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    Com a declaração de Tuathu, o jantar praticamente chegou ao fim. Ninguém tocou no prato principal. Em respeito, ou temor, ao senhor da Caçada Selvagem, os convidados começaram a se levantar em silêncio, um a um, como se uma presença antiga e esquecida tivesse voltado para lembrar a todos de onde vinham. Logo, só restávamos no salão eu, Tuathu, a rainha, Mina e Lock.

    Tuathu se levantou com naturalidade, como se o jantar tivesse sido organizado em sua honra. De perto, percebi que ele era ainda mais imponente. Um palmo mais alto que eu, talvez mais. O porte elegante escondia uma ameaça crua, que parecia latente em cada gesto.

    Ele puxou uma cadeira ao lado da rainha com a mesma delicadeza de quem afasta galhos numa trilha, e se sentou sem cerimônia.

    Mina respirou fundo ao seu lado.
     
    — Como tem passado, pai?

    Ele sorriu com a boca, mas os olhos estavam em outro lugar.

    — Vou bem, minha querida. E você? Como foi ficar presa aqui? Sabia que a Caçada ficou retida nas florestas noturnas por tempo demais? Detestável. Não recomendo.

    Com um movimento displicente, ergueu as botas e as colocou sobre a toalha branca. Seu olhar se voltou para Lock, que permaneceu firme, mas atento.

    — E então, como romperam nosso isolamento? Alguma ideia?

    Lock coçou o queixo, pensativo.

    — Honestamente, não. Estou tão surpreso quanto vossa majestade. Mas posso arriscar algumas teorias…

    — Aposto que todas envolvem nosso visitante, não.

    Tuathu indicou-me com a ponta da bota, como se fosse a coisa mais natural do mundo.

    — Lior, certo? Eu sou Tuathu. Rei da Corte Noturna, líder da Caçada Selvagem. De algum modo, sua chegada criou uma brecha. Consegui atravessar de outro Guardião até aqui — algo que, por todos os cálculos e tradições, deveria ser impossível.

    Ele tirou os pés da mesa com um estalo seco e se inclinou, apoiando os cotovelos na mesa, as mãos entrelaçadas sustentando o queixo.

    — Claro, eu e a Caçada sempre fomos hábeis em magia dimensional. Mas temo que nosso inimigo também o seja… e ele jurou nos perseguir até o fim dos tempos. Lembram-se?

    Lock estremeceu. Um calafrio percorreu seus ombros, como se uma lembrança mal enterrada tivesse vindo à tona. A expressão de Titania se tornou sombria. Mina apertou os lábios, assustada. Ninguém se atreveu a romper o silêncio que pesava sobre a sala.

    Tuathu continuou, impassível.

    — Além disso, esse rompimento pode ter causado um desequilíbrio profundo no nosso autoexílio. Os reinos internos dos Guardiões não foram feitos para isso. Podem ser expulsos dos oceanos de mana… ou simplesmente desaparecer.

    Então ele me encarou, direto, sem rodeios, e sua voz perdeu qualquer traço de ironia:

    — O caminho para o inferno está pavimentado de boas intenções. Foi o que disse alguém mais sábio que eu.

    — Eu só vim aqui para ajudar Lock — respondi, firme. — Me envolvi em algo maior do que eu podia prever. Se eu não fizesse nada, tudo isso já teria colapsado. Não me culpe por tentar salvar o que ainda podia ser salvo.

    — A questão não é culpa — disse Tuathu, balançando levemente a cabeça. — A questão é o custo. Sempre há um. Você pensou nisso? Pensou no preço que poderia vir a pagar?

    Titania se levantou então, quebrando o impasse.

    — Chega. Essa discussão não nos leva a lugar nenhum. Precisamos de respostas. Saber o que realmente aconteceu e se estamos em risco.

    — Concordo — disse Lock, assentindo. Mina também se manifestou com um breve murmúrio de aprovação.

    Tuathu recostou-se na cadeira, não satisfeito, mas disposto a ceder.

    — Se tiverem um lugar silencioso, bem equipado… algum tempo… e a companhia de Lior, posso começar a investigar — disse Lock, direto.

    A rainha fez um sinal com a cabeça.

    — Vou levá-los à biblioteca pessoal. Venham comigo.

    Nos levantamos, prontos para sair. Quando passei por Tuathu, senti o peso do olhar dele em minhas costas. Não precisei olhar para saber: ele me observava. Me analisava. E, de alguma forma, parecia estar sorrindo.

    A biblioteca do Palácio era diferente de tudo que eu já tinha visto. Não havia estantes comuns, nem fileiras monótonas de livros empoeirados. No lugar disso, enormes espirais de madeira viva brotavam diretamente do chão, como se a própria estrutura tivesse sido moldada por uma floresta encantada. Cada espiral se abria em pétalas espessas e firmes, e sobre essas pétalas repousavam livros antigos, pergaminhos enrolados com fitas de prata, cristais pulsantes e até pequenos globos de luz que pareciam cochilar em seu próprio brilho. O teto, em forma de abóbada alta e curvada, era feito de um material translúcido e etéreo, revelando o céu noturno acima com uma clareza absurda, como se não houvesse nada entre nós e as estrelas, como se estivéssemos dentro delas.

    Lock andava de um lado para o outro, os dedos correndo pelas pétalas de madeira como se procurasse algo que não sabia nomear. Murmurava para si, puxando volumes, recolhendo cristais, arrastando instrumentos com pressa contida para uma mesa próxima. Titania, calada e imponente, observava tudo de longe, braços cruzados, mas olhos atentos. Mina lançou-me um olhar breve e cansado antes de se juntar ao trabalho, como quem já previa o que viria. Eu apenas permaneci quieto por um tempo, ainda tentando digerir o que fora dito no jantar.

