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    Por trás de algumas heras espessas e musgos encharcados, havia uma fissura na rocha, estreita, quase invisível, como uma cicatriz antiga que o tempo tentara apagar. Era uma entrada disfarçada, uma fenda natural esculpida pela paciência da água e do vento.

    Descemos com cuidado, os pés tocando pedras frias e escorregadias, até que o estreito túnel desembocou em um recesso oculto nas entranhas da terra. No fim da pequena câmara, uma parede de alvenaria bruta barrava o caminho. No centro dela, um círculo mágico quase apagado pulsava suavemente em azul. Era como se fosse algo vivo. E antigo.

    Lock arregalou os olhos.

    — Uau… Como você sabia disso? — começou, e já ergueu uma das mãos. — Tá, tudo bem. “Tenho meus segredos também.” — disse, me imitando com um deboche carinhoso.

    Soltei uma risada baixa. Fiz um gesto com a cabeça, indicando que ele podia examinar a tranca.

    Ele se aproximou e ficou alguns instantes observando as runas. Passou a mão sobre elas como quem acaricia uma peça rara.

    — Tranca de três fatores… elegante. Impressionante ainda estar funcional depois de tantos séculos. — Ele começou a tirar instrumentos da mochila. — Isso aqui não foi feito por qualquer um.

    Lock trabalhou por longos minutos, murmurando para si mesmo, consultando cristais, conectores, hastes com pontas de prata. Em certo ponto, começou a coçar a cabeça, irritado.

    — Agora entendi por que os imperiais estavam me pressionando — resmungou. — Essa senha muda a cada dois, três minutos. Isso aqui… foi feito pra frustrar qualquer um. Meus decodificadores não funcionam com tanta instabilidade.

    — Dá licença — falei, me aproximando.

    Estendi a mão, projetei uma runa mental. Um pulso suave de mana. A primeira tranca se desfez. A segunda estalou. A terceira deslizou como uma engrenagem lubrificada.

    Lock me olhou, olhos arregalados.

    — O que é que você não tá me contando, Lior?

    Suspirei, mantendo o olhar fixo na parede que começava a se mover.

    — Muita coisa. Mas nada que vá atrapalhar o que a gente está tentando fazer aqui.

    — Isso me preocupa — murmurou.

    — São coisas pessoais. Não tô escondendo nada sobre o Vazio ou a Névoa, se é isso que teme. Mas minha história com essa torre… ela é complicada.

    Lock hesitou, depois assentiu.

    — Certo. Respeitarei seus segredos. Por enquanto.

    A parede se abriu com um baque abafado, liberando um cheiro que parecia ter sido mantido em cárcere por gerações. Mofo velho, suor seco, sangue petrificado nas pedras. O ar ali dentro era espesso. Antigo. Umidade e lembranças de dor.

    — Subsolo da torre — murmurei. — As masmorras. E se tem uma coisa que aprendi sobre lugares assim… é que o pior sempre espera.

    Lock puxou de sua mochila um tridente com pontas encantadas e uma esfera de cristal opaca. A esfera parecia um olho cego.

    — Consegue alimentar isso com mana? Vai nos dar luz suficiente.

    Toquei a esfera e transferi um fluxo constante de energia. Ela flutuou, tremeluzente, até encontrar seu eixo no ar. Um brilho pálido, azul-esverdeado, envolveu o corredor.

    O chão era irregular, coberto de poeira e fragmentos de ossos. Grades de ferro cobriam as laterais, celas antigas, onde jaziam esqueletos encolhidos em posições doloridas, como se nunca tivessem tido descanso. Alguns ainda tinham vestígios de roupas, correntes nos pulsos, marcas de tortura nas paredes. A morte ali tinha se tornado parte da arquitetura.

    Caminhávamos em silêncio, atentos, até uma sala retangular se abrir diante de nós. Nas paredes, ganchos seguravam dezenas de chaves enferrujadas. Tudo coberto de pó.

    Foi quando um som surgiu. Um zumbido grave, vindo do fundo das pedras. Em seguida, passos metálicos ecoando do corredor à esquerda. Pesados. Rítmicos.

    — Droga… — murmurei. — Ativamos um sistema de segurança.

