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    Fui pego de surpresa. Não imaginava que Elizabeth fosse me tratar com gentileza, muito menos agradecer. Mas, mesmo assim, uma parte de mim não podia deixar de desconfiar. Havia sempre algo não dito quando se tratava dela… ou de Annabela. Planos ocultos, interesses velados.

    — Não fiz mais que minha obrigação. — respondi, mantendo o tom neutro. — Meu foco não era salvá-lo, e sim derrotar o lich.
     
    — De qualquer forma, obrigada. — disse ela com firmeza, e voltou ao seu lugar entre os magos.

    Enquanto ainda assimilava aquele breve e estranho momento, um dos instrutores se aproximou. Era um homem magro, esguio, de postura ereta e modos refinados. Seu cabelo estava tão bem penteado, colado ao couro cabeludo com algum tipo de fixador oleoso, que parecia uma escultura de cera. Os dentes grandes e levemente desalinhados lhe davam a aparência de uma fuinha. Apesar disso, havia simpatia em seu olhar.

    — Então é você o famoso Lorde Lior Aníbal — disse, estendendo a mão com um sorriso exagerado. — Prazer. Sou Gus, responsável pela orientação mágica aqui no pátio.

    Apertei sua mão com um leve aceno de cabeça.
     
    — Lior.
     
    — Me disseram que é um talento promissor. Conhecedor de técnicas pouco ortodoxas… — Seus olhos brilharam de expectativa. — Que tal nos mostrar algo diferente do que estamos acostumados?

    Imediatamente, os outros jovens começaram a se aproximar. O círculo se fechou devagar, atraído pelo burburinho. Seus olhares estavam carregados de curiosidade, ceticismo… e rivalidade. Ali, qualquer sinal de fraqueza era um convite à humilhação. Eles queriam ver do que eu era feito. E, se possível, que eu falhasse.
     
    — Tudo bem. — murmurei, respirando fundo.
     
    Mas antes que pudesse agir, a garota de tranças azuladas se adiantou, a expressão firme e desafiadora.

    — Queremos algo novo. O que você apresentou no duelo contra Roderick já é passado. Eu mesma consegui mudar runas mentais desde então.
     
    Ela estendeu a mão. Uma chama brotou em sua palma, dançando por um segundo antes de se transformar em uma esfera de água límpida. O feito foi impressionante.
     
    — Muito bom — comentei, genuinamente surpreso. Além de Claire e Gérard, eu não havia ensinado aquilo a ninguém. Ela havia derivado o princípio por conta própria. — Qual é o seu nome?
     
    — Milena, da Casa Kareth.
     
    — Se importa se eu perguntar como chegou a esse resultado? Não o “como técnico”, que eu já sei… mas como você pensou nisso?
     
    Ela sorriu, corando levemente, e ergue o queixo com orgulho.

    — Temos um grupo de estudos. Jovens magos daqui do Palácio. Após a sua luta com Roderick, ficamos obcecados. Vasculhamos a biblioteca, discutimos cada detalhe. Não encontramos exatamente o que você fez, mas conseguimos entender o conceito, pelo menos, acho que conseguimos. Apenas eu e outro colega executamos essa alteração por enquanto.

    — Meus parabéns. Já que conseguiu alterar runas mentais, vou mostrar duas variações mais avançadas.
     
    Olhei para Milena.
     
    — Crie uma chama. — pedi. — Todos prestem atenção. Não vou dissipar a magia dela. Prestem atenção na mana.
     
    Senti a movimentação da sua mana. As runas começaram a se formar em sua mente. Antes que se consolidassem, sutilmente alterei um ponto-chave, desviando o fluxo. O resultado: o mana escapou como ar de um balão furado. A magia falhou antes mesmo de nascer.

    Ela piscou, confusa.
     
    — De novo. — ordenei.
     
    Dessa vez deixei a runa se completar. A chama surgiu em sua mão. Então, usando apenas minha própria mana, manipulei a estrutura mental da runa depois de estabelecida. A chama vacilou e se transformou em gelo, sem que ela percebesse exatamente como.
     
    Ela arregalou os olhos, espantada, mas manteve o foco. Sorri.
     
    — Tem mais.

    Transformei o gelo de volta em fogo, depois modifiquei parâmetros internos da runa. A chama aumentou de tamanho e intensidade, até se tornar quase uma tocha viva.
     
    — Agora, pare de infundir mana.
     
    Ela obedeceu. Mas a chama não desapareceu.
     
    Pelo contrário: continuava crescendo, consumindo a mana ambiente sozinha.
     
    Todos ao redor observavam, estupefatos. Fiz um gesto, desfazendo a magia.
     
