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    Lenora me olhou desconfiada.

    — Annabela? Por que quer falar com ela? Está suspeitando de alguma coisa?

    A raiva que eu sentia nessa hora, agora que Claire estava fora de perigo imediato, me fez perder a cautela. Falei, sem pesar se era o momento certo.

    — Sim, suspeito. Na verdade, tenho provas de que ela está intimamente ligada à invasão dos necros. E não só isso… está envolvida na morte de toda a família de Pandora, especialmente de seu pai, Arturus, irmão de Juliani. Vou te enviar todas as informações mais tarde, incluindo documentos que mostram o envolvimento de casas menores no fornecimento de escravos para a criação das aberrações que nos atacaram.

    Lenora mediu minha convicção com atenção, avaliando. O lado bisavó desaparecera. À minha frente estava apenas a Anciã. Era fria, calculista, totalmente política.

    — É uma acusação bastante grave, Lior. Você sabe que está arrastando sua amiga para o centro de um furacão, não sabe?

    — Sei, sim. Pandora está ciente de tudo. Hass também, se puder encontrá-lo. O buraco é muito mais fundo do que parece. E eu sei que Annabela envenenou Claire… se foi por ordem dos Umbrani, com o perdão da franqueza, ainda não sei.

    — Espero que tenha as provas que diz ter, Lior —murmurou, sentindono peso da encrenca que tinha jogado em seu colo. —Annabela tem uma residência própria, na ala interna do Palácio.

    Ela tirou um pequeno selo, parecido com o que, há muito tempo atrás, Okron me dera, e, meio hesitante, me entregou.

    — Vá. Ache um pajem. Ele vai te conduzir. Se alguém perguntar, mostre meu selo.

    Eu tremia. Era como se algo me possuísse. Medo — não do que encontraria, mas do que poderia fazer ao ver Annabela.
     
    Fiz exatamente como Lenora indicara. Assim que alcancei os corredores da ala interna, agarrei o primeiro pajem que vi e o obriguei a me guiar até ela.
     
    Atravessamos partes do Palácio que eu nunca tinha visto. Passamos por um jardim interno. Ao longe, distingui várias residências, pequenas vilas, na verdade, agrupamentos de casas cercadas de verde. Seguimos até uma das mais luxuosas que já tinha visto. Entramos por uma passagem de heras e cercas vivas. O jardim era meticulosamente cuidado. O som constante de água caindo rompia o silêncio com um ritmo hipnótico.
     
    — Só posso levá-lo até aqui, meu lorde — disse o pajem, recuando com pressa, como se fugisse de algo.
     
    Havia algo no ar. O jardim, o som da água, a calma incômoda… tudo me fez conter o ímpeto. Eu precisava do antídoto, não de mais inimigos.
     
    Avancei com cautela. Meus sentidos estavam aguçados. Sentia a presença dela como um calor à distância. Antes que pudesse alcançá-la, uma criada me viu e soltou um grito abafado.
     
    Annabela apareceu para verificar o alvoroço e nos encontramos no meio do caminho. Guardas surgiram ao redor, com armas em punho. Ela ergueu a mão, ordenando silêncio.
     
    — Ora, ora… que surpresa.
     
    Mas a frase morreu em seus lábios.
     
    Ela congelou no lugar, como se algo a atingisse por dentro. Um esgar lhe tomou o rosto, uma mistura de dor e espanto.
     
    Os guardas e serviçais ao redor caíram de joelhos, dominados.
     
    Em segundos, seus cabelos negros ondulados se tornaram lisos e brancos como neve. A pele perdeu o calor, adquirindo o tom lívido de uma estátua de mármore. Os olhos… rosa pálido. 
     
    Naksa.
     
    As lembranças de Mahteal me atingiram com brutalidade. Ela tinha sido sua esposa. E havia ternura ali, enterrada sob a raiva que fervia em mim.
     
    Ela caminhou em minha direção. Sua pele era perfeita, sem mácula. O perfume que emanava dela despertava algo profundo. Queria golpeá-la. Queria abraçá-la. A confusão me atravessava como lâminas de vidro.
     
    Ela agarrou minha camisa pelo colarinho e se aproximou, o rosto a milímetros do meu. Respirou fundo, puxando meu cheiro.
     
    Fiquei excitado.
     
    — Você cheira como ele. Parecido… mas não igual — disse, afastando-se. — Eu sei por que está aqui. Não fui eu. Foi Esther. Só recentemente tenho despertado, e mesmo assim, por instantes. Foi você quem me tirou da hibernação, Lior.
     
