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    Estava à frente do pavilhão, recebendo os convidados e suas condolências. Sentia-me um impostor, nem mesmo era um verdadeiro Aníbal. Nix e Claire me ladeavam na recepção, enquanto Alana e Niana já estavam sentadas em seus lugares, discretas e observadoras.

    Entre os que chegavam, reparei em Rosa e Pandora, que surgiram juntas. Sentaram-se ao lado de três mercadores que eu não conhecia: um homem magro, de pele escura e olhos atentos; outro, albino, com expressão serena e indecifrável; e uma mulher baixa e rechonchuda, com um olhar astuto. Rosa parecia conhecer os três muito bem.

    Logo, figuras ainda mais imponentes adentraram o recinto. Lady Isolde e Cassiopeia surgiram com a graça contida dos que conhecem o peso do luto. Em seguida, Lorde Carlos, o ancião da Casa Aníbal, acompanhado de mais dois lordes da mesma linhagem, cruzou o salão com passadas firmes, compondo a comitiva dos velhos pilares da Casa.

    Gérard, meu primo, também estava lá, seu rosto marcado pela tristeza. Ao seu lado, Domina, com seus cabelos roxos presos numa longa trança, parecia uma estátua de mármore, silenciosa e impenetrável. Gérard era sobrinho legítimo de Jorjen. Diferente de mim, carregava aquele sangue com orgulho.

    Para minha surpresa, Lenora Umbrani também comparecera. Com ela, vieram alguns anciãos que não consegui identificar de imediato. Senti, com desconforto, que estavam ali por mim, não por respeito ao falecido. Me senti um bicho raro em exposição.

    Pouco depois, o som ritmado de passos reverberou pelo salão. Um sacerdote de Thalos adentrou o pavilhão, envolto em mantos escuros que arrastavam levemente o chão. Sua presença impunha silêncio, e sua voz, grave e cerimonial, preencheu o ambiente:

    — Hoje, sob o olhar de Thalos, reunimo-nos para honrar Jorjen Aníbal, um homem que ajudou a erguer sua Casa perante as graças do Império. Foi negociante, mago, alicerce de Thallanor, e sua vida pesará na balança divina. Thalos, que julga com chama e verdade, viu cada passo que Jorjen deu: suas vitórias, suas falhas, seu sacrifício.

    A névoa caiu sobre nós, trazendo morte e traição. Muitos tombaram, como Jorjen, e Thallanor chora. Mas Thalos não perdoa a injustiça. Ele exige equilíbrio, cada gota de sangue clama por retribuição. Jorjen enfrentou o inimigo, e sua coragem nos guia.

    Quem falhou em protegê-lo? Quem deixou a névoa entrar? Essas perguntas ardem, e Thalos as responderá.

    Esta pira não é o fim, mas a passagem. As chamas levarão Jorjen ao julgamento de Thalos, onde sua alma será pesada. Que ele encontre redenção. E que nós, os vivos, busquemos justiça.

    Olhem as cinzas, lordes e amigos, e lembrem: Thalos vê. Ele não esquece. Que o fogo de Jorjen ilumine nosso caminho, e que a Casa Aníbal, sob nova guarda, honre seu nome.

    Preparem seus corações. A chama sobe, e com ela, a verdade.

    O silêncio que se seguiu foi denso, quase sufocante. Todos os olhares voltaram-se para mim quando me levantei. Minhas mãos estavam frias. Minha voz, contida:

    — Agradeço a presença de cada um de vocês para honrar a memória de Jorjen. Sei que sua passagem foi marcada por escolhas duvidosas, mas também por talentos raros. Que sua partida nos sirva de lição e inspiração para trilhar novos caminhos, preservando nossa verdade, mesmo que imperfeita. Que possamos, juntos, reconstruir a Casa Aníbal sobre alicerces de conhecimento e integridade.

    Minhas palavras flutuaram no ar por alguns segundos antes de se dissiparem como fumaça. Logo, o sacerdote se aproximou da pequena fornalha ao lado da pira e acendeu um fogareiro. Junto dele, incensos começaram a queimar, liberando um aroma de ervas e resinas sagradas.

    A pira de Jorjen aguardava do lado de fora da tenda. Em silêncio, formamos uma procissão. O sacerdote seguia à frente, carregando o fogo sagrado com ambas as mãos.

    Quando chegamos, ele se voltou para todos e, com solenidade, entoou:

    — Que Thalos julgue. Que a chama purifique.

