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    Desci do palanque com passos firmes, mas o coração acelerado. O barulho dos aplausos ainda reverberava em meus ouvidos, como um eco distante. Retornei ao meu lugar com Alana e Claire ao lado.

    Lenora, com um leve gesto abriu espaço para que o Imperador reassumisse o púlpito.

    Juliani caminhou com lentidão, e a expressão que agora estampava seu rosto estava longe da compostura serena que exibia no início da cerimônia. Seus olhos estavam sombrios, suas feições pesadas.

    — Quero agradecer — disse, sua voz ligeiramente rouca — a todos que suportaram esse terrível fardo. Obrigado.

    Nada mais. Sem discurso de encerramento, sem exaltação. Ele simplesmente desceu, comedidamente, e seguiu por uma saída lateral, escoltado por seus homens.

    Os Anciãos e Patriarcas começaram a se levantar também, saindo em sequência, em um silencioso ritual de dispersão. A plateia se agitava, levantando-se aos poucos, conversas sussurradas se espalhando como brisa antes da tempestade. Um murmúrio inquieto tomava o ambiente, havia dúvidas demais no ar para um encerramento tão frio e repentino.

    Olhei para minhas acompanhantes, ainda sentadas, algumas observando tudo com olhos atentos e curiosos. Foi Niana quem falou.

    — Acabou?

    — Sim — respondi. — Vamos?

    Todas assentiram e se levantaram. Mas antes que déssemos o primeiro passo, senti algo. Um olhar. Um peso específico sobre mim. Uma intenção assassina muito forte.

    Virei o rosto. Annabela me observava do seu lugar do palanque, não havia se mexido, estava sentada ainda. Seus olhos eram duas lâminas, afiadas, penetrantes. Havia algo naquela expressão, um misto, raiva, desprezo e deboche.

    Falei baixinho, apenas para minhas companheiras:

    — Vão indo pra casa. Encontro vocês depois.
     
    Nix se virou de imediato.
     
    — O que é que vai aprontar, hein?
     
    — Nada demais — disse, quase sorrindo. — Só vou tirar a dúvida de uma coisa. Alana, venha comigo. Vou provocar quem te criou um pouco.
     
    Alana franziu o cenho, hesitante. Havia uma sombra de receio em seu olhar. E com razão. A última vez que Annabela esteve próxima dela, seu destino estava selado num ritual de sangue, ela seria sacrificada. Mas aquilo fora antes da invasão. E muito mudou desde então.
     
    — Não vou deixar nada acontecer com você — garanti.
     
    Saí por uma das passagens laterais do gramado, uma das muitas que levavam aos jardins laterais do Palácio. Os soldados imperiais, ainda animados com o clima solene da cerimônia, me cumprimentavam conforme eu passava. Seus gestos não tinham mais a frieza da formalidade, era respeito genuíno. Gratidão. Fiz questão de caminhar de forma visível, deixando rastros claros para que Annabela me seguisse, se quisesse.
     
    E ela queria.
     
    Andei calmamente, braços entrelaçados aos de Alana. As passagens floridas do jardim nos recebiam com perfumes suaves, pétalas dançando no ar, pequenas fontes sussurrando entre os arbustos. Mas apesar da beleza tranquila, cada passo que dávamos nos levava para uma parte cada vez mais isolada.

    Conversávamos sobre amenidades. Eu fazia questão de parecer completamente despreocupado, ainda que minha atenção estivesse totalmente voltada ao que se aproximava.

    — Claire parece ser uma boa menina, papai — comentou Alana de repente. — Gosto dela… e da mamãe também.
     
    Sorri, era de Nix que falava. Ela era mais doce do que o mundo merecia. Quando abri a boca para responder, o som de passos leves me fez erguer o olhar.

    Annabela surgiu à frente, bloqueando nosso caminho. Sua postura era elegante, seu vestido escuro contrastando com as cores vibrantes das flores ao redor. O sorriso em seus lábios era felino.

    — Ora, ora… se não é o famoso Lior Aníbal — disse, com a voz arrastada, quase divertida.
     
