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    — O que me diz?

    Lockmead me olhava com aquela expressão curiosa e vibrante que só os verdadeiros estudiosos têm, como se a simples possibilidade de dividir conhecimento o deixasse em êxtase. Eu o encarei, ainda processando tudo. Aquela criatura… aquele bogger… era um enigma fascinante. Uma peça rara de um quebra-cabeça que nem Mahteal, com toda sua experiência, jamais havia encontrado.

    Estendi a mão, sem hesitar.

    — Fechado. Claro, se o pessoal lá de cima autorizar eu trabalhar contigo.

    Lock sorriu, largo, mas com um brilho travesso nos olhos.

    — Ah, isso não será problema. Basta eu entregar um daqueles projetos inúteis que eles tanto amam. Tenho vários prontos, guardados só esperando uma oportunidade assim. Eles me dão o que quero, eu dou a eles o que acham que precisam. Uma simbiose de interesses. — Ele soltou uma risada abafada, um som meio seco, mas carregado de ironia. Algo naquela risada me fez estremecer.

    Saltou da mesa com agilidade surpreendente e puxou a porta com um gesto amplo.

    — Venha, garoto prodígio. Vou te mostrar onde realmente vamos trabalhar.

    Me vi seguindo aquele pequeno ser por corredores estreitos e escadas escondidas. Descemos por passagens que pareciam esquecidas pelo tempo, de tão velhas e empoeiradas, e confesso que, em certo ponto, perdi completamente a noção de quantos pavimentos já havíamos descido. A arquitetura mudava sutilmente a cada nível, os tijolos se tornavam mais irregulares, o cheiro mais úmido, ancestral.

    Finalmente, paramos diante de uma porta de ferro fundido com detalhes rúnicos. Ele a abriu com um gesto de dedos, atravessamos e Lock girou uma alavanca embutida na parede e um zumbido preencheu o ar. Aos poucos, o salão que se revelava adiante foi se iluminando. Primeiro aos poucos, depois com força total, orbes de vidro embutidas no teto lançavam luz branca, artificial, intensa.

    — Isso aí em cima — disse ele, apontando para os globos — eu chamo de eletricidade. Uma nova área de estudo. Promissora. Mas não é isso que vim te mostrar.
     
    Caminhamos entre bancadas e mesas repletas de pergaminhos, ferramentas alquímicas, engrenagens, cristais, frascos com líquidos borbulhantes e anotações que pareciam ter sido escritas em línguas extintas. Um laboratório caótico, mas fascinante. Mistura de alquimia, engenharia mágica, metalurgia e pura genialidade condensada.

    Lock me analisava a cada passo, atento às minhas reações.
     
    — Você tem olhos famintos, Lior. Isso é bom. É assim que se reconhece um verdadeiro buscador de conhecimento.

    Parou diante de uma pequena porta vermelha. O batente mal chegava à altura da minha cintura. Totalmente fora de escala.

    — Isso aqui é segredo absoluto. Eles lá de cima não fazem ideia de que isso existe. E, francamente, prefiro que continue assim. Posso confiar em você?
     
    — Não ouvirão nada da minha boca — respondi, firme.

    — Excelente — disse, os olhos brilhando. — Eu chamo isso de “A Porta”.

    Retirou de dentro do colete a pequena chave dourada, cheia de entalhes minuciosos que pareciam mudar de forma enquanto ele a segurava.
     
    — E essa, meu caro, é a chave.

    Tentei não parecer cético.

    — Muito interessante… — murmurei, sem graça — uma porta e uma chave.
     
    Lock deu uma gargalhada de corpo inteiro, o som ecoando pelo salão silencioso.

    — Ah, impagável! A sua cara vale ouro, sr. Lior. Agora segure a chave e bata três vezes na porta. Isso aqui é magia dimensional de mão cheia. Coisa fina.
     
    Segui as instruções. Ao segurar a pequena chave senti que a energia que a preenchia a era desconhecida para mim. No instante em que bati a terceira vez, a porta vibrou. Lentamente, começou a crescer, expandindo sua estrutura como se estivesse viva, moldando-se até atingir minha altura.

