Capítulo 150: Novas provas
Acordei com um grito abafado bem ao meu lado. Em um reflexo quase instintivo, me ergui meio sentado, o coração disparado, pronto para um ataque.
Mas não era um inimigo. Era Claire.
Ela estava sentada na beirada da cama, o rosto vermelho como uma pimenta, os olhos arregalados e a respiração curta. Balbuciava palavras desconexas, como se tentasse racionalizar o que via. Seus olhos iam de mim para Nix, depois para os cobertores bagunçados ao redor.
— Claire? — chamei, ainda atordoado, mas mais calmo. — Está tudo bem?
Nix, ainda meio sonolenta, esticou o braço e a puxou para um abraço leve, reconfortante. Depositou um beijo afetuoso em sua bochecha e falou com ternura:
— Ei, calma… Você dormiu na mesa, lembra? Estava toda torta, com a cara amassada. Te trouxemos pra cá pra dormir melhor. Não aconteceu nada. Só dividimos a cama, não mais que isso.
Claire piscou algumas vezes, tentando absorver a informação. O rubor em seu rosto não cedia, mas ela assentiu lentamente, ainda visivelmente constrangida.
— Me desculpem… só… só me assustei.
— Tudo bem — falei, sorrindo de leve. — Também teria acordado confuso.
Ver Nix sendo tão gentil com Claire me aqueceu por dentro. Minha pequena raposa, sempre direta, mas com um coração que sabia acolher. Senti uma gratidão silenciosa por tê-la ao meu lado.
Pouco depois, fomos para a cozinha para tomar o desjejum. A luz do início da manhã filtrava-se pelas janelas, dourando as paredes de pedra e as tábuas antigas do chão com uma suavidade inesperada. Claire, ainda um pouco tímida, sentou-se ao meu lado, e Nix se acomodou à frente, mordiscando uma fatia de pão com queijo.
Estávamos nesse ritmo tranquilo quando Anna apareceu à porta, limpando as mãos num pano de linho.
— Com licença, milord… temos visitas. Rosa chegou, acompanhada de dois mercadores. Estão aguardando no escritório.
Assenti e me levantei.
— Claire, pode nos acompanhar?
Ela respondeu com um sorriso contido, mas já mais segura.
— Claro que sim.
Seguimos até o escritório. Ao entrarmos, Rosa já estava lá, sentada com naturalidade no sofá do canto. Ao seu lado, vi novamente a mulher rechonchuda que eu lembrava da noite anterior, Lysa, e o homem albino de olhos pálidos, Vargo, se eu não me enganava. Seus rostos carregavam a confiança de quem estava acostumado a tratar com cifras, favores e riscos calculados.
— Senhores… Rosa — cumprimentei, ao entrar.
Caminhei até a cadeira que havia pertencido a Jorjen e me sentei. Era uma peça pesada, com marcas do tempo e deformações moldadas pelo corpo de seu antigo dono. Uma lembrança das mudanças repentinas. Logo a trocaria. Era tempo de recomeço.
Claire postou-se ao meu lado, com postura firme, os olhos atentos a tudo ao redor.
Rosa e os mercadores se levantaram e se aproximaram da mesa, com gestos respeitosos.
— Estes são Vargo e Lysa — disse Rosa. — Parceiros antigos de Jorjen. Conhecem bem a maneira que ele atuava, conhecem os contatos e fornecedores dele.
— É um prazer, lorde Lior, lady Claire — disseram quase em uníssono, com acenos curtos.
Começamos trocando algumas amenidades. Conversamos sobre o funeral, sobre a batalha e, inevitavelmente, sobre meu casamento recém-anunciado. Os olhos dos dois mercadores brilharam com o interesse de quem entende que um nobre recém-casado é um nobre em ascensão, e um possível aliado ou rival, dependendo do rumo dos acordos.
Claire tomou a dianteira com naturalidade surpreendente. Usando a mesa como apoio, abriu as pastas que havia organizado na noite anterior e começou a expor os negócios de Jorjen, tanto os lícitos quanto os que operavam à margem da lei.
— Aqui estão os contratos ativos com os entrepostos nas ilhas mais distantes — explicou ela, passando as páginas com precisão. — Esse setor está estável, embora haja risco de intervenção nos próximos meses. Agora… — ela trocou de pasta, revelando documentos selados e rabiscados com códigos — …aqui estão as operações não-oficiais. Jorjen mantinha uma rede eficiente de distribuição através de Pedras de Ancoragem. Isso precisa ser mantido com discrição, mas o retorno financeiro é significativo.
Vargo e Lysa ouviam Claire com atenção genuína. Era claro que não esperavam esse nível de preparo. E ela conduzia tudo com firmeza, sem hesitação, mas também sem arrogância. Falava com clareza, objetividade.
Eu só observava. Era raro poder confiar a esse ponto. E mesmo que esse casamento tivesse sido forçado, ali eu via com clareza que ele me trouxera algo bom. Claire não era apenas uma parceira: era uma aliada capaz.
Ela pegou outra pasta, abriu com calma, e a colocou sobre a mesa.
— Estes aqui — disse, indicando com o dedo — são os registros dos negócios de tráfico de escravos. Negócios que meu noivo deixou claro que não quer manter.
Inclinei o corpo, curioso.
— E o que dizem esses números? — perguntei.
Lysa respondeu, olhando atentamente os papéis.
— São registros de vendas. — Ela franziu o cenho. — Mas tem algo estranho…
— Estranho como?
Ela apontou uma linha.
— Aqui. Cinco dias antes da invasão da cidade houve um pico de vendas. Quase o dobro dos últimos meses somados. Isso deveria ter derrubado os preços no mercado… mas não aconteceu.
