluzia discretamente no peito, e uma capa curta, também preta, caía sobre meus ombros, com sobriedade. O reflexo que me encarava parecia o de outro homem, mais sério, mais velho, mais… comprometido.
     
    Ao meu lado, Nix estava deslumbrante. Seu vestido preto abraçava suas formas com elegância. Os cabelos estavam presos em um coque impecável, e um véu delicado caía sobre o rosto como uma sombra sutil. Havia dignidade em sua postura, uma graça sóbria que me tocava mais do que qualquer palavra poderia.
     
    Uma batida leve interrompeu o momento.
     
    Claire entrou, e por um instante, o tempo pareceu desacelerar. Também de preto, seu vestido era um pouco mais ajustado, desenhando sua silhueta com precisão. O véu cobria seus traços com discrição, mas não escondia a intensidade em seus olhos. Ela estava linda. Solene. Forte.
     
    — Vamos? — disse, a voz firme e baixa. — O sacerdote acabou de chegar.
     
    Assenti, sentindo o peso do momento cair sobre mim com a mesma suavidade de uma nevasca, silenciosa, mas inevitável. Era hora.

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