Capítulo 149: Parando para respirar
Aos poucos, as pessoas começaram a se dispersar. Algumas foram embora em silêncio, com olhos baixos e expressões carregadas de pesar genuíno. Outras se despediram com frases prontas, cumprindo um protocolo social quase automático. Havia também os curiosos, uma pequena, mas perceptível minoria. Queriam saber quem era Lior Aníbal, e por que seus feitos impressionavam tantas figuras, entre plebeus e nobres.
Antes de partirem, minha mãe e Cass se aproximaram. Suas expressões eram contidas, mas atentas. Tomaram cuidado com as palavras, lançando olhares rápidos ao redor, zelando por ouvidos indesejados.
— Está tudo bem, Lior? — perguntou minha mãe, sua voz baixa, mas firme. — Precisa de alguma coisa? Althéa pode lhe ajudar com essa transição… não está sozinho.
— Obrigado, mãe… Lady Isolde… — respondi, com um aceno sutil. — Claire está cuidando de tudo com uma eficiência que me surpreende. Está sendo… admirável.
Cass arqueou uma sobrancelha, sempre direta.
— Por falar nela… que história é essa de se casar com Claire Umbrani? — sua curiosidade era desarmante, mas havia um toque de desconfiança em seu tom.
Soltei um suspiro leve, com um meio sorriso.
— Para mim também foi uma surpresa — confessei, tentando manter o tom descontraído. — A decisão não era o que eu esperava, mas posso viver com isso. Ela é uma garota formidável.
— E Nix?
— Ela concorda. Casarei com as duas no mesmo dia. Foi o combinado.
Minha mãe estreitou os olhos, preocupada. Ela me conhecia bem demais para se deixar enganar por palavras ensaiadas.
— Cuidado, Lior — disse, em um tom que lembrava mais uma ordem do que um conselho. — Não se deixe mover como uma peça no tabuleiro dos anciãos. Eles jogam há mais tempo do que você imagina. E quando terminam a partida… não costuma sobrar nada para os peões.
— Eu sei. — Assenti com seriedade. — Mas as coisas mudaram. Antes, eu mal conseguia proteger a mim mesmo, quanto mais os que amo. Agora… agora é diferente. Não sou alguém que podem desafiar impunemente. Em breve, poucos no Império poderão me enfrentar sem hesitar.
Minha mãe me observou por um longo instante. Havia orgulho em seu olhar, mas também um temor contido
— Muitos também sabem disso. E por saberem… tentarão te dominar por outros meios. Mais sutis. Mais eficazes. Não subestime as forças ocultas que moldam nosso Império, meu filho. Elas são pacientes… e implacáveis.
As duas se viraram para ir, mas minha mãe parou subitamente, como se algo tivesse acabado de lhe ocorrer. Ela se virou novamente, seus olhos fixos em mim.
— Seu pai voltou hoje — disse, com voz neutra. — Veio com o Imperador e os outros patriarcas. Estavam fora da capital, como você deve saber… explorando aquele templo recém-descoberto em uma das novas ilhas.
Senti meu peito se apertar. Ela prosseguiu:
— Lembrei de você quando ele me contou o que encontraram por lá. Disse algo estranho… que descobriram inscrições ensinando a selar a névoa, a bloqueá-la. As mesmas palavras que você me disse antes da batalha. Até hoje, só tinha ouvido você falando nisso, Lior. Achei que deveria saber.
Fiquei em silêncio por alguns segundos. Minha mente disparava, fazendo conexões rápidas entre pedaços de informação fragmentada. Era o primeiro registro confirmado de técnicas relacionadas a Mahteal e Malena, pelo menos, o primeiro fora das histórias que eu mesmo conhecia.
Que outros segredos aquele templo poderia conter? Seria apenas um eco do passado… ou uma ponte para ele? E se houvesse algo mais? Vestígios da pesquisa de Malena, fragmentos esquecidos de sua jornada longe de mim, ou melhor, longe de Mahteal. Talvez, até mesmo, uma pista de como enfrentar o Vazio, encontrar Selune.