    Senti a verdade em suas palavras. Mas o nome de Claire, pronunciado por ela, reacendeu minha fúria. Ia dizer algo, mas ela me cortou.
     
    — Sim, Lior. Não Mahteal. Você não é ele, não ainda. Mas vejo as semelhanças, os ecos. Ele vive em você. — Ela caminhava diante de mim com graça, provocação. — Não foi por falta de ciúmes, sabe? Pensar naquela garota se casando com você… mexe comigo. Mas o tempo está do meu lado. Você vai se lembrar. Vai ser meu querido esposo, de novo.
     
    — Não… nunca serei ele. Eu sou a base.
     
    Ela soltou uma risada sincera.
     
    — Bobo… quantos anos você tem, Lior? Vinte? Vinte e um? Sabe quantos Mahteal viveu? Quantas memórias dele você carrega? Só comigo foram quase mil anos. E o que sentiu quando me viu? Não me diga que não foi mais forte que tudo o que sente pela menininha Umbrani.
     
    Ela estava certa. Vê-la havia me abalado. Eu lutava contra o desejo de tocá-la.
     
    Ela se aproximou novamente. Seu dedo longo e fino traçou uma linha sobre meu peito.
     
    — Quem diria… que de todos, seria Drael quem conseguiria. — Riu. — Fez um bom trabalho. Não perfeito, mas bom. Seu corpo é uma obra de arte. Algumas falhas, claro. A ausência de miasma… sabia que você foi feito para operá-lo?
     
    — Foi Mahteal quem me livrou da corrupção. Disse que o miasma não é o caminho para vencer o Vazio. Que o miasma é o instrumento do avatar do Vazio para espalhar sua podridão.
     
    Pela primeira vez, ela pareceu hesitar. Mas logo sorriu, suave.
     
    — Entendo… Mas não seria a primeira vez que ele muda de convicções. Sabia disso? Quando as portas se fecharam, muito tempo atrás, foi ele quem abraçou o miasma. Para abrir novas. — Ela riu de leve. — Não sei o que ele meditou dentro daquela pedra, mas talvez tenha achado, por um tempo, que o miasma não o servia mais… Acredite, é só uma fase.
     
    As palavras dela me atingiram em cheio. Havia verdade ali. Uma verdade que já rondava meus pensamentos, sorrateira, mesmo antes de ser dita. Eu me perguntava, cada vez com mais frequência, onde terminava Lior e começava Mahteal.
     
    — Tenho o antídoto — disse, com calma. — E vou entregá-lo como prova de boa fé. Não estive por trás dos planos de Esther. Ela agiu enquanto eu dormia. Usou fragmentos do conhecimento que compartilhei, enganou até mesmo os meus.
     
    Conduziu-me para o pavilhão central. Lá dentro, uma mesa de alquimia aguardava, organizada com precisão. Em poucos movimentos, como se fosse uma tarefa trivial, ela preparou uma poção incolor. Guardou o líquido num pequeno frasco de cristal e o estendeu para mim, permitindo que os dedos roçassem os meus por mais tempo do que o necessário.
     
    Meu coração hesitou.
     
    Ela se aproximou, e me deu um beijo cálido.
     
    Minhas pernas quase cederam. Mas foi ela quem se afastou, serena.
     
    — Você é um herói improvável, Lior. Nasceu aleijado, foi moldado para que Mahteal pudesse renascer. Atraiu inimigos que mal compreende, e tudo isso… por estar no lugar errado, na hora errada. Tudo que tem — Drael, o Vazio, Mahteal — lhe foi imposto. Com o tempo, Mahteal vai sobrepor sua vontade. Não por escolha dele, mas porque assim funciona.
     
    — Como você sabe disso? Da minha história?
     
    — Ora… para quem sabe somar dois e dois, e tem acesso a certos conhecimentos, não é tão difícil. — Ela sorriu, quase gentil. — Mas fique tranquilo. Esther não sabe.
     
    O olhar dela mudou. Havia compaixão ali. Pena, talvez.
     
    — Posso ajudar você. Pode manter o que é seu. E eu tiro Mahteal de dentro de você. Tenho meios pra isso. Você segue com sua vida. Casa com suas garotas. Tem filhos. Netos. — A voz dela soava sincera. — No fundo, você sabe… essa guerra não é sua. Tudo o que sempre quis foi viver em paz. Não é?
     
    As palavras dela ressoaram fundo em mim. Me peguei vagando de volta ao laboratório sem nem me despedir.
     
    Antes de me preocupar com essas questões, tinha que salvar Claire. E me afastei da tentação.

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