    Da sombra, emergiu um construto de ferro negro. Um golem, alto como duas pessoas empilhadas, com braços largos e um núcleo vermelho pulsando no peito.

    — É um golem de guarda — disse Lock, já se mexendo. — Distrai ele! O terminal deve estar na sala de onde ele veio!

    O golem nos viu. A luz vermelha em seu peito brilhou, e ele se lançou contra nós.

    Ergui uma barreira mágica. Lancei duas esferas de energia, direto no peito. A barreira foi atravessada como se fosse fumaça. As esferas se chocaram contra o construto, mas não o detiveram nem por um segundo.

    Lock desapareceu pela lateral. O golem virou-se, mas aproveitei para lançar uma bola de fogo contra sua cabeça. Ele hesitou. Virou-se de novo para mim.

    As mãos se abriram. Lâminas giratórias surgiram de seus antebraços. O som cortante e agudo delas doía nos ouvidos.

    Ele desferiu um golpe de cima pra baixo. Reforcei meus músculos com mana e saltei de lado, com o corpo quase raspando no chão.

    Ele insistia. Me cercando. Tentando me encurralar. Sabia o que fazia.

    Sem Lock por perto, não precisei conter o meu poder.

    Conjurei um raio de fogo, mas alterei a runa, ultrapassando os limites convencionais da magia. A temperatura subiu tanto que o ar começou a vibrar. Por onde o raio passava as paredes ficavam marcadas por linhas vermelhas incandescentes. Pedra derretida escorria como cera.

    O golem resistia. Mas eu insisti. Ele investia e eu desviava, mantendo-o na mira dos raios. Sua armadura, ainda resistia, onde o raio o acertava, marcas vermelhas surgiam, mas não causavam dano substancial.

    Ajustei a runa de emissão. Aumentei a pressão. O calor era tão intenso que meus próprios pelos se incendiaram. O cheiro de cabelo queimado começou a me incomodar.

    Finalmente, o casco do golem começou a derreter. Gotas de ferro fundido se soltavam, pingando no chão e nas paredes.

    Sem minha intenção, a luta se tornou mais perigosa. Ele atacava e as gotas de metal derretido saltavam para todos os lados.

    Uma delas me acertou no braço. A dor foi imediata. Aguda. Senti a carne se abrindo, afundando, até quase o osso. Quase desmaiei com o cheiro da minha própria pele se dissolvendo.

    Meus sentidos ampliados se tornaram um problema momentâneo. A dor me cegou e eu perdi o golem de vista.

    Ele avançou. Rápido. Uma lâmina vindo direto pro meu pescoço.

    E então… parou.

    A lâmina ficou suspensa a milímetros da minha garganta. Tremendo.

    Atrás dele, Lock segurava um cristal, com o rosto coberto de suor.

    — Desativei — disse, ofegante.

    Caí sentado no chão, respirando com dificuldade, o braço latejando em agonia.

    — Você é maluco — falei, tentando rir.

    — Mas você tinha tudo sob controle — respondeu Lock, vindo até mim.

    Comecei a conjurar uma runa de cura. Mas antes de fechar os olhos, olhei para o golem parado, ainda soltando fumaça.

    — Mal dá pra dizer que entramos de verdade — murmurei, observando o corredor à frente com desconfiança. — Vai ser mais complicado do que eu pensava.

    — As coisas que valem a pena raramente são fáceis, Lior — respondeu Lock, sem tirar os olhos do mapa improvisado que desenhava em seu caderno.

    Assenti em silêncio. Ele tinha razão. O laboratório de Malena nos esperava no décimo andar, e era lá que estavam as respostas que eu procurava, sobre a torre, sobre os experimentos, sobre tudo que nos arrastara até ali. Não podia sequer considerar desistir agora. Selune contava comigo.

    — Vamos seguir? — perguntei, flexionando o braço recém-curado. — Já estou pronto.

    — Vamos sim. Para que lado?

    — Escolha você, Lock. Precisamos encontrar o caminho para o primeiro andar… de preferência sem acordar mais nenhum daqueles sentinelas.

    Lock ajustou um pequeno instrumento cilíndrico preso ao pulso, observou por alguns instantes as leituras dançando sobre a superfície mágica e apontou com firmeza para uma das passagens à direita.

    — Por ali.
     

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