Capítulo 157: Outras vítimas
Sob as luzes artificiais que enchiam o laboratório de Lock, pude finalmente observar o Imperador com mais atenção.
O primeiro impacto de vê-lo, aquela figura quase mítica, dissipou-se sob o brilho frio das lâmpadas. A imagem majestosa do soberano absoluto do Império parecia trincada. Juliani Gaio Argus aparentava estar… gasto. As rugas em seu rosto se aprofundavam como cicatrizes de batalhas não travadas no campo, mas na alma. Seus olhos carregavam sombras de noites sem sono e decisões cruéis.
Ainda assim, sua presença era algo palpável. Pesava no ar como uma muralha invisível. Cada palavra que pronunciava parecia mover as pedras do palácio.
— Uma verdadeira surpresa — disse ele, a voz dura e carregada de algo que roçava a raiva contida — encontrar o defensor de Thallanor vagando pelo meu laboratório mais secreto.
Senti seu sarcasmo, mas deixei que minha expressão permanecesse neutra. Levemente respeitosa, mas não subserviente.
— Fui convocado por Lenora, Vossa Excelência — respondi, com um leve aceno de cabeça. — Algo relacionado ao Círculo Interno do Império. Fiz os testes como mandado… e, quando dei por mim, estava aqui, apreciando o conhecimento incrível de mestre Lock.
O Imperador coçou lentamente a barba com a ponta dos dedos. Seus olhos não saíam de mim. Parecia pesar cada palavra, tentando encontrar nelas alguma brecha ou mentira.
Antes que pudesse responder, Lock se adiantou, sua voz ganhando um tom animado e servil:
— Nem mesmo os pesquisadores reais demonstraram uma mente tão afiada quanto nosso jovem Lior, Vossa Majestade. Em onze anos aqui, ele foi o único capaz de resolver minha questão especial. Podemos alcançar grandes avanços juntos, se assim Vossa Majestade permitir.
O Imperador franziu o cenho. Pensativo. A expressão dura se manteve, mas notei uma leve chama de interesse surgir em seu olhar cansado.
— Certo. — disse ele, seco. — Por ora, concordo. Mas quero ver resultados verdadeiros, senhor Lock. Avanços, não promessas. — Ele fez uma pausa, os olhos se estreitando. — Onde estão os aparelhos para neutralizar runas de defesa que lhe pedi?
Minha mente disparou. Runas de defesa? Era evidente que falava da torre — a mesma que havíamos vislumbrado além da Porta. Meus conhecimentos sobre a escrita de Malena poderiam ser extremamente úteis ali… mas me contive. Intervir agora só traria mais perguntas sobre mim e atrairia uma luz indesejada para meus planos com Lock.
O bogger pareceu encolher um pouco sob o olhar do Imperador. Moveu-se rápido até uma das bancadas e, debaixo de uma pilha de pergaminhos e ferramentas, retirou um objeto: um bloco de madeira quadrado, com fios dourados e cristais embutidos.
— Ainda está em estágio inicial, Majestade. — disse Lock, entregando o objeto com certo cuidado. — Um protótipo bruto… sem muito refinamento. Mas funcional.
O Imperador tomou o objeto nas mãos, girando-o lentamente para inspecioná-lo. Seus olhos brilharam com uma faísca de interesse real.
— Funciona? — perguntou ele, sem tirar os olhos do cubo.
Lock hesitou um instante, um gesto tão breve que talvez outro não o tivesse percebido.
— Acredito que sim… — respondeu, escolhendo bem as palavras. — Se me fosse permitido estudar diretamente as runas em questão…
O Imperador ergueu a cabeça num movimento brusco.
— Já disse que não. Não quero você fora do Palácio.
Aquela negativa soou mais dura do que o necessário, como se houvesse um medo oculto no fundo de suas palavras. Um medo do que Lock poderia descobrir… ou fazer.
Juliani virou-se sem mais cerimônias, segurando o bloco de madeira como se fosse um prêmio ou uma arma recém-conquistada.
— Espero vê-lo nos treinos marciais também, lorde Lior. — disse, jogando a frase por cima do ombro enquanto caminhava para a saída. — Ocorrem no pátio leste, logo após o almoço. Sua participação — acrescentou, sua voz assumindo um tom cortante — vai determinar se poderá ou não continuar servindo aqui.
Assenti, sem dizer nada. Um gesto calculado.
Era claro: eles queriam me manter preso dentro das muralhas do Palácio. Vigiado. Controlado.
Mas eu não pretendia jogar o jogo deles… não por muito tempo. Jogaria enquanto me fosse útil, enquanto me aproximasse da torre, de Lock e dos segredos antigos que precisaria para desafiar a Névoa.
Assim que o som das botas do Imperador desapareceu, olhei para Lock. Ele me retribuiu um sorriso travesso e cúmplice.
Estávamos apenas começando.
— Como? — apontei, quase sem acreditar, para a minúscula porta vermelha embutida no pé da parede de pedra.
Lock apenas sorriu, um sorriso que parecia dividir sua face redonda e marcada pelas rugas da idade e da experiência.
