Capítulo 168: A torre (4) - Reino dentro de Lock
Esperei ao lado de Lock, observando seu corpo imóvel. Ele não se mexia, os olhos vidrados no cristal, que agora pulsava num tom profundo de vermelho, quase como se estivesse irritado, vivo.
— Droga — murmurei, apreensivo — Vou mesmo ter que ir atrás dele…
Fechei os olhos e mergulhei nas lembranças de Mahteal, buscando alguma orientação. Alguma informação útil para uma situação como essa. Vasculhei fragmentos desconexos de memória, cenas perdidas entre combates, estudos e visões espirituais. A conclusão que cheguei era simples: entrar diretamente no cristal seria suicídio. Eu ficaria preso, como Lock. Mas se entrasse por ele, através de seu oceano de mana, mantendo meu ponto de origem no meu próprio corpo, haveria uma âncora. Poderia retornar, se conseguisse manter o vínculo.
Respirei fundo, tentando não pensar demais. Reuni minha mana, esfreguei as mãos uma na outra, depois encostei a palma aberta nas costas de Lock. Fechei os olhos e deixei minha energia fluir. Ele estava vulnerável, suas defesas mágicas desativadas por completo. Entrei direto em seu núcleo, sendo arrastado para dentro como uma corrente invisível puxando minha consciência.
Um clarão me cegou por alguns segundos.
Quando abri os olhos fique atônito.
Havia uma cidade dentro do núcleo de Lock.
Sim, uma cidade de verdade, ou parte de uma.
Casas feitas de pedra clara e madeira escurecida pelo tempo se alinhavam ao longo das ruas, que eram pavimentadas com blocos irregulares, gastos pelo uso. Algumas tinham varandas com trepadeiras, outras chaminés ainda fumegando, como se alguém tivesse acendido o fogo minutos antes. Postes de luz mágica pontuavam as esquinas, iluminando com um brilho suave, âmbar. Pequenas fontes decoravam as praças, a água fluía com naturalidade, como em qualquer cidade de verdade. Era um lugar vivo. Respirando.
Pessoas caminhavam pelas ruas. Adultos, jovens, alguns idosos. Trajavam roupas comuns, simples, como se saídas de uma vila imperial qualquer. Havia um ou outro com trajes cerimoniais, mantos com pequenos encantamentos bordados, broches com inscrições mágicas, mas nada extravagante. A população era uma mescla sutil e curiosa de criaturas hominídeas: alguns pequenos como Lock, outros altos, de ombros largos e chifres enormes despontando da cabeça, alguns com olhos brilhantes, pele em tons variados. Ainda assim, não havia caos visual, tudo se mantinha dentro de uma lógica estética coesa. Como se todos fizessem parte de uma mesma cultura híbrida, forjada com tempo e convivência.
Lock já havia me dito, certa vez, que parte de seu “reino” vivia dentro dele. E que sua rainha também. Achei que fosse uma metáfora, ou exagero… mas não. Ali estava tudo, diante dos meus olhos, de forma literal.
No centro de tudo, erguia-se o castelo.
Alto, com torres longas e delicadas, tão finas que pareciam tocar o céu esbranquiçado do núcleo. A estrutura brilhava à luz do próprio lugar, cintilando como se fosse feita de vidro ou cristal polido. Uma construção bela, quase etérea, mas ainda assim sólida. Havia algo de encantador nele, mas também algo frágil, como se toda a cidade orbitasse ao redor daquele ponto, sustentando-se por ele.
Mantive minha forma etérea e invisível. Não queria ser notado. Precisava localizar Lock, ou melhor, sua representação astral. Senti a mana interna do núcleo, como um vasto campo de energia sob a superfície do mundo, e comecei a rastrear.
Mas então algo aconteceu.
Um tremor me atingiu como um soco abafado. A cidade abaixo tremeu. Uma rachadura profunda se abriu no calçamento de uma avenida. Tijolos se soltaram das paredes das casas. Vi pessoas se agarrando a portas, a corrimões, buscando abrigo. O ar ficou denso.
Senti, com clareza, uma enorme quantidade de mana sendo sugada, arrancada do núcleo de Lock com brutalidade.
— Por Thalos… — murmurei, o coração acelerado.
A pedra lá fora, o cristal, estava sugando a energia vital dele. E cada vez que isso acontecia, toda essa cidade, essa estrutura interna que provavelmente se mantinha com sua energia, sofria as consequências.
Foi nesse momento que percebi um movimento vindo do castelo.
Um ponto surgia lá de dentro, cortando o céu da cidade em linha reta, vindo direto na minha direção. Rápido, determinado.
Apertei meus olhos: era uma mulher.