    Ao vê-la, Alana se encolheu atrás de mim, agarrando-se à minha cintura.
     
    — E vejo que continua com o hábito de acolher vira-latas vadios — comentou Annabela com desdém, seus olhos cravados em Alana. — Sabia que ela é minha?
     
    Fiz um gesto exagerado, como quem procura algo.

    — Estranho… não vejo nenhuma marca de propriedade nela. Nada que indique que pertence a alguém.
     
    Ela franziu o cenho.
     
    — Isso não importa mais. A verdade é que ela já não é tão útil quanto antes. Mas há algo que me intriga…

    Deu um passo à frente. Seu perfume doce e enjoativo invadiu o ar, um aroma de flores noturnas misturado com algo mais sutil, uma podridão discreta, quase imperceptível, mas que não podia ser ignorada, pelo menos por mim. Era como o cheiro de fruta passada sob uma camada de perfume caro. Um resquício de miasma, talvez, que se agarrava a ela como um véu invisível. Aquilo não era apenas cheiro, era um aviso. Um reflexo do que ela era por dentro, escondido sob belas roupas e sorrisos calculados.
     
    — Como foi que você derrotou um Lich de sétimo círculo? Um garoto como você…

    — Khotesys não foi desafio para mim.

    Ela me encarou, como se me visse pela primeira vez.

    — como sabe o nome dele? Como…

    Senti quando ela tentou sondar minha mana. Seu foco se estreitou, como se buscasse decifrar um código oculto em mim.

    — Está perdendo seu tempo — falei, com um sorriso calmo. — Não tenho círculos de mana.

    Ela piscou, confusa.
     
    — Como não?
     
    — Cabe a você descobrir. A investigação é parte da diversão, não é?
     
    Desviei o olhar para Alana e depois voltei a encará-la.
     
    — Desculpe por arruinar seus planos. Mas, sinceramente? Não ia deixar vocês lucrarem com essa tragédia. Alguém precisava impedir isso.
     
    Annabela riu. Uma risada verdadeira, quase aliviada. Tocou o canto do olho com um dedo, secando uma lágrima forçada.

    — Um fedelho metido a herói… Só porque teve sorte. Acha que entende alguma coisa. Você não sabe nada, garoto. Só saiba disso: arranjou uma inimiga perigosa. E vou te esmagar, nem que leve anos. Tempo é o que tenho de sobra.
     
    — Ai que medo — falei com escárnio. — Essa ameaça aí, quem fez? Annabela, Naksa… ou Esther?

    O nome das três a atingiu como um tapa. Ela empalideceu levemente. Seus olhos foram até Alana, depois voltaram para mim.
     
    — Não importa o que essa aberração te contou. Você está se metendo em coisas muito acima da sua compreensão. Vai sofrer. Talvez… talvez como minha marionete.

    Ergueu a mão, sutilmente. E num instante, uma linha fina de miasma serpenteou em minha direção, rápida, quase invisível.
     
    Mas eu estava pronto.
     
    Agarrei a linha entre os dedos como quem segura um fio de cabelo. De maneira até desleixada.
     
    — Sério que essa é sua resposta?
     
    Com um toque, devolvi a energia maldita. O miasma colapsou, retraindo-se de volta à fonte. Um clarão breve, um estalo. E Annabela gritou, cambaleando. Um filete de sangue escorreu de suas narinas enquanto ela caía de joelhos, tremendo.

    — Q-quem é você…? — gaguejou, a voz embargada.
     
    — Papai, vamos embora. Ela não merece saber que você está vivo — disse Alana com calma, mas firmeza. Sua mão apertou a minha.
     
    Me virei sem pressa.
     
    — Eu sei de todos os seus crimes. Naksa sabe quem eu sou. Viveu muitos anos comigo. Se vier atrás de mim… só encontrará sua própria destruição.
     
    Comecei a caminhar, me afastando, e atrás de mim, ouvi sua voz trêmula, quase um sussurro.
     
    — Mahteal…?
     
    Sorri de canto, sem me virar.
     
    Que ela se consumisse com a dúvida.

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