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    Estávamos de volta à torre.

    Se a minha lembrança estava correta, e agora eu já começava a duvidar disso, aquele era o laboratório de mana do sétimo andar. O lugar parecia abandonado há séculos. Os instrumentos mágicos estavam espalhados por bancadas e mesas de pedra, como se os usuários tivessem sido interrompidos no meio de uma pesquisa importante e nunca mais voltado.

    Respirei fundo. Havia algo pesado no ar. Mana estagnada, talvez. Ou só a impressão de estar pisando num lugar que não confiava mais.

    — Isso que eu tava falando — resmungou Lock, caminhando entre as bancadas animado com o tesouro espalhado ali.

    — Cuidado com o que você vai mexer — avisei, dando um passo para trás ao vê-lo esticar a mão para um artefato com runas que brilhavam fracas. — Já tive surpresas demais por hoje, se é que me entende.

    — Pode deixar… tô só olhando — respondeu, embora já estivesse guardando meia dúzia de bugigangas suspeitas na bolsa.

    Enquanto ele fuçava, eu fui atraído por uma estante encostada no canto. Os livros estavam cobertos por uma camada fina de poeira, mas alguns deles pareciam ter sido consultados recentemente. Páginas marcadas, anotações nas margens.

    Puxei um volume grosso, encadernado em couro de tom esverdeado. “Metamagia da Fronteira”. As primeiras páginas já falavam de teorias avançadas sobre o comportamento da mana quando exposta a ambientes instáveis. Havia diagramas complexos que não pertenciam à magia do Império, e isso me chamou atenção.

    Folheei outro tomo, e mais outro. Dois deles descreviam sistemas inteiros de magia que vinham de outras dimensões, com leis e estruturas completamente diferentes das que conhecíamos. Aquilo não era de conhecimento de Mahteal. Mas aparentemente era do de Malena, uma outra surpresa.

    Separei os mais relevantes e os guardei com cuidado no cubo dimensional que Lock havia me dado. Pensava em como a gente se acostuma rápido com coisas úteis.

    Quando ele terminou sua busca, saímos do laboratório. Em frente à porta, uma visão inesperada nos esperava: a escadaria principal estava aberta.

    — Podemos subir direto para o laboratório de Malena — murmurei, surpreso. — Finalmente uma boa notícia.

    Não escondi o alívio. Minha paciência com armadilhas e desvios havia se esgotado. Lock parecia pensar o mesmo. Ele apenas assentiu, e seguimos em silêncio.

    A escadaria era larga, com degraus profundos e corrimões esculpidos em pedra negra. A cada andar que deixávamos para trás, a pressão no ar aumentava. A torre parecia viva, observando. Nos testando.

    Chegamos ao topo. Uma porta dupla, ornamentada com detalhes em prata e cristal de mana, marcava o último pavimento. Era imponente. Solene. Mas as defesas mágicas estavam desativadas, e o que era pior, a porta havia sido arrombada.

    Alguém chegara ali antes de nós.

    — Isso é recente? — perguntei, mais pra mim mesmo do que pra Lock.

    — Difícil dizer — respondeu ele, examinando as marcas com o dedo. — Pode ser coisa antiga. Ou não.

    Empurrei as portas com cautela. Do outro lado, o corredor se dividia em duas alas: os aposentos de Malena à esquerda e o laboratório dela à direita.

    Lock nem pensou duas vezes. Correu direto para o laboratório, movido pela curiosidade quase infantil que ele tinha por tudo que envolvia magia avançada.

    Eu hesitei.

    Um peso estranho cresceu no meu peito. Meus passos vacilaram. Minha respiração ficou curta. Aquilo não era medo, era… outra coisa. Uma ansiedade profunda, emocional, enraizada em lembranças que não eram minhas. Mahteal. Era ele.

    Pela primeira vez, estava tão próximo dela.

    Fui até os aposentos de Malena como quem atravessa um sonho. A porta estava entreaberta. Empurrei-a devagar. O quarto era amplo, com móveis finamente talhados, cortinas de tecido leve e minha imaginação me fazia sentir um perfume quase imperceptível no ar… doce, floral, carregado de saudade.