    As chamas ganharam vida no instante em que tocaram a madeira e os tecidos ungidos. O cheiro do incenso se espalhou, forte e envolvente, enquanto o fogo consumia o corpo de Jorjen. A luz dançava nos olhos dos presentes, refletindo em seus rostos expressões de luto, alívio, respeito, ou dissimulação.

    Como se tudo estivesse perfeitamente ensaiado, os serviçais começaram a circular entre os convidados, oferecendo bebidas e pequenos aperitivos. As conversas brotaram aos poucos, em tons discretos, ora sussurradas, ora carregadas de implicações.

    O luto, como tudo em Thallanor, logo se misturava à política, à especulação, e ao jogo de aparências.

    Observava Nix, que entre risos abafados e olhares cúmplices, dividia confidências com Claire. As duas, lado a lado, contrastavam em postura, mas pareciam conectadas por algo íntimo, construído entre batalhas e silêncios partilhados. Claire mantinha seu habitual ar reservado, mas sorria com mais leveza do que o habitual, talvez pelo alívio de estarmos todos vivos. Talvez por acreditar, nem que por um instante, que agora teríamos paz.

    Alana, com seu jeito gentil e diplomático, deslizava entre os grupos como uma ponte viva. Costurava conversas entre nobres e mercadores com a habilidade de quem entende que cada palavra pode ser uma moeda.

    Rosa, por sua vez, exalava uma energia distinta, recebia as condolências como se fosse ela a viúva legítima de Jorjen, segurando as mãos de velhos conhecidos, trocando piadas de gosto duvidoso, e garantindo que ninguém esquecesse que também sofria… à sua maneira.

    No canto oposto, Lady Isolde e Cassiopeia trocavam sussurros com semblantes tensos. Já Lorde Carlos e os outros lordes da Casa Aníbal mantinham-se reunidos num pequeno círculo. Suas vozes graves se elevavam e se apagavam em intervalos regulares, debatendo o futuro político da Casa sob a sombra da morte de Jorjen.

    Gérard e Domina permaneciam em silêncio, mas seus olhos seguiam tudo. Gérard tinha aquele olhar de quem carrega um luto que não sabe onde colocar. Era sobrinho legítimo, sangue direto de Jorjen. Domina, com sua longa trança roxa e postura afiada, parecia pronta para defender seu amante com unhas e dentes, se necessário.

    Naquele instante, o salão estava vivo com sons baixos, murmúrios, suspiros, taças tilintando, o estalo ocasional da lenha queimando. Cada som parecia carregar um significado oculto. Cada pessoa ali, uma peça fraturada de algo que precisava ser reconstruído.

    O funeral de Jorjen era apenas mais um entre tantos em Thallanor, mas refletia o espírito de nosso tempo: luto, medo e uma determinação forçada a nascer entre ruínas.

    Continuei observando a pira acesa, as chamas se contorcendo em espirais laranjas e douradas. Pensava em como aquela morte era, de algum modo, também minha culpa. Mas antes que pudesse me afogar nesses pensamentos, uma voz me trouxe de volta.

    — Ei, Lior.

    Era Rosa. Estava de pé ao meu lado, com os olhos marejados, mas o sorriso torto de sempre no rosto. Ela respirou fundo e disse:

    — Eu gostava desse safado, sabia?

    — Hein?
     
    Ela riu, um som breve e rouco.

    — Não romanticamente, seu bobo. Mas ele foi meu parceiro por muitos anos. Sempre me ajudou… claro, desde que fosse lucrativo pra ele. — Ela limpou um canto do olho com o dedo. — Mas ainda assim… era um filho da mãe confiável, entende?

    Assenti. Entendia, sim.

    — Falando nisso — Disse, cruzando os braços —, agora eu tenho um problema. Jorjen me deixou mais que memórias. Herdei os negócios dele. Todos. Os legais… e os nem tão legais assim.

    Rosa me olhou de cima a baixo, com aquele olhar de avaliação que ela usava antes de comprar algo em um leilão.

    — Tá me pedindo o que eu acho que tá me pedindo, Lior?

    — Acho que sim. Você conhece o submundo. Sabe negociar, sabe quem é confiável e quem precisa desaparecer. Os lucros dividimos. Eu não preciso de tanto dinheiro, só de estabilidade.

    Procurei Nix e Niana, me lembrando que ambas tinham sido escravizadas até pouco tempo. E continuei.