Meus pensamentos fervilhavam quando uma voz familiar me tirou do transe.
— Foi um belo funeral, Lior…
Virei-me para ver Gérard se aproximando. Sua expressão era serena, mas havia uma sombra de cansaço em seus olhos.
— Obrigado — respondi com simplicidade.
Ele não disse mais nada de imediato, apenas avançou e me envolveu em um abraço forte e inesperadamente sincero. Retribuí o gesto com o mesmo calor.
— Estou partindo amanhã ao amanhecer — disse, soltando-me. — Voltarei para casa. E… vou levar Domina comigo.
Houve uma pausa breve. Ele sorriu de lado, quase tímido.
— Vamos nos casar. Já avisei mamãe. Criei coragem… por sua causa, primo. Você aí, desfilando com Nix e Selune como se o mundo todo não estivesse te observando. Como se não devesse nada a ninguém.
Sorri de verdade pela primeira vez naquela noite.
— É uma notícia maravilhosa. Vocês merecem isso. Desejo toda felicidade… de verdade. E não se esqueça de mandar os convites. Faço questão de comparecer.
— Você também — respondeu ele, com um brilho nos olhos, antes de se afastar ao lado de Domina. Caminhavam de braços dados em direção à residência que ocupavam temporariamente. Em breve, aquela casa, tão cheia de vozes e memórias apagadas, seria só minha.
Fiquei ali, por um momento, observando-os se afastarem. Um futuro novo se desdobrava diante de cada um de nós. E, de algum modo, todos estávamos deixando para trás mais do que imaginávamos.
Tinha sido um dia exaustivo. A reunião com Carlos, o funeral… tantos olhares, tantas expectativas, todos medindo meus gestos, minhas palavras, como se procurassem sinais de fraqueza ou confirmação de rumores.
O gramado agora estava quase deserto. Os serviçais recolhiam discretamente os últimos enfeites, dobrando cadeiras e apagando as luzes suspensas com movimentos silenciosos. Amanhã, tudo aquilo seria desmontado, como se o luto também pudesse ser dobrado, guardado e esquecido.
Claire dormia sentada, encostada de lado sobre uma mesa, exausta. A cabeça pendia num ângulo desconfortável, mas seu rosto estava sereno. Nix permanecia ao seu lado, desperta, os olhos atentos mesmo naquele momento de sossego. Niana não estava à vista. Alana dedilhava acordes suaves com seu alaúde num canto mais afastado, acompanhada por dois músicos remanescentes.
Peguei uma taça de vinho. O líquido escuro me lembrou que eu não havia comido ou bebido nada durante a cerimônia. Sentei-me ao lado de Nix, soltando um longo suspiro que parecia carregar o peso inteiro da tarde.
Ela me olhou, estudando meu rosto.
— Está tudo bem?
Assenti devagar.
— Acho que sim… — respondi com sinceridade. — É estranho. O funeral pareceu mais um ponto de partida do que um encerramento. Tudo que vinha se acumulando, os caminhos paralelos que tentei equilibrar… hoje tudo convergiu. Pela primeira vez, sinto que posso tomar as rédeas. Moldar meu próprio destino em vez de apenas reagir.
Nix ficou em silêncio por alguns segundos. Depois falou, num tom calmo, mas direto:
— Sim, igual à decisão do casamento?
Demorei um instante antes de responder. Não por falta de palavras, mas porque ela tinha tocado exatamente onde doía.
— É… mesmo com isso. — Olhei para Claire por um momento, depois deixei o olhar se perder no céu escuro acima de nós. — Mas é mais complicado do que parece. Esse casamento não é parte do caminho que eu teria escolhido. Foi uma decisão imposta. Me empurraram pra isso. Fui movido como uma peça num tabuleiro… como tantas outras vezes.
Respirei fundo antes de continuar.
— A diferença é que, agora, eu tenho as ferramentas para retomar o controle.
Nix me observou com atenção, sem julgamento nos olhos.
— Você não queria se casar.
