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    — Teleporte? — murmurei, com a testa franzida.

    Fazia sentido. Um sentido desconfortável, mas lógico. A sensação de estar andando em círculos não era imaginação, era fato. Estávamos presos em algum tipo de laço espacial, um truque antigo, mas refinado, feito para cansar a mente antes de quebrar a vontade.

    — Temos que encontrar as runas ocultas — disse Lock, se abaixando para analisar o chão de pedra polida. — Elas manipulam a ordem de teleporte. Só quebrando ou reordenando isso conseguimos sair do loop.

    Assenti, ainda absorvendo o peso da constatação. Mas uma dúvida me corroía. Nas memórias de Mahteal, magia dimensional era território obscuro, um campo experimental, perigoso e cheio de lacunas. Nada era claro, nem mesmo as teorias. Era estranho que aquela torre tivesse domínio tão firme sobre algo que nem os grandes conheciam bem. Comecei a suspeitar: e se as memórias de Mahteal tivessem sido alteradas? E por quem?  E porque?

    — Infelizmente, com magia dimensional não posso te ajudar, amigo — falei, mais frustrado do que queria demonstrar.

    — Sem problema — respondeu Lock, já vasculhando a bolsa com um leve sorriso no canto dos lábios. — Você me ajuda montando guarda. E usando sua sensibilidade apurada. Toma isso.

    Ele me entregou um pequeno objeto metálico, retangular, com um encaixe no centro que pulsava levemente.

    — Coloque sua mana aí. Vai te ajudar a sentir as variações dimensionais com mais clareza. Não é perfeito, mas quebra o galho.

    Fiz o que ele pediu. Assim que minha mana entrou no artefato, a sala ao nosso redor pareceu respirar. Um calor discreto correu pelo chão sob meus pés. As linhas de mana invisíveis se revelaram como veios subterrâneos sob a pedra, interligando runas dispersas que se estendiam para além das paredes. O cruzamento onde estávamos era uma armadilha: quatro passagens, todas cobertas por uma fina película dimensional, quase imperceptível, como a superfície de um espelho coberto de poeira.

    Expliquei a Lock o que via, e ele desenhou uma runa no chão com um giz, os traços firmes e fluídos.

    — Procure uma que seja igual ou parecida com essa. Ela deve ser o nó central do feitiço.

    Comecei a procurar. Meus olhos acompanhavam o fluxo de mana com cuidado, como se seguisse fios invisíveis esticados no escuro. Depois de alguns minutos, encontrei uma runa invisivel, semelhante, gravada no chão entre duas pedras maiores. Não era idêntica, os ângulos variavam um pouco, mas o padrão central era o mesmo. A função, provavelmente, também.

    — Achei.

    — Certo… dá um espaço — disse ele, tirando mais alguns instrumentos da bolsa. Um deles era um par de óculos com lentes grossas e esverdeadas, que ele encaixou no rosto com cuidado. Percebendo meu olhar, comentou:

    — Enxergam runas invisíveis. Mas só por pouco tempo. A carga não dura muito.

    Espalhou outros artefatos ao redor da runa e começou a trabalhar. As mãos ágeis faziam pequenas marcações no ar, enquanto finas lascas de mana começavam a saltar das linhas encantadas. Havia algo delicado na forma como ele lidava com aquela magia, como um artesão costurando seda sob risco de rasgá-la.

    Os minutos passaram. Senti a mana do ambiente subir. Não como uma explosão, mas como a tensão de um elástico prestes a estourar.

    — Droga… — murmurou ele.

    E então fomos puxados. A sensação foi como cair dentro de um funil estreito, o corpo comprimido e a mente rodando. Quando meus pés tocaram o chão de novo, o ar estava mais denso.

    Estávamos numa sala retangular, ampla, com o teto abobadado. No centro, erguia-se uma estrutura de pedra maciça, uma construção sólida, com uma porta dupla de quase três metros de altura, adornada por entalhes antigos que não reconheci de imediato.

    Olhei ao redor. Sem janelas. Nenhuma outra saída. Estávamos presos.

    Então o chão tremeu, de leve. A porta se abriu num estalo seco e grave, como se alguém estivesse empurrando pedra contra pedra depois de milênios de silêncio.

    Dela saiu uma criatura.

    Parecia um leopardo, mas feito de pura sombra. O corpo alongado e fluido, como se estivesse em constante desfazimento, e mesmo assim sólido o suficiente para fazer ecoar passos sobre a pedra. Os olhos eram duas brasas fundas. A boca, quando rosnou, parecia abrir direto para o vazio.

    Instintivamente, circulei minha mana. Lock também se levantou com dificuldade, ainda segurando um dos instrumentos meio danificados do teleporte.

    — Devo ter esbarrado em alguma proteção — disse ele, com a cara mais deslavada do mundo.

