Capítulo 155: Uma criatura interessante
Pandora agora treinava as garotas nas manhãs e tardes, conduzindo os treinos com a mesma intensidade com que lutava, sem piedade, mas com eficiência. O progresso delas era notável, principalmente Alana. Enquanto isso, eu e Claire nos enterrávamos em livros, anotações e discussões quase intermináveis sobre as bases teóricas do que estávamos construindo.
Nossa proposta era ousada: uma reformulação completa da magia tradicional. Ao invés de depender de runas, estruturas externas ou componentes arcanos, nossa ideia era utilizar metamagia, moldar a mana diretamente, influenciar os padrões fundamentais que regem a realidade. Era algo que Mahteal já fazia com maestria, resultado de sua mente incomparável e percepção absurda. Mas minha ambição era outra: tornar isso acessível. Criar um sistema em que qualquer um, com esforço e estudo, pudesse alterar o mundo ao seu redor. Democratizar o impossível.
Foram dias inteiros trancado na mansão, entre teorias, rascunhos e meditação. Até que uma mensagem chegou. Formal. Um lembrete disfarçado de convocação, eu deveria ter me apresentado ao Palácio quatro dias atrás, por conta da minha recente entrada no chamado “círculo interno imperial”.
Suspirei fundo. Dormi pouco naquela noite. No dia seguinte, vesti boas roupas, simples, mas condizentes com minha posição, e segui para o Palácio, imaginando o que me esperava.
Ao chegar, fui conduzido sem cerimônias para uma sala administrativa. Um senhor careca me recebeu com uma expressão neutra, o tipo de rosto esculpido por décadas de tédio burocrático.
— Sou Milo — disse ele, consultando um pergaminho grosso, com marcas visíveis de uso. — Fui designado para determinar seus conhecimentos, aptidões e, com base nisso, direcioná-lo à função mais apropriada dentro da estrutura imperial. Jovens como o senhor costumam ser treinados em múltiplas frentes: da administração civil às forças armadas.
Ele me lançou um olhar curioso.
— Pelo que consta aqui, o jovem lorde é um mago.
— Sim — confirmei, mantendo a postura ereta e o tom neutro.
Milo assentiu e tirou de uma caixa acolchoada um dispositivo de avaliação, era uma esfera de cristal montada numa base retangular de cobre. A base era entalhada com runas complexas, interligadas por linhas douradas que pulsavam fracamente. Embutidos ao redor da estrutura havia dezenas de pequenos cristais de cores variadas, um medidor de capacidade arcaico, mas funcional.
— Coloque a mão e canalize sua mana. Tente acender o máximo de cristais que conseguir.
Assenti e coloquei a mão. No início, canalizei apenas o suficiente para acender todos os cristais menores. Já era mais do que esperavam. Mas por diversão, e um pouco de arrogância, mudei a estrutura da minha mana, revertendo o fluxo e aplicando pressão na frequência da esfera.
Para minha surpresa, a esfera central brilhou com intensidade, quase ofuscando o resto do aparato.
Milo deu um passo para trás, os olhos arregalados.
— I-impressionante… Nunca vi isso. Nem nos registros antigos.
A partir dali, vieram outros testes: detecção e manipulação de círculos (não possuía nenhum, tecnicamente), controle refinado de mana, capacidade de conjuração sob pressão. Passei por todos com facilidade. Depois, veio uma prova escrita. Perguntas sobre teoria mágica, história da arcanologia, composição energética… com o conhecimento de Mahteal, eram coisas quase triviais.
Completei tudo em tempo recorde.
Foi então que Milo, visivelmente surpreso, me entregou uma única folha. Suas mãos tremiam ligeiramente.
— Nunca imaginei que entregaria esta questão a alguém. — Sua voz saiu mais como um sussurro reverente do que uma frase formal.
A pergunta era, de fato, desafiadora. Envolvia conceitos de metamagia avançada, engenharia de estruturas mânicas e até fundamentos do chamado “overlap rúnico”. A aplicação prática proposta era ousada e complexa, exigindo não apenas teoria, mas compreensão profunda da manipulação de mana em múltiplas camadas.
Meu interesse acendeu imediatamente. Havia algo familiar na formulação. O tipo de pergunta que só poderia ter sido escrita por alguém com uma mente excepcional, e, não limitado pelos parcos conhecimentos humanos desse tempo.
Minha resposta encheu quinze folhas. E não por vaidade. Era necessário. A questão exigia justificativas, demonstrações, formulações e análises comparativas. Quando entreguei o conjunto, Milo não tentou sequer ler. Pegou tudo com o cuidado de quem carrega um artefato sagrado e chamou um dos pajens.
— Leve isso imediatamente ao Sir Lock — disse ao garoto. — Agora.
