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    Retornamos à sala de jantar. Tuathu já nos esperava ali, de pé junto à grande janela aberta, observando o jardim noturno do palácio como se ouvisse segredos no vento.

    Lock resumiu a situação com palavras medidas, mas firmes: os fragmentos do reino das fadas que haviam sido selados dentro do oceano de mana dos Guardiões estavam se deteriorando. Em poucos meses, talvez menos, o tecido que os sustentava iria se romper. Ataques do Vazio ainda eram improváveis, mas possíveis, tudo dependeria de que um dos Guardiões fosse capturado ou corrompido.

    — Então estamos, mais uma vez, nas mãos de Lior? — perguntou Tuathu, com um meio sorriso, quase zombeteiro. — É ele quem vai nos arrumar um pedaço de terra seguro agora?

    — Aparentemente, sim — cortou Titania, antes que o tom da conversa degringolasse.

    Tuathu ergueu as sobrancelhas, como quem não esperava tanta franqueza. Em seguida, se endireitou e ajeitou o manto com um gesto brusco.

    — Bem. Farei minha parte. — Sua voz soou como um tambor abafado. — A Caçada e eu conseguimos nos mover entre os fragmentos desde que o selo principal foi rompido. Tentarei reunir todos os Guardiões num só lugar. Mas quero saber onde.

    — Faça com que venham para Thallanor — respondi, sem hesitar. — A capital ainda é o lugar mais estável que temos. Posso acomodá-los em minha propriedade, pelo menos por um tempo.

    Tuathu apenas assentiu, com o que poderia ser um grunhido, e deixou a sala sem se despedir.

    Olhei para Lock, que cruzava os braços, pensativo.

    — Vamos? Ainda temos uma torre inteira para explorar. E mal começamos nossa “aventura”.

    — E já quase morremos duas vezes — retrucou ele, com aquele sorriso debochado que tentava esconder o cansaço.

    Me despedi rapidamente e desatei o elo da minha representação astral. O retorno foi abrupto. Despertei na biblioteca da torre com uma lufada de ar preso no peito. A luz vermelha que nos banhava antes havia desaparecido.

    Instantes depois, Lock também se mexeu, esfregando as têmporas e resmungando alguma coisa inaudível.

    — Uau — murmurou. — Que viagem foi essa, hein?

    — Quando me disse que tinha um reino dentro de você, não imaginei que fosse literal.

    — Eu avisei. Você é que não prestou atenção.

    Ele tirou um pequeno instrumento circular do bolso interno do casaco e o observou por alguns segundos.

    — Vamos. Perdemos vinte minutos aqui. Se forem espertos, já estão tentando abrir a entrada.

    Deixamos a biblioteca no térreo da torre. Lock foi direto às portas principais. Encostou o ouvido na madeira.

    — Estou ouvindo movimento. Estão forçando a entrada.

    — Subir é nossa única opção então. Não tem mais nada pra ver aqui embaixo.

    Fomos até a porta do primeiro andar. Testei a maçaneta, aplicando um pouco de força. Trancada.

    Lock se adiantou e começou a mexer em seus instrumentos.

    — Deixe-me tentar? — pediu.

    Usou dois ou três apetrechos metálicos que giravam com cliques suaves. Depois retirou de dentro de sí o pequeno espírito verde que haviamos capturado anteriormente. O espectro tremeluzia, hesitante, mas obediente.

    — Hmm… — murmurou ele, franzindo a testa. — A porta não está apenas trancada. Está lacrada. Alguém soldou as duas metades por dentro, com intenção.

    — Droga — exclamei. — Lá se vai meu plano de subir direto pro último andar. Vamos ter que subir pelas escadas auxiliares, andar por andar… e o pior: não lembro onde elas ficam.

    — Como assim lembra? — perguntou. Ele estava ensaiando para fazer essa pergunta desde que começamos explorar.

    — Tenho fragmentos das lembranças de uma outra pessoa que já esteve aqui. É… complicado — expliquei, não dando muito peso às minhas próprias palavras.

    Lock me lançou um olhar carregado de perguntas não ditas. Ele não comentou nada, mas o silêncio dele disse o suficiente. Ele sabia, ou suspeitava, que havia mais em mim do que eu deixava transparecer.

    — Vamos procurar essas escadas, então — disse ele, cortando o clima antes que se tornasse denso demais.

    Levamos um bom tempo até encontrar a entrada lateral escondida, meio encoberta por estantes tombadas e poeira acumulada. As escadas auxiliares eram estreitas, espiraladas, com degraus irregulares de pedra.

    Subimos.

    Eu tentava, em vão, puxar das memórias de Mahteal alguma imagem clara do próximo andar, mas era como tentar lembrar um sonho ao acordar, as bordas se desfaziam assim que eu me aproximava.

    Abrimos a porta seguinte.

    Do outro lado, havia um corredor de pedra acinzentada, que parecia se estender infinitamente, como se não tivesse fim nem começo. O chão, as paredes e até o teto estavam repletos de espelhos. Centenas. Talvez milhares.

    — Espelhos… — murmurei, com um calafrio percorrendo minha espinha.

    — São para experimentos dimensionais — respondeu Lock, num tom que traía mais receio do que ele gostaria de admitir.

    Ele vasculhou sua mochila e tirou dois anéis metálicos, gravados com runas antigas.

    — Coloque isso. Vai nos manter ancorados nesta realidade. Não sei o que pode atravessar para cá, mas ao menos não nos perdemos no processo.

    Infundi meu mana no anel. A sensação foi imediata, uma firmeza estranha tomou conta do meu corpo. Como se o chão tivesse se tornado mais real do que antes. Como se eu estivesse mais sólido que o mundo ao redor.

    — Só espero que as runas aqui estejam mesmo desativadas… — sussurrou Lock, olhando em volta.

    — Vamos — disse, respirando fundo. Não era o momento de hesitar.

    À medida que avançávamos, a mana no ar mudou. De sutil, tornou-se densa e tensa, como se estivéssemos andando através de uma película elástica.

    Runas começaram a surgir nos espelhos, brilhando em tons violáceos e verdes. Não eram runas que Mahteal conhecia. Não eram parte do que qualquer um de nós estudara.

    Olhei ao redor. As superfícies refletiam não apenas nossos corpos, mas paisagens diferentes. Uma era pura escuridão. Outra mostrava uma ravina sob um céu límpido. Uma terceira, um deserto abrasador. E outra, uma névoa espessa e inquieta.

    Me detive diante da última. Algo dentro dela parecia se mover.

    — Não se perca, Lior! — gritou Lock atrás de mim. — Não pare. Não olhe demais.

    A voz dele me trouxe de volta. Percebi que ele evitava fixar os olhos em qualquer reflexo por mais de um segundo. O anel em meu dedo queimava com leveza, puxando-me de volta à realidade.

    — Temos que sair daqui. Temos que atravessar. É perigoso demais. Essas coisas… elas puxam. Podemos invocar algo, sei lá de onde. E não vamos conseguir mandar de volta.

    Avancei. Cada passo entre os espelhos era como cruzar um limiar invisível. E algo, lá no fundo da névoa, ainda me chamava pelo meu nome.

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