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    As imagens se materializavam sobre nossas cabeças com uma nitidez que desafiava qualquer explicação lógica. Não havia magia imperial que reproduzisse aquilo. Eu não fazia ideia de como tinham sido gravadas, era mais um dos inúmeros mistérios que Mahteal desconhecia completamente.

    A projeção nos mostrava os Necros surgindo da névoa, marchando em direção à torre. A cena parecia flutuar acima de nós como um espelho suspenso no tempo. Não havia sons, apenas o silêncio opressor das imagens projetadas. E, mesmo sem som, era possível sentir a tensão. A aproximação deles era lenta, deliberada, como predadores cercando uma presa.

    A ravina que circundava a torre agia como uma muralha natural, e a única passagem era a ponte de pedra, um ponto de acesso tão simbólico quanto estratégico. O tempo parecia correr depressa na gravação. Vimos dois grupos distintos saírem da torre, emissários tentando diálogo. Ambos foram ignorados ou rejeitados. A resposta dos necros era silêncio e presença. Uma ameaça em estado puro.

    E então, os ataques começaram.

    Ondas sucessivas de magia negra colidiram contra as defesas da torre, corroendo os escudos com precisão. Como marés escuras batendo contra rochas antigas. As camadas mágicas que protegiam a torre resistiram por um tempo, mas aos poucos, uma a uma, elas se desfizeram. Quando a última barreira cedeu e o portão principal ruiu, as tropas invadiram.

    A perspectiva da gravação era aérea, como se vinda de uma janela da própria torre. Uma visão estática, mas abrangente. Era impressionante ver as palavras do diário que havíamos lido ganhando corpo e movimento. Como se as memórias do lugar tivessem despertado.

    Assim que os primeiros necros entraram, a gravação cessou abruptamente. Lock, impaciente, trocou o cristal. O novo registro piscou com uma luz opaca antes de revelar outra cena, desta vez, dentro da própria torre. A data no canto do visor indicava que aquilo ocorrera dias antes da invasão.

    A movimentação era intensa. Professores e aprendizes corriam de um lado para o outro, organizando os andares inferiores, selando passagens, transformando corredores em linhas defensivas e salas comuns em abrigos improvisados.

    E então, a invasão. Rápida. Precisa.

    Os necros não agiram com a selvageria que eu esperava. Não houve carnificina gratuita. Pelo contrário, pareciam contidos, metódicos. As mortes, poucas, ocorreram apenas entre aqueles que tentaram resistir. A maioria dos magos foi capturada, contida.

    Mas algo mudou.

    Dois dias depois, sem provocação aparente, os necros explodiram em fúria. Eles destruíram os laboratórios. Executaram os magos sobreviventes sem cerimônia. Mesmo os feridos, mesmo os que haviam se rendido. Os corpos foram recolhidos e levados. Como se cada cadáver ainda tivesse algum valor. O motivo para a fúria era um mistério.

    — Brutal — murmurou Lock, o rosto sério pela primeira vez em horas. — Por que fizeram isso?

    — Algo os deixou com raiva — respondi. A imagem daquele sonho vago que eu tivera antes. — Eu… acho que sei o que pode ter sido.

    — Hum… Eles pedem pra colocar o primeiro cristal de Mahteal — disse Lock, já pegando a peça seguinte.

    Antes que eu pudesse pedir cautela, ele já encaixava o cristal no console. E, para ser honesto, eu estava tão curioso quanto ele.

    As imagens voltaram.

    Mas dessa vez, tudo era diferente.

    Não apenas víamos, agora também ouvíamos.

    A transição foi gradual. Primeiro, uma lousa apareceu na tela, com uma data escrita à mão, com tinta escura. A data era de quase um ano antes da invasão, se as anotações do diário estivessem corretas.

    A gravação não era mais uma visão aérea. Era pessoal. Humana. Como se estivéssemos dentro da memória de alguém, presenciando os eventos em primeira pessoa.

    Uma mulher ruiva surgiu em cena. Belíssima, com um grande chapéu negro de feiticeira. Era Malena. A imagem dela me atingiu como um soco no estômago. Não era uma idealização. Era ela, viva, real. E ao seu lado, quase desabando nos próprios passos, vinha Mahteal.

    Mas aquele não era o Mahteal que eu conhecia.

    Ele estava magro, ossudo, os olhos afundados em olheiras profundas. O rosto desfigurado pela exaustão e pela dor. Tinha a aparência de alguém à beira da morte ou da loucura.

    — Me ajude — murmurou ele, quase inaudível.

    — Calma, querido — respondeu Malena, com uma gentileza que não parecia encenação. A mão dela se apoiou em seu ombro com cuidado. — Você não entende, ele pode voltar a qualquer momento. A lucidez é um momento raro pra mim…

    — Eu sei, querido. Não se preocupe. Já coloquei um inibidor em você. Ele não vai conseguir aparecer — disse, com a voz firme, quase maternal. — Pelo menos não tão rápido. Agora, deixe-me cuidar de você.

    Um assistente fora de cena trouxe uma cuia de sopa. Mahteal agarrou com as duas mãos e comeu como um animal faminto. