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    Cheguei ao laboratório, mas não conseguia tirar as palavras de Naksa da cabeça. Elas ressoavam, persistentes, como se tivessem sido gravadas à força em alguma parte funda da minha mente. Era como se houvesse um encantamento nelas, não daqueles lançados com gestos e fórmulas, mas algo mais sutil. Algo que mexia com a lógica, com o desejo. Tentei sentir qualquer traço de magia em mim, algum feitiço escondido, uma compulsão sutil. Nada. Era só ela… e o poder que certas verdades têm quando são ditas da forma certa, na hora errada. Isso só mostrava que Naksa era perigosa.
     
    Entrei com o antídoto nas mãos. Lenora e Lock me esperavam. Seus olhares caíram imediatamente para o frasco, e senti a tensão no ar se condensar em silêncio.
     
    — É o antídoto, Lior? — perguntou Lenora.
     
    — É sim — respondi, sem rodeios, indo até Claire.
     
    — E…? — ela insistiu.
     
    Minha mente ainda processava o que tinha se passado e fiquei confuso por um instante. Só depois percebi que ela não perguntava sobre a poção.
     
    — Quem a envenenou? — completou.
     
    Hesitei. Meu corpo ainda estava meio dormente, minha mente flutuando entre raiva e a estranha atração que Naksa deixara pairando sobre mim como um perfume impossível de dissipar. Começava a sentir um cansaço inexplicável.
     
    — Não tenho provas — respondi enfim. — Mas desconfio dos pais de Zia. Não perguntei diretamente… e agora talvez seja tarde demais pra isso.
     
    Lenora pareceu perceber o meu estado. Talvez tenha entendido que eu não tinha forças naquele momento para aprofundar aquela conversa. Apenas assentiu com leveza e se calou.
     
    Cuidadosamente, fiz Claire ingerir o antídoto. Observei, com atenção, os sinais de que os bloqueios de mana estavam começando a se desfazer. Era sutil, quase imperceptível, mas eu conseguia sentir. O fluxo começava a se reconstituir aos poucos, como uma nascente voltando a correr depois de muito tempo represada. Ainda assim, seria um processo lento. Dias, talvez uma semana, até ela sair do estado de fragilidade em que se encontrava.
     
    — Posso levá-la pra casa? — perguntei a Lock. — Não quero deixar ela aqui.
     
    Ele me olhou, e em silêncio começou a fazer ajustes na máquina que sustentava Claire. O barulho dos seus instrumentos era o único som no ambiente.
     
    — Vou adaptar o sistema pra algo mais portátil. Espero que aguente uns dez dias, com a energia armazenada. Se precisar, alimente com pedras de mana — respondeu depois de um tempo, concentrado no que fazia.
     
    — Agradeço, muito mesmo.
     
    Me sentei, cansado demais até para pensar. Lock trabalhava em silêncio. Lenora se afastou, como se respeitasse meu momento. Era como se cada parte do meu corpo estivesse cheia de um cansaço que não era só físico. Eu não sabia mais o que era exaustão emocional… aquilo já era outra coisa. Uma névoa densa. Um buraco dentro de mim que só aumentava.
     
    Lenora se aproximou, sem pressa. Sentou ao meu lado.
     
    — Que foi, Lior?
     
    Hesitei antes de responder.
     
    — Me ofereceram uma saída — suspirei fundo. — pra um monte de coisas que não posso sequer começar a falar.
     
    Ela me olhou por um longo tempo. Seus olhos, tão velhos quanto a própria corte, pareciam ler mais do que eu dizia.
     
    — Não sei o que aconteceu, nem o tamanho das suas provação — disse, por fim — mas escute o que vou lhe dizer: não existem saídas fáceis. Fugir da responsabilidade pode parecer tentador no início, mas isso só nos prende ainda mais. A única saída verdadeira é seguir em frente. Encarar o que está diante de nós. Seja o que for. Só isso tem o verdadeiro poder de libertar.
     
    Ela sorriu, e por um instante, era só uma avó preocupada com o neto. A mulher poderosa e política se dissolveu no calor daquele gesto simples.
     
    Assenti, mas não falei nada. Desde que me perdera na névoa, o caminho parecia cada vez mais tortuoso. E eu, cada vez mais perdido nele. Não queria me perder de mim mesmo. Não queria deixar de ser quem era.
     
    Selune… agora Claire… e talvez, inevitavelmente, Nix também. Essas previsões que me assombravam pareciam cada vez mais próximas da realidade.
     