    — Tô vendo — respondi seco, já em posição de combate. — E agora a gente tem companhia.

    O leopardo abaixou o corpo, pronto para saltar. A sombra sob ele se espalhava como tinta viva, se estendendo pelo chão como se quisesse nos engolir antes mesmo do ataque começar.

    O leopardo avançou.

    Rápido demais.

    Mal tive tempo de firmar os pés no chão antes que ele já estivesse sobre mim. Rolei para o lado por instinto, sentindo o bafo frio da criatura roçar minha pele. Suas garras tocaram o chão com força suficiente para trincar a pedra.

    Levantei a mão, puxando mana direto do meu núcleo. Rápido. Preciso. O feitiço nasceu da urgência: uma lâmina de pura energia condensada se formou entre meus dedos, longa e ligeiramente curva, como as espadas do sul. Sua superfície vibrava em tons de azul e dourado. Era uma arma feita para aquele momento, e só para ele.

    — Eu seguro ele! — gritei para Lock, que já havia se encolhido atrás de um dos pilares próximos, com os instrumentos espalhados ao redor. — Continue o que estava fazendo!

    — Fácil pra você falar! — respondeu, tirando os óculos verdes do rosto e tentando ajustar algo em uma das placas metálicas. — Esse bicho vai nos matar antes que eu entenda como essa maldita runa se conecta!

    O leopardo das sombras girou o corpo com uma agilidade animalesca. Suas patas deixavam rastros escuros por onde passavam, como se a própria luz se recusasse a tocá-lo. Mas seus golpes… eram reais. Não ilusões. Força pura. Massa e músculo ocultos na névoa negra que o envolvia.

    Ele veio outra vez. E dessa vez, ataquei primeiro.

    A espada de mana colidiu com seu flanco. Um impacto firme. A criatura uivou, um som estranho, abafado, como se saísse de dentro de um poço, e recuou. Sua carne tremulava como fumaça ao redor da ferida, mas se reconstituía lentamente. A lâmina havia cortado… mas não o suficiente.

    — Ele sangra! — avisei, recuando alguns passos. — Mas se move como se não sentisse!

    O leopardo respondeu com um salto, tentando me derrubar com o peso do corpo. Me joguei para trás e canalizei mana nos pés, deslizando para longe com um impulso mágico. A criatura caiu onde eu estivera segundos antes, rachando o chão em pedaços.

    A lâmina em minha mão começou a vibrar de novo. Alimentei-a com mais mana, tornando o corte mais afiado, mais veloz. Circulei a mana pelo corpo, braços e punhos e ataquei em um arco cruzado. As sombras se partiram no ar. Um dos olhos da criatura se apagou como uma vela ao vento.

    Mas ela não fugiu.

    Avançou outra vez, desesperada, como se estivesse sendo empurrada por algo maior. Seus movimentos já não eram tão fluidos. Estava ferida. Mas ainda assim perigosa.

    Lock murmurava atrás de mim, absorto em seus instrumentos. Círculos mágicos começavam a se formar ao redor de uma runa. Um padrão aos poucos se revelava, em tons esverdeados.

    Aproveitei uma abertura e avancei. Três cortes rápidos. Um na perna dianteira, outro no dorso e o último no flanco oposto. O terceiro fez a criatura tombar de lado, respirando com dificuldade. As sombras se desfaziam, deixando ver a pele escura e ferida por baixo. Deu um último suspiro antes de se transformar em pó.

    Silêncio.

    A porta à frente, por onde a criatura havia saído, continuava fechada. Fiquei ali parado por um momento, ainda com a espada erguida. O suor escorria pela têmpora.

    — Isso foi mais tranquilo do que pensei — disse Lock, finalmente se erguendo. — Achei que morreríamos no segundo ataque.

    — Ainda pode acontecer — murmurei, virando para ele.

    E então ouvimos o estalo.

    A porta se abriu novamente. Lenta. Deliberada.

    O interior da construção estava mergulhado na escuridão mais espessa que já vi. Não havia mana ali. Nenhuma luz. Nada.

    Um segundo inimigo cruzou o limiar. Mais alto. Ombros largos. Um corpo encoberto por um manto feito de sombras densas, com braços longos demais para serem humanos. Seus passos faziam o chão estremecer de leve, e cada movimento era acompanhado por um som seco, como ossos sendo puxados por dentro da carne.

    — Ah, não… — murmurou Lock, dando um passo para trás.

    — Fica atrás de mim. — Minha voz saiu mais firme do que esperava. A espada de mana ainda tremeluzia na minha mão.

    O segundo inimigo se aproximava. E com ele, o pressentimento claro: estávamos presos ali. E cada criatura que saía daquela sala seria mais forte que a anterior.

    A torre queria nos testar. E não ia parar até nos ver cair.
     

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