    Por um instante, jurei que podia senti-la ali. Sua presença pairava como uma sombra quente. Me peguei tocando a borda de um espelho antigo, e quando olhei meu reflexo, vi tristeza nos meus próprios olhos, mas não era minha.

    As lembranças vieram em ondas. Imagens vagas, toques, vozes. Emoções. Não consegui distinguir o que era real e o que era memória herdada. Mas algo ali mexia comigo de um jeito que nenhuma armadilha, nenhum monstro da torre tinha conseguido.

    Os aposentos estavam quase vazios. Muitos dos pertences de Malena haviam sido levados. Talvez por ela mesma, durante a invasão. Ou por alguém que chegou depois. Era impossível saber.

    Com um último olhar para o quarto, respirei fundo e deixei as lembranças para trás.

    Fui atrás de Lock no laboratório.

    Eu ainda tremia por dentro.

    Mas não podia me perder agora.

    O laboratório estava um caos. Havia frascos quebrados no chão, anotações espalhadas por mesas e prateleiras viradas. A bagunça, no entanto, não era culpa de Lock — pelo menos dessa vez. Ele estava num dos cantos, concentrado num console antigo, uma estrutura arcana alimentada por cristais de mana e fios encantados.

    — Lior, venha aqui. Olha o que achei — chamou, sem nem virar o rosto, com a voz animada de quem havia acabado de descobrir um tesouro escondido.

    Aproximei-me, contornando pedaços de vidro e o que parecia ser o cadáver mumificado de um rato mágico, e vi o que ele mexia: um baú de compartimentos, cheio de cristais lapidados com runas complexas. Brilhavam em tons distintos, pulsando suavemente.

    — O que foi? — perguntei, já com a expectativa se acumulando dentro do peito.

    — Cristais de memória — respondeu, com um brilho nos olhos que só os estudiosos malucos têm quando encontram algo mais velho que o próprio Império. — Podemos saber o que aconteceu aqui. Toda a rotina, os registros, até o que eles viram nos últimos dias. Isso aqui é o diário da torre.

    Minha atenção se aguçou. Finalmente, uma chance de entender não só o que tinha acontecido ali, mas talvez de saber o que Malena realmente fazia. Quem ela era. O que restava dela.

    Lock retirava os cristais um por um e os organizava no chão diante do console, murmurando para si mesmo enquanto os examinava.

    — O que está fazendo agora? — perguntei, observando-o separar os itens em pequenos grupos.

    — Separando por tema — explicou, como se fosse óbvio. — Esses aqui têm registros administrativos da torre, tipo diários de rotina. Aqueles outros são lições, aulas de magia, talvez pra aprendizes. Esses dois aqui falam da invasão — apontou para cristais de um tom vermelho mais profundo. — E esses últimos… falam de um tal de Mahteal.

    Engoli em seco. O nome caiu sobre mim como um balde de água gelada. Até então, tudo o que eu sabia de Malena vinha das memórias distorcidas e fragmentadas de Mahteal. Mas agora… agora havia registros diretos. Palavras dela. Visões dela. E, aparentemente, sobre ele.

    — Como consegue identificar o conteúdo? — perguntei, tentando manter a voz firme.

    — Quando coloco o cristal no console, aparece uma projeção com um título, um resumo do que foi gravado. Muito organizada essa Malena — disse, admirado. — Dá pra ver que ela tinha planos de longo prazo.

    Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, Lock já estava encaixando um dos cristais na entrada do console. Claro. Pedir permissão seria um luxo raro vindo dele.

    As luzes ao nosso redor se apagaram num estalo súbito, e a mana ambiente mudou de temperatura. Senti a pele arrepiar. No centro do laboratório, uma esfera de luz começou a brilhar, flutuando sobre nossas cabeças. Suave, translúcida, e ao mesmo tempo viva.

    Então as imagens começaram a tomar forma.

    Primeiro, formas difusas, como memórias embaralhadas surgindo à tona. Depois, rostos, vozes. O espaço ao nosso redor se transformava. O laboratório parecia se reconstituir diante de nós, limpo, vivo, cheio de movimento e de ecos de um passado ainda pulsante.

    O passado de Malena. E o meu, ou melhor, de Mahteal.

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