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    O corredor parecia se estender mais a cada passo. Os reflexos nos espelhos deixavam de seguir nossos movimentos. Em algum ponto, impossível dizer qual, os espelhos começaram a nos ignorar. Refletiam versões de nós mesmos que andavam fora de sincronia, gesticulavam para o vazio ou simplesmente… nos observavam.

    Percebi que os passos de Lock não chegavam mais aos meus ouvidos.

    — Lock… — murmurei.

    Me virei depressa, mas ele já não estava atrás de mim.

    O corredor estava vazio. Apenas espelhos, ecos e a lembrança de seus passos. Nenhum som, nenhuma presença.

    — Lock?!

    A voz reverberou de modo estranho. Trêmula. Como se os espelhos a mastigassem antes de devolver.

    O silêncio que se seguiu foi mais sufocante do que qualquer resposta.

    E então ouvi uma voz feminina.

    Meu nome.

    Sussurrado como um vento quente no ouvido, íntimo e invasivo.

    — Lior…

    Travei os pés no chão. Meu corpo resistia, mas alguma parte de mim queria seguir o som. Parecia a voz de Selune.

    Um brilho se moveu à esquerda.

    Um espelho se escureceu, como se algo emergisse da superfície líquida. Vi, com os olhos arregalados, uma pequena silhueta sair dele.

    Baixa, desengonçada, com membros longos e finos. O rosto… era o de Lock. Mas distorcido. O sorriso era grande demais. Os olhos, fundos como buracos. Sua pele parecia feita de vidro embaçado, rachada em alguns pontos.

    — Oi, Lior — disse ele, com uma voz infantilizada e distorcida. — Você não me escutou antes. Eu chamei.

    — Você… não é ele — respondi, tentando manter a voz firme.

    — Sou o que sobrou dele, talvez. Ou o que ele deixou para trás.

    A criatura riu, e a risada se multiplicou nos espelhos ao redor, como um coral de pesadelos.

    Do outro lado do corredor, outro espelho se ondulou. A superfície se partiu como fumaça soprada, e uma nova figura atravessou o véu.

    Era alta. Feminina. Seu corpo era feito de pura névoa, densa e cintilante, e sua forma lembrava, com perfeição cruel, a de Selune. Grávida. Majestosa. O ventre cheio de escuridão.

    Mas os olhos eram poços de vazio. Não havia amor ali. Só fome.

    Quem eu julgava ser o Lock verdadeiro veio de outro corredor, cambaleando, os olhos perdidos.

    — Lior…? — murmurou ele. — Eu… eu achei que tinha ouvido meu pai. Precisava do perdão dele Lior.

    — Não era ele Lock! — gritei, correndo até ele.

    A criatura de névoa ergueu os braços lentamente. Quando os abriu, uma onda fantasmagórica avançou como algo vivo. Lock tropeçou e caiu ao chão, o anel dele brilhando com força para mantê-lo preso à realidade. Senti o meu queimar meu dedo.

    A falsa Selune se virou para mim. A voz dela era uma mistura de vozes, Selune, Nix, minha mãe, todas falando ao mesmo tempo.

    — Você pode ter tudo de volta, Lior. Todos eles. Basta dizer sim, deixe-me levar você.

    Minha garganta fechou. Por um instante, quis acreditar. Mas então a cópia distorcida de Lock chiou e avançou em quatro patas, os olhos brilhando com ódio.

    Reagi por instinto.

    Minha mão se ergueu, e uma esfera de mana pura irrompeu dela. O impacto acertou a criatura menor, lançando-a contra um espelho. O vidro rachou, mas não se quebrou. O reflexo dentro do espelho apenas riu e saiu dele, ameacadoramente.

    A falsa Selune avançou logo em seguida, o ventre pulsando como se algo lá dentro se mexesse.

    Ela lançou uma corrente de escuridão que serpenteava no ar como cobras famintas. Ativei o anel com mais mana, sentindo meu corpo quase se fundir à realidade local. Os tentáculos de névoa colidiram comigo, mas foram repelidos por um escudo de última hora.

