Capítulo 167: A torre (3)
Segui Lock por corredores estreitos e abafados, e o cenário se repetia. Celas abandonadas, grades retorcidas, marcas antigas de combate. Restos de criaturas que eu não saberia nomear e uma camada espessa de poeira cobrindo tudo, como se o tempo ali dentro tivesse parado.
Passamos por mais dois golens em nosso caminho, mas ambos estavam em estado tão deplorável que mal pareciam capazes de erguer um braço. Estavam tombados no chão, rachados e vazios por dentro. Suspirei, aliviado por não precisar enfrentar outro.
Enquanto caminhávamos, minha mente voltava, inquieta, para o combate anterior. O que eu tinha feito de errado? Pelas lembranças de Mahteal, enfrentar um daqueles golens, embora arriscado, não deveria ter sido tão difícil e desesperador. Eu pensava em duas possibilidades. Ou ainda não sabia usar a magia direito, por insistir em raciocinar como Lior e não como Mahteal… ou minhas reservas de mana estavam longe de se comparar às dele. A verdade é que era uma mistura dos dois. Pensar como Lior limitava meu instinto mágico, e, mesmo com as vantagens que herdei, meu corpo ainda era meu. Quase morri, e isso me incomodava mais do que eu queria admitir.
Mas o quanto eu estava mesmo disposto a abrir mão de mim mesmo. Pensei em que aos poucos seria substituído por Mahteal. A oferta de Naksa surgiu em minha mente, tentadora.
Chegamos a uma sala mais ampla, de teto baixo, repleta de instrumentos enferrujados e mesas metálicas. Uma mistura de laboratório com câmara de tortura. O cheiro era denso, sólido, ferrugem, mofo e um leve resquício de miasma impregnado nas paredes.
Lock abriu os olhos com um brilho de entusiasmo.
— Finalmente algo interessante…
Havia estantes encostadas nas paredes, cheias de papéis embolorados, diários e anotações amareladas. Bancadas cobertas por frascos vazios e ferramentas cirúrgicas. No canto, uma escrivaninha carregada de documentos e restos já decompostos de alguma criatura.
Começamos a revirar o que parecia mais útil. Lock se debruçou sobre os textos técnicos, enquanto eu me interessava pelos diários. Ele lia sobre experiências com criaturas infundidas em miasma, necros e outros corpos retorcidos por magia negra. Os registros eram escritos com uma letra minúscula e organizada, quase metódica. Não era a de Malena, disso eu tinha certeza.
Já os diários, esses sim eram dela. A caligrafia era inconfundível: cursiva, inclinada, elegante. As datas, no entanto, me confundiam. O tempo passado era algo estranho desde que herdei as memórias de Mahteal, e os períodos pareciam embaralhados. Ainda assim, tudo aquilo parecia anterior ao aprisionamento dele.
Os papéis estavam frágeis, ressecados, como se fossem se desfazer a qualquer toque mais brusco. Era preciso paciência e tempo de sobra, o que não tinha no momento.
Lock me lançou um olhar impaciente.
— Separa o que quiser levar. Vou preparar o que for importante pra gente carregar no cubo dimensional. Lembra que só temos até o nascer do sol pra explorar isso aqui.
Assenti e comecei a separar os volumes que pareciam mais próximos da data do aprisionamento de Mahteal. Talvez houvesse pistas ali. Alguma resposta.
Ao fundo da sala, uma escadaria de pedra levava ao andar superior. Olhei para cima, sentindo a mudança no fluxo de mana.
— Vamos tomar cuidado — avisei, parando no primeiro degrau. — Pode haver gente do Império no térreo.
— Que nada — respondeu Lock, rindo com aquele jeito debochado de sempre. — Pelo que ouvi, ainda estão tentando vencer as proteções da entrada antes da porta. Nem conseguiram passar da barreira.
— Mesmo assim. Não custa nada sermos cuidadosos.
Subimos com atenção, um degrau de cada vez, e emergimos em um salão amplo, de teto alto. De onde estávamos, podíamos ver a entrada principal. Uma porta colossal, de pedra negra, com folhas duplas e runas que ainda brilhavam em um tom suave de azul. A imponência dela fazia parecer que toda a torre girava em torno daquele ponto.