Folheou mais algumas páginas e parou.
— Achei. Dois contratos de exclusividade. Um com a Casa Cális. Outro com a Casa Elden.
Minha mente disparou. Elden… Elizabeth. E a Casa Cális… eram os perseguidores de Alana.
Lembrei dos Colossus. Aquelas aberrações costuradas de carne morta. Sabia de onde vinham os corpos agora.
Meu estômago virou. A náusea veio forte, mas segurei firme. Tinha acabado de encontrar algo grande.
Mas não podia reagir demais. Respirei fundo, mantendo a expressão neutra.
— Não me importa o quanto isso rende — falei, cortando o assunto. — Não quero lucros que envolvam comércio de pessoas. Isso morre aqui.
Claire fechou a pasta sem discutir. Vargo e Lysa assentiram, meio contrariados.
Rosa apenas comentou:
— Está claro. Vamos encerrar essa parte e compensar a receita com outros setores.
Assenti. Mas já estava longe dali, com a mente trabalhando rápido. Havia algo podre por trás daquelas cifras.
Eu tinha uma prova importante nas mãos, dei graças de Jorjen ser organizado.
Após uma hora de conversa, chegamos a um consenso.
Rosa, Lysa e Vargo propuseram uma sociedade mista: eles pagariam uma quantia considerável pela participação nos negócios e, em troca, dividiríamos os recursos. Rosa seria minha sócia principal, responsável pela administração tanto das rotas legais quanto das operações clandestinas. Vargo e Lysa cuidariam dos contatos regionais, do transporte e da distribuição.
— A proposta é simples — concluiu Rosa. — Você participa das decisões estratégicas. O trabalho diário, a logística, as negociações menores… ficam com a gente. Os lucros serão divididos: sessenta por cento para você, os outros quarenta divididos entre nós três.
Fiz as contas em silêncio. Era mais do que suficiente. Com essa renda, eu podia manter a mansão, seus serviçais, sustentar a Casa Aníbal e ainda financiar um projeto que começava a ganhar forma em minha mente, uma torre de estudos e pesquisa arcana, algo nos moldes do que Malena dirigira em seus tempos. Mas isso ainda era um plano para o futuro.
— Fechado — disse, estendendo a mão.
Selaram o acordo com um aperto firme.
Como cortesia, os convidei para almoçar na mansão. Eles aceitaram, e Anna foi avisada para preparar algo à altura.
Mas, enquanto conversávamos, minha mente já estava na tarde que se aproximava. O pronunciamento do Imperador, a aparição dos anciãos… e o papel que Valis e Elizabeth ainda tentavam forçar dentro da narrativa da vitória.
Aquilo não seria apenas um evento formal. Seria um palco. E, se eu os conhecia bem, eles ainda não haviam desistido de roubar os holofotes.
Seria, no mínimo, interessante.
Mais tarde, partimos em direção ao Palácio. Fui acompanhado por Nix, Claire, Niana. Fiz questão de incluir Alana em minha comitiva. Sua presença era uma peça estratégica. Se Annabela pretendia manipular a situação a favor de Valis ou de Elizabeth, ter Alana ali seria um espinho inesperado. Talvez provocasse algum deslize.
O Palácio estava em clima solene. O gramado havia sido cuidadosamente aparado e decorado com arranjos simples, mas elegantes. Um palanque alto dominava o centro do espaço, claramente erguido às pressas, mas feito com competência. Robusto, com bandeiras imperiais nas laterais e uma cobertura vermelha, era digno do peso político que aquele evento prometia ter.
No momento, o palanque estava vazio, mas o gramado se enchia rapidamente. Cadeiras organizadas na frente estavam reservadas para os nobres e altos oficiais, enquanto o povo começava a ocupar os espaços mais atrás, em pé ou em bancos improvisados.
Conforme nos aproximávamos da área restrita, alguns guardas nos interceptaram. Me preparei para a habitual desconfiança… mas ela não veio. Pelo contrário.
— Companheiro Lior! — disse um dos soldados, sorrindo ao me reconhecer. Me cumprimentou com um tapinha no ombro, como se fôssemos velhos camaradas de trincheira.
Outro acrescentou:
— Fez um bom trabalho lá fora. A cidade não vai esquecer.
Havia respeito genuíno nos olhos deles. Nenhum vestígio do olhar de superioridade que um nobre jovem, mesmo com nome, costumava despertar entre os militares de carreira.
Nos conduziram com toda cortesia até quase a fileira da frente. Nix e Niana, ambas vulpinas, receberam o mesmo tratamento educado, algo que me pegou de surpresa, e que, pelos olhares delas, também as surpreendeu. Até Alana, com seu alaúde às costas e o jeito informal, foi conduzida com deferência.
Meus olhos varreram a multidão. Rostos conhecidos surgiam em meio ao mar de gente.
Vi Joaquim, bem vestido, ao lado de uma senhora de expressão firme e traços semelhantes aos dele, devia ser sua mãe. Um pouco mais distante, reconheci Okron, o nobre que me ajudara em Brumora. Vestia preto, em luto. Tinha os ombros tensos e o olhar perdido, como se carregasse algum peso ainda recente.
O som de vozes se misturava ao burburinho crescente, e os espaços ao meu redor foram se preenchendo pouco a pouco. Claire ajeitou o vestido com elegância ao se sentar ao meu lado. Nix observava tudo com olhos afiados, enquanto Niana cochichava algo para Alana, que ria baixinho.
Então, de súbito, uma corneta soou, clara e alta, cortando o ar da tarde. O burburinho cessou aos poucos, e todos voltaram os olhos para o palanque.
O evento estava prestes a começar.
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