    Lock, ainda no chão, tirou um pequeno centro de sua bolsa. Um raio de eletricidade azul rasgou o ar, atingindo a criatura diretamente no peito. Ela soltou um grito agudo, de mil vozes ao mesmo tempo, e recuou.

    — Me ajuda a ficar de pé! — gritou ele.

    Corri até ele, puxando-o pelo braço.

    — Eu vi meu pai. Ele me chamou — disse Lock, ofegante. — Ele disse que me perdoava.

    — Isso não é verdade. Essa coisa se alimenta de lembranças quebradas.

    A criatura distorcida de Lock se ergueu outra vez, agora com o rosto ainda mais deformado, seu rosto rachado como um espelho quebrado. Tentei invocar uma lança de mana, mas os espelhos começaram a vibrar. A criatura entrou num deles e surgiu atrás de mim num piscar de olhos.

    Lock reagiu primeiro. Ativou uma runa em seu casaco e um campo de força empurrou a criatura com violência contra a parede.

    — Temos que quebrar os espelhos — gritei. — Estão alimentando elas. São como portais.

    — Se quebrar podemos abrir caminho pra mais coisa sair — respondeu ele, os olhos arregalados.

    — Então temos que selar.

    Me concentrei e usando a magia imbuída no anel que recebi, a expandi para todos corredores. Runas desconhecidas giravam ao nosso redor, um circulo de luz tênue que pulsava no mesmo ritmo que nossos corações acelerados. Eu completei o círculo, traçando linhas de mana no chão, mais por instinto que com conhecimento,  unindo os pontos de energia invisíveis que corriam como veias por toda a torre.

    As criaturas gritavam, seguras no lugar por algo invisível. As imagens nos espelhos me amaldiçoavam.

    — Está pronto? — perguntei, o suor escorrendo pela têmpora.

    Lock assentiu.

    — Vamos selar, antes que mais coisas  acordem.

    Coloquei as mãos no chão. As runas responderam com um clarão repentino, como se a própria torre despertasse brevemente para testemunhar. O corredor tremeu.

    Os espelhos se entregaram num grito de desespero.

    Não com som, mas com imagens. Eles se torciam em dor, cada superfície refletindo nossos medos: eu via o mar de estrelas se apagando, o rosto de Pandora coberto de sangue, Claire me olhando sem reconhecer quem eu era. Lock tremia ao meu lado, vendo seus próprios fantasmas. no espelho à sua frente, Selune chorava, segurando o ventre redondo, enquanto uma névoa escura a engolia.

    — Fecha! — ele gritou. — AGORA!

    Canalizamos o último traço de mana no centro do círculo. As runas se sobrepuseram, se fundiram, e então…

    Explodiram em luz.

    Os espelhos, um por um, estouraram em uma sequência quase ritmada, como vidro sob pressão. Cada estilhaço se desfez antes de tocar o chão, sumindo no ar como cinzas levadas pelo vento.

    Quando o último caiu, o silêncio foi absoluto.

    Lock tombou de joelhos. Sua respiração era pesada, os olhos fixos no chão. Eu me aproximei, colocando uma mão em seu ombro.

    — Acabou.

    — Não — respondeu ele, baixo. — Ainda não.

    Ele ergueu o rosto para mim. Nunca o vi tão devastado.

    Lock fechou os olhos. Por um momento achei que ia chorar, mas ele apenas respirou fundo e assentiu.

    Nos levantamos juntos. O corredor agora parecia menor. Silencioso. Quase comum.

    Mas nós não éramos mais os mesmos que entraram ali.

    — Próximo andar? — perguntei.

    — É pra isso que estamos aqui — respondeu ele, a voz mais firme, mesmo trincada por dentro.

    Seguimos em frente. Os fragmentos da névoa, dos reflexos e das vozes ainda ecoavam em algum lugar atrás de nós, mas a luz das runas ainda cintilavam nas paredes, um lembrete de que, pelo menos por enquanto, os horrores dos espelhos estavam presos.

    Talvez não derrotados.

    Mas contidos.
     
    E a torre… nos esperava.

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