    — É um portal. — murmurei, mais para mim mesmo.
     
    Magia dimensional, era quase um tabu. Nem mahteal tinha muitos conhecimentos a esse respeito. A névoa costuma interferir nesse tipo de magia de maneira impiedosa.

    — No momento está regulada para um lugar especial. O foco de todas as grandes pesquisas do Império neste momento, o tal do templo que encontraram.
     
    Quase não acreditei nas suas palavras. Meu objetivo estava mais perto que nunca. Meu coração bateu acelerado.

    Lock tomou a chave de volta e girou-a com um clique cerimonioso. A porta se abriu com um rangido suave. Do outro lado, uma floresta sob chuva pesada. Era surreal. Uma fresta no tempo e espaço ligando aquele laboratório enterrado sob o Palácio a… onde quer que fosse aquilo.
     
    — Droga — disse ele, puxando o capuz de seu casaco — esqueci que estava chovendo. Mas venha, venha…

    Atravessamos juntos a porta. O som da chuva era real, intenso, molhando imediatamente meu cabelo e roupas. Estávamos em uma trilha de terra escorregadia, cercada por árvores altas.
     
    Passamos por um trecho denso da mata. Olhei para trás, a poucos metros, uma porta flutuava no nada. Sem parede, sem suporte. Apenas… ali. Um limite entre mundos.

    Andamos por cerca de cinco minutos, em silêncio absoluto, com o som abafado de nossos passos misturando-se ao farfalhar das folhas molhadas e ao rumor distante da torre respirando sob a névoa. A cada passo, o ar parecia se adensar.

    A um gesto discreto de Lock, me abaixei. Ele apontou para um arbusto e se moveu até lá com o cuidado de um predador silencioso. Me aproximei e me agachei ao lado dele. Quando afastei os galhos com delicadeza, minha respiração travou no peito.
     
    — Caramba… — escapei, num sussurro quase reverente.

    Diante de nós se estendia o acampamento de pesquisa imperial. Barracas reforçadas, estandartes fincados no solo úmido, soldados armados com lanças encantadas, estudiosos vestidos com túnicas bordadas a ouro circulando entre artefatos que pulsavam sob tendas encantadas. Havia pedras flutuantes, relíquias contidas em campos de energia, e ao fundo… lá estava ela.
     
    Uma torre colossal. Alta e larga como uma cidadela antiga e macabra, suas paredes negras pareciam devorar a luz ao seu redor. Era mais que um edifício. Era um vestígio de uma era esquecida. A arquitetura de um estilo que não pertencia a este tempo, não era do Império, nem dos reinos anteriores. Era algo anterior. Profundamente anterior.
     
    As runas entalhadas nas pedras, sinuosas, vivas, antigas, pulsavam com uma familiaridade cortante.

    — Malena… — murmurei, com a garganta seca, como se proferir o nome fosse um pecado ou uma prece.

    Lock sussurrou de volta, com um meio sorriso, quase se divertindo:
     
    — Eles acharam que poderiam me deixar de fora disso… Ah, pobres tolos.
     
    O acampamento se espalhava sobre um planalto escarpado que terminava numa imensa depressão. E, lá no centro, sobre um monte de rochas negras erguendo-se como um altar, a torre se empoleirava com uma imponência impossível de ignorar.

    Um caminho de pedras sombrias descia como uma cicatriz pelo penhasco, serpenteando pelo desfiladeiro vazio até os portões principais. Nenhuma guarda visível. Apenas vigias distraídos no perímetro, como se até eles evitassem olhar diretamente para ela.
     
    O céu, já carregado, parecia se encurvar sobre a estrutura. Nuvens densas giravam em espiral lenta acima da torre, como se ela respirasse, absorvendo a claridade ao seu redor. A sensação era de opressão, como se estivéssemos sendo observados por algo que dormia, mas sonhava conosco.

    Se eu não soubesse quem Malena foi, se não carregasse a lembrança de sua doçura, teria acreditado que estávamos diante do covil de um deus adormecido ou de algum vilão de lendas antigas.
     