    — Lior, por favor, vamos fazer esses testes aqui. Sabe manusear esse aparelho?

    — Me mostre.

    Lock se aproximou com rapidez e paciência. Me explicou como operar aquele instrumento, uma engenhoca delicada feita de cobre trançado, pedras condutoras e tiras de papel encantado que registravam os fluxos de energia. Minha função era puxar fios de mana do ambiente e medir sua resistência estrutural ao longo do tempo, como se eu estivesse verificando a integridade de um tecido que começava a se desgastar nas bordas.

    Mergulhei naquele trabalho, deixando que as repetições e a lógica fria das medições me afastassem um pouco do caos interno. Enquanto isso, Lock realizava outros testes, rabiscava diagramas no ar, conjurava projeções. Até Mina acabou encarregada de auxiliar, ajudando com as medições cruzadas. Passamos horas naquela biblioteca viva, cercados pelo brilho suave dos cristais e pelo silêncio dos livros adormecidos.

    Por fim, Lock se deteve. Juntou os papéis, os dados que eu havia coletado, seus próprios registros, e desenhou com cuidado um diagrama feito de linhas de mana flutuantes, que pairavam acima da mesa. Respirou fundo.

    — Não há mais dúvida — disse ele, com uma solenidade que gelou o ar ao redor. Seus olhos estavam fixos nas linhas dançantes do diagrama. — O feitiço que mantém os fragmentos dos reinos dentro dos Guardiões está se rompendo.

    — Desde quando? — perguntou Titania. Sua voz era baixa, mas trazia um peso incontestável.

    — Desde que Lior entrou no meu oceano e liberou sua mana para sustentar o reino — respondeu Lock, sem me encarar. — A intenção foi nobre, e de fato funcionou… mas a liberação de tanta energia externa causou uma fissura na malha arcana que mantém o espaço dimensional coeso. Cada um dos fragmentos restantes do reino feérico está abrigado dentro de um Guardião, e essa estrutura começou a ceder.

    Ele balançou a cabeça, como se ainda estivesse tentando entender a extensão daquilo tudo.

    — Mas a culpa não é só do Lior. Quando a Caçada Selvagem forçou passagem entre os fragmentos de dois Guardiões diferentes, para entrar no Palácio, a rachadura se expandiu. Um desequilíbrio se espalhou entre os reinos. Como uma trinca se espalhando pelo vidro, ou uma fenda que se aprofunda no gelo sob o peso do próximo passo.

    — Mas como isso é possível? — perguntou Titania, os olhos semicerrados.

    — Os fragmentos não foram feitos para interagirem diretamente. As conexões entre eles são frágeis e foram moldadas por magia antiga, quase esquecida. Uma magia profunda, que exigia equilíbrio absoluto. Se um se rompe… os outros seguem. É isso que estamos vendo. Uma reação em cadeia.

    Senti um aperto no peito.

    — Quanto tempo até o colapso? — perguntei, com a boca seca.

    — Não sei ao certo — admitiu Lock. — Mas pelo padrão que detectamos, temos semanas… talvez alguns meses, se tivermos sorte. Depende de inúmeros fatores, a pressão dimensional, o consumo de mana em cada fragmento, a interferência de agentes externos. Mas uma coisa é certa: o fim está se aproximando. Os fragmentos serão ejetados dos oceanos de mana… ou simplesmente desintegrarão.

    Um silêncio denso caiu sobre nós, pesado demais para ser quebrado com palavras simples.

    Foi Titania quem falou, sua voz cortando o ar como um fio de aço.

    — Precisamos encontrar um novo lugar para abrigar os fragmentos. Reunir os Guardiões, reunir o que resta do nosso povo e transferir as partes que conseguimos resgatar do vazio. Um lugar seguro. Um lugar onde possamos recomeçar.

    — Mas onde? — murmurou Mina. — Assim que nos estabilizarmos… o Vazio virá. Talvez até antes disso.

    A resposta surgiu em minha mente como um relâmpago, quase óbvia de tão escondida.

    — Os selos de Mahteal e Malena — falei. — Eles cercavam as ilhas dos humanos, protegendo-as da corrupção. Esses selos impedem o avanço do Vazio. São nosso único escudo real.

    Lock me observou por um instante, avaliando a ideia com olhos cuidadosos.

    — Está certo. Esses selos são antigos, mas ainda ativos. No entanto, só existem em locais sob controle direto do Império. Você sabe o que isso significa.

    — Significa que terei que negociar com Lenora — respondi, sentindo o peso daquelas palavras. — Precisamos de uma extensão de terra. Uma ilha desabitada, se possível. Algo afastado o suficiente para manter o reino feérico longe dos conflitos humanos… mas próximo o bastante para que possamos defendê-lo, se for preciso.

    Titania suspirou, o som ecoando suavemente no salão.

    — E como anda a relação de vocês com as outras raças?

    — Honestamente? — respirei fundo. — Não é das melhores.

    — Mas se não fizermos isso, nossos lares desaparecem — murmurou Mina. — Talvez não tenhamos o luxo de escolher quem gostamos ou não.

    Lock recolheu os papéis com gestos rápidos, sua mente já avançando várias casas no tabuleiro.

    — Precisamos iniciar os preparativos imediatamente. E você, Lior… tem que encontrar uma forma de convencer Lenora antes que tudo colapse.

    Levantei os olhos para o teto translúcido da biblioteca, onde as estrelas brilhavam com uma tranquilidade quase cruel. Imóveis, silenciosas, indiferentes ao que estava prestes a acontecer.

    Mais uma missão impossível. Mais um risco a carregar. Mas não havia alternativa. Eu sabia disso.

    — Vou encontrar um jeito — prometi.

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