— Não. Não agora. Não assim. — Disse com firmeza. — Meus planos não passavam por alianças políticas desse tipo. Eu estava tentando construir algo diferente… mais livre. Mas, de repente, me vi preso no mesmo jogo que sempre achei que conseguiria evitar. — Tomei um gole de vinho. — Mas aqui estou.
Ela suspirou, pensativa. E eu, sentindo o peso do momento, continuei:
— Eu devia ter perguntado como você se sentia. As coisas também foram impostas a você, assim como a mim. Foi injusto da minha parte esperar que aceitasse tudo calada.
— Quando aceitei ficar com você — disse ela, com a voz mais branda — e depois, quando Selune apareceu, eu já sabia no que estava me metendo.
Fez uma breve pausa, como se reorganizasse os pensamentos.
— Ela me ensinou muito sobre os humanos. Sobre o que significa estar ao lado de alguém como você… um nobre, um herdeiro. Eu sabia que situações como essa podiam acontecer. Fiz essa escolha sabendo dos riscos.
Ela tomou um gole do meu vinho e continuou, com um sorriso breve.
— Desde que estou com você, as coisas têm acontecido tão rápido… — falou, encarando o horizonte. — Se parar pra pensar, não faz nem seis meses que estávamos naquele pântano nojento, presos naquela cela úmida, sem saber se veríamos a luz do dia novamente.
Rimos, com um tom quase nostálgico.
— Parece outra vida — disse ela.
— Foi outra vida — concordei.
O silêncio que se seguiu não foi desconfortável. Era um espaço de partilha muda, de entendimento.
Nix voltou o olhar para Claire, que dormia profundamente com a cabeça apoiada nos braços.
— Ainda bem que é ela. Sempre gostei da Claire. Mesmo antes disso tudo. — Fez uma pausa e sorriu de lado. — Se fosse outra… uma daquelas serpentes arrogantes, racistas, cheias de ambição vazia… — fez uma careta — aí sim seria complicado.
Assenti, sentindo um calor discreto e sincero crescer dentro de mim.
— Tivemos sorte.
Me inclinei e a beijei. Um beijo calmo, sem urgência. Um gesto de reconhecimento. De gratidão.
Ela me olhou com uma expressão mais suave, mas os olhos ainda carregavam um brilho questionador.
— Posso te perguntar uma coisa? Uma daquelas perguntas que eu talvez devesse guardar?
— Você sempre pode perguntar.
— Você tem certeza que nada aconteceu entre você e a Anna enquanto eu estava fora?
A pergunta veio simples, mas direta. Sem malícia, sem riso. Apenas um toque de ciúmes, talvez. Ou insegurança.
Engasguei com o vinho, franzindo o cenho.
— Claro que não. — Disse com firmeza. — Talvez ela tenha… demonstrado interesse. Mas eu não correspondi. Em nenhum momento. Te dou minha palavra.
— Tá. Eu acredito. — Ela assentiu, olhando para a taça que girava em sua mão. — Mas não vou mentir, quando voltei e vi o jeito como ela te olhava… me deu um incômodo.
— Eu entendo. Mas você não precisa se preocupar.
Ela hesitou por um segundo, depois arqueou uma sobrancelha.
— E quanto à Pandora? Vai me dizer que foi ela quem te beijou?
Soltei um suspiro, cansado.
— Sim. Foi ela. Me pegou desprevenido. Juro que não fiz nada para provocar aquilo.
Ela bufou, mas um leve sorriso escapou.
— Da próxima vez que cruzar com ela, vou mostrar como se beija um Lior. Só pra ela saber o que perdeu.
Sorri, apesar do cansaço.
Me levantei com cuidado, me aproximando de Claire. Com um gesto gentil, a peguei nos braços. Ela murmurou algo incompreensível, mas nem abriu os olhos.
— Vamos dormir?
— Vamos.
Seguimos juntos para dentro, deixando para trás o gramado vazio, a música distante, e as decisões que eu ainda precisava aprender a tomar por mim mesmo.
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