    Sem aviso, as lágrimas vieram. Começaram devagar, queimando meus olhos. Mas em pouco tempo se tornaram soluços convulsivos. Chorava como não chorava desde criança. Não me lembrava da última vez que havia me permitido sentir tanto assim.
     
    Lenora respeitou meu silêncio. Se afastou, deixando-me sozinho com minha dor. E ali, entre máquinas e mágoas, acabei adormecendo.
     
    A voz de Lock me despertou.
     
    — Está pronta pra ser transportada, Lior. Ajustei tudo. A carga da máquina vai aguentar cerca de dez dias. Se precisar mais, alimente com pedras de mana, mas já falei isso, não é?
     
    Agradeci, me levantando. Ele me olhou, mas não disse nada por um tempo. Quando já estava quase cruzando o pórtico, ele falou:
     
    — Não precisa vir esses dias, ok?
     
    — Prefiro vir. Manter a mente ocupada.
     
    — Você que sabe.
     
    Envolvi Claire e o equipamento com minha telecinese, e parti. Fui direto pra casa.
     
    Quando cheguei, Pandora, Niana, Alana, Nix, Anna e algumas das serviçais mais próximas de Claire já esperavam. Todas com olhares apreensivos, tensos. O ambiente estava pesado. Era o tipo de silêncio grave e pesado que antecipava noticias ruins.
     
    Rapidamente organizaram o quarto. Coloquei Claire na cama, enquanto todas observavam, tentando encontrar alento em qualquer sinal de melhora.
     
    Pandora foi a primeira a falar.
     
    — E aí? Como ela está?
     
    — Estável. Consegui o antídoto. Ela vai se recuperar. Talvez fique com alguma sequela… não temos como saber ainda. Mas o mais importante agora é alimentar e fortalecer o corpo dela.
     
    — Pode deixar — disseram Nix e Pandora, quase em uníssono.
     
    Respirei fundo. Olhei para as duas.
     
    — Nix, você está comigo desde o começo. Pandora, você conhece toda a história. Preciso de um conselho.
     
    Fechei a porta. Ordenei que ninguém nos interrompesse. E contei tudo. Desde o resgate de Claire, até o encontro com Naksa, as palavras dela, a conversa com Lenora.
     
    Pandora me ouviu em silêncio. Quando falei o nome dela para Lenora, vi sua expressão mudar.
     
    — Primeiro de tudo, Lior. Não era seu direito contar a Lenora sobre a minha história — disse, firme, sem raiva, mas com uma frieza que doeu mais do que qualquer grito. — Ela suspeitava, mas não tinha certeza. E você deu isso pra ela de mão beijada.
     
    Ela se levantou, devagar.
     
    — Segundo… você me tirou o direito de escolher. De decidir. Me colocou no meio de um incêndio, exatamente como Drael e Mahteal fizeram com você. E acha isso justo?
     
    Ela saiu do quarto, fechando a porta com calma. Mas aquele som ecoou como uma sentença.
     
    Me movi, querendo ir atrás. Nix me segurou pelo braço.
     
    — Deixe. Ela precisa de tempo. Vai pensar. Já tinha decidido contar a verdade pra Lenora. Parar de fugir. O que, aliás, é algo que você também precisa aprender a fazer.
     
    Ela se colocou diante de mim, pegou minhas mãos afetuosamente.
     
    — Sabe por quê? Porque você também já sabe qual é a sua missão. Sua responsabilidade. No começo, talvez não fosse sua. Mas agora… depois de tudo que viu, tudo que sabe… consegue mesmo fingir que nada disso te pertence? Que pode simplesmente ir embora e viver em paz? Se distanciar disso tudo significa abrir mão de Selune, não?
     
    — Não é isso. Claro que não quero abandonar nada. Nem ela, nem Claire, e muito menos você.
     
    — Então pare de pensar em fugir. Assuma o que é seu. O destino é uma carga, mas é também o caminho. Não há outra saída, Lior.
     
    As palavras de Nix eram um golpe direto. Por mais que o desejo de abandonar tudo me corroesse por dentro, ela tinha razão. Era chegada a hora. A hora de amadurecer, de aceitar o fardo. De parar de tentar escapar de mim mesmo.
     
    As palavras de Naksa ainda dançavam em minha mente, sedutoras como um veneno doce. Mas por mais que ela tivesse razão em parte, sobre Mahteal, sobre o risco de ser engolido e desaparecer, havia algo que ela não entendia: eu não era só uma base. Eu era Lior.
     
    E era hora de provar isso.

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