Cabelos cor de cobre escapando de um elmo de prata adornado com asas. Uma armadura reluzente, prática. Nas costas, asas translúcidas batiam com velocidade. Empunhava uma espada longa com firmeza, o olhar duro e focado.
Sua expressão era hostil.
— Calma! — falei, levantando as mãos, tentando transmitir que não oferecia ameaça. — Não vim pra lutar.
Ela sequer hesitou.
Gritou algo ininteligível e avançou com a espada.
Criei um escudo de mana, mas sua lâmina atravessou a barreira com facilidade surpreendente. Trinquei os dentes e me joguei para o lado. Ainda assim, senti o fio frio da lâmina riscar meu ombro. Um corte raso, mas dolorido.
— Pare com isso! — gritei, tentando recuar, jogando novos escudos de lado a lado para redirecionar os golpes.
Ela continuava vindo, agressiva, veloz. Os ataques eram constantes. Eu só conseguia evitá-los usando escudos em pontos específicos, desviando o impacto, uma dança precisa, exigindo foco total e raciocínio rápido. Minha mente trabalhava no limite, dobrada em múltiplas direções.
Finalmente, depois de longos segundos, percebi que seus ataques começavam a perder intensidade. O ritmo ainda era forte, mas o padrão começava a se repetir. Tentei de novo.
— Eu não sou seu inimigo! Vim ajudar!
Ela parou por um segundo, o suficiente para lançar um olhar curioso, mas não abaixou a espada.
Gritou novamente, algo ininteligível:
— “Khesdtgmhng!”
Eu entendi de imediato. Ela não me compreendia. A língua era diferente.
Rapidamente, tracei no ar uma runa de tradução. A energia se acendeu entre nós, vibrando.
— Me escute — repeti, firme, mas sem agressividade. — Não vim ferir ninguém. Sou amigo de Lockmead. Entrei aqui pra ajudá-lo.
Ela hesitou. As asas reduziram o ritmo, pairando no ar com menos urgência. A lâmina da espada baixou alguns centímetros. Seus olhos me examinavam com intensidade.
— Ajudar…? — perguntou, num tom que mesclava desconfiança e confusão.
— Sim — insisti. — Lock está em perigo. Há uma força drenando a mana dele. Se continuar, tudo isso aqui… vai ruir. Estou tentando impedi-lo de ser consumido.
Ela me observou com atenção renovada. Seus olhos dançaram de um lado para o outro, como se analisasse cada camada do que eu era — ou do que dizia ser. A dureza da sua expressão suavizou, só um pouco, mas o suficiente para eu perceber.
— Venha comigo. Você precisa falar com minha rainha.
Sem esperar resposta, virou-se no ar e voou, lançando um olhar rápido por cima do ombro, para ver se eu a seguia. Quando viu que sim, assentiu com o queixo e acelerou.
Voamos juntos, cruzando o céu claro do núcleo. Passamos por torres e cúpulas, sobrevoamos praças agitadas e becos vazios. Em poucos minutos, chegamos ao castelo.
Entramos por uma ampla janela arqueada, direto em uma sala que tirou o fôlego.
Era circular, toda feita em pedra branca, lisa como mármore, sem rachaduras ou marcas de cinzel. No centro, sobre uma elevação baixa, erguia-se um trono de cristal, translúcido e belo, parecia esculpido em gelo que não derretia. Tapeçarias vermelhas e douradas adornavam as paredes com símbolos que eu não reconhecia. Vitrais imensos filtravam a luz mágica do lado de fora, espalhando reflexos coloridos pelo chão, como se estivéssemos dentro de um vitral vivo.
No trono, estava sentada a rainha.
Era uma mulher de beleza incomum, de cabelos negros que caíam como seda sobre os ombros. Usava um robe vermelho escuro, bordado com fios metálicos que brilhavam com cada movimento sutil. A postura era altiva, mas havia cansaço nos olhos. Dignidade e desgaste convivendo no mesmo rosto.
Quatro outras mulheres circulavam o trono, todas com armaduras semelhantes à da guerreira que me guiou, espadas embainhadas, atenção máxima. A guarda pessoal da rainha.
De repente, um novo tremor.
A estrutura vibrou levemente, e a rainha levou a mão à cabeça, como se algo a ferisse de dentro. Um dos vitrais explodiu com um estrondo agudo, estilhaços de vidro mágico choveram num dos cantos da sala, ricocheteando sem causar danos, por pouco.
Mais uma parcela da energia de Lock tinha sido arrancada à força.
A cavaleira que me escoltava se adiantou e segurou meu braço.
— Rápido — disse, olhando para o trono. — A rainha está esperando. E o tempo… está se tornando curto demais.
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