    — Isso foi apenas um refinamento. Aplicações avançadas do princípio que você mesma deduziu.
     
    Dei um passo à frente, minha presença preenchendo o círculo.

    — Mas se querem ver algo realmente impressionante…

    Respirei fundo, canalizando mana com calma e precisão. Os jovens ficaram atentos. Então, declarei:
     
    — Assim que eu der o sinal, todos vocês conjurem uma chama. Ao mesmo tempo.
     
    Todos se prepararam. Assenti.
     
    No mesmo instante, alterei a estrutura da mana ambiente. Metamagia pura. Reescrevi as propriedades do fluxo ao nosso redor, tornando-o hostil ao fogo. A mana, por mais abundante que estivesse, não respondia à convocação.
     
    Os jovens franziram a testa. Tentaram. E falharam.
     
    Suor brotou em suas testas. Frustração e confusão se espalharam entre eles.
     
    — Como…? — Elizabeth murmurou, com os olhos arregalados.
     
    Cruzei os braços, sem esconder o sorriso.
     
    — Algo em que tenho trabalhado ultimamente.
     
    O silêncio que se seguiu disse mais do que qualquer elogio poderia expressar. Os olhares atônitos dos jovens e até mesmo dos instrutores eram impagáveis, uma mistura de surpresa, respeito e talvez uma pitada de inveja.
     
    — M-muito obrigado pela demonstração — gaguejou Gus, ainda tentando assimilar o que acabara de testemunhar.
     
    Antes que ele pudesse dizer mais alguma coisa, me adiantei, minha voz cortando a hesitação no ar:
     
    — Tenho trabalhado para organizar meus pensamentos e sistematizar todas as descobertas que venho fazendo. Em breve, pretendo aceitar alunos. Estou planejando fundar uma torre mágica, um lugar para estudo, pesquisa e verdadeira inovação arcana.
     
    Senti a tensão ao meu redor mudar. Até mesmo Gus pareceu tentado com a ideia. O brilho em seus olhos era evidente. Muitos ali, ainda que em silêncio, já se imaginavam cruzando as portas de um novo centro de poder mágico.
     
    Voltei-me para ele, com um leve aceno de cabeça.
     
    — Por ora, estou sob sua orientação. Faça comigo o que quiser.
     
    — Certo, então. Vamos praticar — respondeu, recuperando a compostura.
     
    Passamos o restante da tarde imersos em exercícios. Fiz o possível para não me destacar em excesso, mas não havia como evitar. Os olhos estavam sempre em mim. Cada feitiço lançado, cada nuance do meu controle de mana era observado com atenção quase reverente.

    Praticamos formações de suporte a tropas, simulações de campo e estratégias defensivas. Era evidente que, apesar do avanço tecnológico e militar do Império, o uso dos magos ainda era extremamente limitado. Eles eram relegados a funções de suporte ou proteção, raramente aproveitados em seu potencial ofensivo ou estratégico.

    Desde que absorvi os conhecimentos de Mahteal, compreendi como essa abordagem era retrógrada. O ensino imperial ainda se apoiava no velho paradigma do acúmulo de mana, um método antiquado que impunha limites severos à expansão do poder mágico. Isso resultava em núcleos frágeis, reservas insuficientes, e um desperdício colossal de talento.
     
    Havia tanto que eu desejava transformar. O mundo mágico, do jeito que estava, parecia preso em velhos paradigmas, engessado por tradições ultrapassadas, limitado por hierarquias que reprimiam o verdadeiro potencial das pessoas. Sonhava com uma nova era, uma em que a humanidade pudesse, enfim, evoluir como um todo. Onde estivéssemos preparados para enfrentar o Vazio não como indivíduos isolados, mas como um coletivo forte, coeso e consciente de seu papel no universo.

    A visão que me guiava era profundamente distinta daquela que Mahteal um dia abraçara. Ele buscara respostas no acúmulo de poder pessoal, um poder imenso, quase divino, mas que o isolava. Encarava seus problemas e os do mundo como fardos que apenas ele podia carregar. Foi um caminho solitário, embora grandioso.
     
    Eu via outro caminho. Um que não passava por figuras messiânicas, mas pela força da colaboração, pelo incentivo ao estudo, pelo florescimento da inteligência coletiva. A verdadeira ascensão não deveria ser uma escada solitária, mas uma ponte onde muitos pudessem atravessar juntos. Essa era minha proposta. Essa era minha revolução.

    Fui arrancado de meus devaneios por um toque metálico e firme. Um sinal ressoou pelo campo: era o anúncio de que o treinamento do dia havia chegado ao fim.

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