    — Só não quero… envolvimento com escravidão. Isso é linha vermelha pra mim.

    Ela assentiu com um estalar de língua e o cenho levemente franzido.

    — Amanhã passo aqui. Gosto de tudo no papel, preto no branco. Nada de acertos só na palavra, mesmo que eu confie em você. — Indicou, com um gesto de queixo, os mercadores com quem conversara antes. — Aqueles três ali são parceiros antigos do Jorjen. Cobras velhas, escorregadias. Te apresento depois, com calma.

    Ela riu de leve e se afastou para confraternizar, deixando em mim a sensação de que acabávamos de fechar um pacto perigoso, mas necessário.

    Pouco depois, vi Lorde Carlos se aproximar, acompanhado de um homem mais jovem, mas de feições duras, como talhadas em pedra.

    — Lorde Lior — disse Carlos, solene. — Permita-me apresentar Lorde Naius. Ele será o novo representante da Casa Aníbal em Thallanor. Seu mandato começará assim que partirmos de volta à sede do Conselho.

    — Lorde Naius — cumprimentei com um gesto firme, mas respeitoso.

    Ele sorriu, um daqueles sorrisos ensaiados, mas não exatamente falsos

    — Parabéns pelos feitos, Lorde Lior. E pelo casamento, é claro. Dizem que agora é o homem mais invejado de Thallanor.

    Segui seu olhar até Nix, que ainda conversava com Claire e Pandora. Claire, séria como sempre, prestava atenção à narrativa exagerada de Pandora, que gesticulava animadamente ao descrever a luta contra Nix. Nix ria, sem vergonha alguma, como se estivesse se permitindo, por um momento, apenas existir.

    — De fato… — respondi, sentindo um calor inesperado se expandir no peito — sou um homem de muita sorte.

    Ele se afastou com um aceno discreto, deixando um leve rastro de formalidade no ar. Mal tive tempo de respirar antes que Pandora, Nix e Claire se aproximassem. Vinham conversando entre si.

    Antes que pudesse dizer qualquer coisa, uma voz cortou o ambiente, alta o suficiente para atrair a atenção de vários presentes

    — Lorde Lior, bela cerimônia. Belas palavras também. — Era Lady Lenora, com um tom teatral e um sorriso que não alcançava seus olhos. — Uma pena a partida de Lorde Jorjen. Ele era… peculiar.

    Ela se aproximou com passos lentos, deliberados, e seus olhos — frios como vidro polido — se fixaram em Pandora.

    — Não vai me apresentar essa jovem? — perguntou, o olhar intenso como uma lâmina recém-afiada.

    — Quem? Pandora? — respondi, com uma leve inclinação de cabeça. — Ela é uma gladiadora. Uma das campeãs do Matadouro.

    Lenora fingiu surpresa, ou talvez fosse apenas escárnio bem ensaiado.

    — Não tive o prazer de falar com ela ainda. — Ela ergueu a taça com elegância. — Ela evitou o Conselho até agora. Uma sombra silenciosa atrás dos holofotes… intrigante.

    Ela tomou um gole lento de vinho, saboreando não apenas a bebida, mas o momento de tensão que criava.

    — Ouvi tantas histórias a seu respeito, mocinha — disse, sem desviar os olhos de Pandora. — Só não esperava que seus olhos fossem exatamente iguais aos de seu pai, ele era meu sobrinho, sabia?

    Com isso, virou-se com a leveza cruel de quem acabara de lançar uma faca com precisão cirúrgica. Partiu sem esperar resposta, deixando um rastro de silêncio atrás de si.

    Pandora permaneceu imóvel por um segundo. Seus punhos estavam cerrados, os nós dos dedos brancos. Sua expressão endurecida como uma muralha prestes a ruir.

    — Calma — disse baixinho, me aproximando.

    Ela respirou fundo, mas os olhos ainda estavam vidrados na direção por onde Lenora havia sumido.

    — Já decidiu seus próximos passos?

    Pandora demorou a responder. Quando falou, sua voz estava controlada, mas carregada de peso.

    — Ainda não. Vou esperar a declaração do Imperador amanhã. — Fez uma pausa, desviando o olhar. — Só vou decidir, depois disso.

    Assenti em silêncio, respeitando a turbulência que fervia dentro dela. Sabia que aquela breve troca de palavras tinha mexido com feridas antigas, e que respostas demais tinham sido deixadas no ar.
     

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