Minutos depois, fui conduzido para o subsolo da ala administrativa. Corredores estreitos, iluminados por globos de luz fixa, davam a sensação de estarmos indo para um interrogatório, não um gabinete de trabalho. A porta ao final se abriu com um rangido metálico.
Dentro, a sala era espartana. Uma única mesa, uma estante abarrotada, uma cadeira… e sobre a mesa, em pé, havia uma criatura singular.
Tinha feições humanoides, mas era pequeno, não devia ter mais que cinquenta centímetros de altura. A pele era rosada, o nariz volumoso demais para seu rosto fino. O cabelo, branco como algodão, formava tufos desorganizados. Usava um par de óculos de meia-lua e vestia um colete de tecido antigo, com botões dourados. Na testa, uma marca de escravidão mágica cintilava com um brilho pálido.
— Olá, lorde Lior — disse ele, com uma voz aguda, mas firme. — Sou Lockmead. Pode me chamar de Lock. Sou um bogger, uma espécie feérica, se preferir rótulos. E devo dizer… sua resposta à minha pergunta me surpreendeu profundamente.
Fez uma pausa, os olhos brilhando atrás das lentes.
— Nunca imaginei encontrar, nesta dimensão, alguém que compreendesse alteração mânica ou sequer tivesse noção do conceito de overlap rúnico. Francamente, estou impressionado. Se estiver disposto, tenho uma proposta: gostaria que trabalhássemos juntos.
Cruzei os braços, estudando-o com atenção.
— Trabalhar… em quê, exatamente?
Lock suspirou, ajeitando os óculos com um gesto delicado. Então, deu um sorriso sarcástico, daqueles que escondem mais dor do que ironia.
— Bem… em vários projetos, na verdade. Muitos deles absolutamente fúteis e insignificantes para o verdadeiro desenvolvimento do Império. Planilhas, diagnósticos de eficiência mágica, relatórios de estrutura arcana… lixo burocrático.
Ele apontou para a própria testa, para a marca de escravidão mágica que cintilava em tons opacos de vermelho e violeta. Um lembrete constante de que, por mais afiado que fosse seu intelecto, ele não era dono de si mesmo.
— A verdade é que não tenho muita escolha, não é mesmo? — completou, com um sorriso amargo.
Havia algo desconfortavelmente humano naquela criatura. A inteligência cortante, a frustração contida, a forma como sua voz carregava sarcasmo e dignidade ao mesmo tempo. Era como se ele usasse o deboche para manter intactos os pedaços de si que o Império ainda não havia tomado.
Ele me encarou então, seus olhos feéricos brilhando por trás das lentes.
— Mas… semântica é uma coisa engraçada. Veja bem — sua voz baixou um tom, ficando quase conspiratória —, se algo não é proibido, então, tecnicamente, é permitido. Exceto escapar, ferir meu proprietário ou subverter diretamente a autoridade imperial… o resto está em uma zona cinzenta. Uma zona muito interessante.
A sugestão pairou no ar, como um convite silencioso para desafiar as regras escritas — e, mais ainda, as não escritas.
— Posso confiar em você, Lior? — ele perguntou. — Algo me diz que posso. E se estiver certo, talvez possamos fazer coisas… que realmente importam.
Não precisei pensar muito. Havia verdade no olhar dele. E dor. E uma esperança contida, pequena, mas viva.
— Pode confiar em mim — respondi, firme. — Mas quero saber mais. Esses projetos seus… do que se tratam exatamente?
Lock se inclinou levemente, seus dedos tamborilando sobre a mesa com uma precisão quase rítmica.
— Bem… — disse, como quem pesa cuidadosamente as palavras — posso dizer que eles têm muito a ver com a Névoa… e o Vazio.
Por um segundo, meu corpo enrijeceu.
Ele percebeu. E sorriu. Um sorriso diferente dessa vez. Lento. Quase predador.
— Estranho… pela sua reação, me parece que já conhece esse termo. Conhece bem demais, talvez. O que é você, senhor Lior? Ou melhor… quem é você?
Fiquei em silêncio por um instante. O ar na sala parecia mais denso, como se o nome da Névoa tivesse puxado algo invisível para dentro do ambiente.
— Estou cada vez mais curioso — ele disse, seu olhar faiscando de excitação intelectual. — E talvez, se não se importar, eu gostaria de propor… uma troca. Você compartilha comigo o que sabe sobre o Vazio, e eu te mostro algo que ninguém mais neste Império conhece. Talvez nessa dimensão.
Lock deslizou uma pequena chave de bronze sobre a mesa. Seu formato era incomum, e havia nela inscrições que não pertenciam a nenhuma escola de runas conhecida.
— O que me diz?
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