    E mesmo assim, havia beleza ali. Uma beleza obscura, fria. A única luz que se via vinha de janelas estreitas, onde um brilho esverdeado pulsava, e do grande observatório circular no topo da torre, como o olho de uma criatura antiga que nunca se fechava.
     
    Aquele lugar não era apenas antigo. Era sagrado. Esquecido por muitos, proibido por alguns, temido por todos. E, ao mesmo tempo, absolutamente necessário para meu caminho.

    Ali estavam perguntas, respostas. E, talvez, o começo da minha exploração do Vazio.
     
    Virei lentamente para Lock, que me observava com o canto dos olhos. Seu pequeno rosto estava sério, diferente do habitual tom debochado. Eu sorri, um sorriso silencioso e firme.
     
    Ali estavam meu trunfo. Ele e aquela torre esquecida. Um fragmento de poder e saber oculto que poderia ser a chave para enfrentar a Névoa… e o avatar do Vazio.
     
    Minha chance, talvez a única, de reaver Selune. De ter meu filho de volta.
     
    Mas antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, algo vibrou sob a camisa de Lock. Ele levou a mão ao peito com um reflexo quase automático e puxou uma corrente. Nela, pendia um medalhão metálico, ornado com um núcleo pulsante de luz âmbar.
     
    O brilho oscilava, como se estivesse alertando de algo urgente.
     
    — Droga. — murmurou ele. — Temos que voltar. Agora.
     
    Sem esperar resposta, se virou e correu na direção por onde viemos. A trilha de lama nos recebeu de novo com relâmpagos ao fundo, e eu disparei logo atrás dele. A chuva castigava nossos rostos, e por um momento a visão da porta flutuando sozinha entre as árvores pareceu uma miragem.
     
    Mas ela estava lá, aberta, como uma fenda suspensa no mundo.
     
    Atravessamos juntos. A sensação ao cruzá-la foi como mergulhar em um lago congelado, uma pressão súbita, seguida de uma leve tontura. Surgimos novamente no laboratório, encharcados, pingando água sobre o chão de pedra polida.
     
    Lock agiu rápido. Passou a mão sobre a superfície da porta mágica e ela imediatamente encolheu, até virar pouco mais que um retângulo minúsculo embutido na parede, imperceptível a olho nu.

    Então, sem perder o ritmo, se dirigiu a uma das bancadas próximas. Pegou dois frascos com líquidos coloridos e os segurou teatralmente, encenando um experimento qualquer. Sua voz surgiu forte, projetada, carregada de um tom professoral.
     
    — E é assim que se cria uma nuvem de chuva artificial! Entendeu, Lior?
     
    Na hora, entendi o que estava acontecendo.
     
    Endireitei os ombros, tentando parecer mais interessado no “experimento” do que molhado até os ossos.
     
    A pesada porta de ferro atrás de nós se abriu com um rangido lento e firme. Um silêncio repentino se instalou. Cada gota d’água que caía das nossas roupas parecia um tambor no chão liso.
     
    E então o vi.
     
    Parado na entrada, de braços cruzados e olhos fixos em nós, estava Juliani Gaio Argus, o próprio Imperador.
     
    Alto, imponente, vestindo um manto escuro com detalhes dourados. O tipo de presença que fazia o ar parecer mais denso. Seus olhos, olhos antigos, frios e analíticos, alternaram entre mim e Lock. Nenhum traço de surpresa ou desconfiança. Apenas cálculo.
     
    — Chuva artificial… — ele repetiu, a voz como uma lâmina que cortava o silêncio. — Interessante demonstração, Lockmead.
     
    O bogger sorriu, inclinando levemente a cabeça em uma reverência falsamente humilde.
     
    — Sempre à disposição de Vossa Majestade para ampliar os horizontes do Império.
     
    Eu me mantive calado. Ainda pingando, ainda com o coração acelerado. A sensação de estar sendo avaliado por algo além de humano era real, como se aqueles olhos enxergassem mais do que corpos. Como se olhassem direto para a alma.
     
    E o mais assustador era que, talvez… olhassem mesmo.

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