— Aqui no térreo fica a recepção, a biblioteca geral, algumas salas de auditório e áreas comuns de convivência — falei, das lembranças que surgiam na monha cabeça. — Sinceramente, nada que vá satisfazer nossa curiosidade. A biblioteca é bem básica… livros introdutórios, teoria mágica primária.
Parei, colocando a mão no queixo, pensativo.
— Embora… alguns desses livros básicos poderiam servir de base pra quando eu for montar minha própria torre.
Lancei um olhar rápido para ele. Lock deu de ombros, como quem diz “por que não?”. Caminhei até a entrada da biblioteca, curioso.
— É assim que começa, sabia?
— Hã? — perguntei, sem entender.
— A loucura — ele respondeu com um sorriso travesso. — É falando sozinho que ela começa.
E, dizendo isso, deu um leve tapa na minha perna como se tivesse acabado de contar a melhor piada do dia.
Entramos na biblioteca, e o ar parado e seco nos envolveu como um cobertor de poeira. O teto era alto, com pé-direito duplo, sustentado por colunas de pedra escura cobertas de inscrições quase apagadas. Tudo estava coberto por aquela camada espessa de pó que parecia onipresente na torre, como se ninguém houvesse pisado ali em décadas, ou séculos.
No centro do aposento, duas grandes mesas de leitura ocupavam o espaço, ladeadas por cadeiras de madeira pesadas e carcomidas pelo tempo. De um dos lados, estantes altas se alinhavam em fileiras paralelas, formando corredores estreitos entre os livros. A maioria das obras estava em estado lamentável: capas rasgadas, folhas soltas, lombadas partidas. Alguns livros literalmente se desmanchavam ao toque.
A coleção era composta, em sua maior parte, por volumes de teoria mágica básica, tratados sobre manipulação de mana, fundamentos de encantamento e runas elementares do primeiro círculo. A base da base. Ainda assim, comparado aos padrões do Império, muitos daqueles textos seriam considerados avançados. Provavelmente por isso ainda estavam ali.
Reuni uma pilha com os volumes que me pareceram mais úteis e relevantes, os que tratavam de estruturas rúnicas e integração elemental, e os guardei no cubo dimensional com cuidado.
Foi quando ouvi a voz de Lock vindo do outro lado da sala.
— Lior, vem ver isso aqui…
A urgência contida no tom dele me fez atravessar a biblioteca com passos rápidos. Encontrei-o de pé diante de um pedestal onde um cristal esverdeado flutuava preso por uma estrutura de metal escuro. Acima do cristal, uma figura translúcida era projetada no ar. Pequena, humanoide, sem rosto — uma espécie de silhueta com braços finos e um corpo que tremeluzia como uma chama prestes a apagar.
— Uau — ele murmurou, fascinado — uma consciência mágica. Inteira.
Lock virou-se para mim, os olhos arregalados, vibrando de entusiasmo.
— Isso aqui vale ouro, Lior. Mais que ouro… se eu conseguir extrair essa consciência e estabilizar ela…
Sem esperar resposta, ele tirou do cinto um punhado de instrumentos — sondas mágicas, lentes, conectores de cristal, e começou a examinar a base onde o cristal estava acoplado, murmurando fórmulas baixas e observando as reações no console antigo.
Enquanto ele trabalhava, reparei que a figura projetada começava a se mover com mais rapidez. Não falava, mas seus gestos tornavam-se inquietos, nervosos. Era como se estivesse tentando se comunicar. Tentar dizer que algo estava errado. A cor do cristal, até então verde-clara, começou a escurecer, tingindo-se de vermelho aos poucos.
— Lock… — chamei, mas ele parecia concentrado demais para ouvir.
A figura agora tremia, os braços em gestos quase desesperados. E então, num segundo, tudo parou. A luz vermelha piscou uma única vez e Lock ficou completamente imóvel. Parado. Os olhos abertos, fixos no nada, como se tivesse sido congelado por dentro.
— Droga — murmurei, dando um passo à frente, tentando entender o que acabara de acontecer.
Era evidente. Algum mecanismo de segurança antigo tinha sido acionado. E a consciência mágica, em vez de ser extraída… havia puxado a mente de Lock para dentro de si.
Olhei em volta, inquieto, depois de volta para ele.
— Caramba… será que vou ter que ir atrás dele lá dentro?
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