— Semântica, Lior… — disse ele, como se fosse a coisa mais óbvia do mundo.
Naquele momento, ao ver o brilho maroto nos olhos dele, senti uma pontada de desconforto. Um medo sutil. Percebi, como nunca antes, o quanto seres inteligentes, mesmo escravizados, podiam dobrar, contornar e distorcer ordens e regras apenas com as palavras. Semântica. O domínio da linguagem como arma.
Era uma lição que jamais esqueceria.
Afastei o pensamento, antes que ele me envenenasse, e forcei um meio sorriso.
— E agora? — perguntei, tentando soar casual.
Lock inclinou levemente a cabeça, como um mestre de jogos preparando sua próxima peça.
— Já lhe mostrei algumas coisas, meu jovem amigo. — disse, num tom leve demais para o peso que suas palavras carregavam. — Espero ter cutucado sua curiosidade. Agora… é a sua vez.
Seus olhos, de um azul aguado, cravaram-se nos meus.
— Quero saber tudo o que sabe sobre a Névoa… e sobre o Vazio.
A tensão mudou o ar à nossa volta. Senti como se estivéssemos prestes a cruzar uma linha invisível.
Analisei o rosto de Lock. Havia ali algo mais do que simples curiosidade — era ódio. Um ódio que queimava tão intensamente quanto o meu. Talvez até mais.
Suspirei, resignado. Arrastei uma cadeira e me sentei de frente para ele.
— Isso pode demorar… — avisei.
— Não pretendo sair daqui. — respondeu ele, com um sorriso torto. — Você ouviu da boca do meu dono: minhas limitações são bem… específicas.
Respirei fundo. E comecei a contar.
Falei do que Mahteal havia me ensinado. Do que tínhamos observado, estudado, temido. Contei sobre a Névoa: o modo como ela corrompia, como destruía sem deixar rastros. Contei sobre o Vazio, o deus insidioso que se alimentava das frestas da realidade. O Inimigo que ameaçava não apenas este mundo, mas todos.
O que não contei foi sobre meus segredos. Sobre Mahteal em si. Sobre Selune. Sobre meu filho.
Algumas coisas ainda precisavam permanecer apenas comigo.
Lock escutava com atenção voraz, os olhos arregalados como se absorvesse cada palavra.
Em determinado momento, quando descrevi a extensão da ameaça, ele me interrompeu, a voz rouca de emoção:
— Ele é o inimigo de todos nós, Lior. — disse com uma convicção que calou o salão. — De toda a existência.
Depois disso, o silêncio se estendeu entre nós, espesso e pesado.
Lock então puxou de dentro do colete uma pequena garrafa de vidro esverdeado. Retirou a rolha com os dentes e tomou um longo gole de um líquido dourado.
— Eu venho de um lugar chamado Arcádia. — começou ele, a voz embargada não só pela bebida, mas também pela memória. — A Névoa… que chamávamos de Vazio… destruiu o nosso mundo.
Eu prendi a respiração.
— Sou um dos poucos sobreviventes. Nós, feéricos, não usamos mana como vocês. — Seus olhos brilharam estranhamente à luz artificial do salão. — Nós fazemos magia porque acreditamos. Nossa fé moldava a realidade. Quanto mais acreditávamos, mais poderosa se tornava nossa magia.
Ele tomou mais um gole, como se precisasse de coragem líquida para continuar.
— Quando Arcádia caiu, conseguimos escapar. Apenas sete de nós. — a voz dele era um sussurro carregado de saudade e dor. — Antes de fugir, dividimos o que restava do reino em sete fragmentos. Cada um de nós carrega uma parte consigo… num lugar que vocês chamam de Oceano de Mana.
Fez uma pausa, como se medisse o peso da revelação.
— Além disso… — sua voz suavizou ainda mais — eu consegui resgatar minha rainha. Trouxe-a comigo.
Fiquei pasmo.
— Você… quer dizer que tem um reino dentro de você? E uma rainha?!
Lock soltou uma risada seca e amarga.
— Um fragmento, Lior. Um eco do que já foi. — Sua expressão endureceu. — E… não sei se percebeu, mas eu não consigo mais usar magia. — Confessou, como se fosse a mais dolorosa das verdades. — Sozinho… eu não consigo acreditar o suficiente. Não posso abrir o fragmento. Não posso… libertá-la.
Por um instante, a dor em seus olhos foi tão forte que tive vontade de estender a mão até ele.
— É por isso que me dedico tanto a criar instrumentos mágicos. — continuou, recompondo-se. — Para suprir a magia que perdi… Para aprimorar o que restou em mim.
Ele se recostou na cadeira, o olhar perdido nas sombras do teto.
— Também por isso… coleciono conhecimento mágico de todas as dimensões que consigo tocar.
Demorei alguns segundos para conseguir falar.
— Uau. — foi tudo que consegui murmurar.
Lock apenas sorriu, melancólico.
E naquele instante, compreendi: ele não era apenas um aliado. Era uma peça essencial. Um sobrevivente de uma guerra que eu ainda nem entendia por completo.
E talvez, se nossos destinos se entrelaçaram, fosse porque o Vazio temesse o que poderíamos construir juntos.
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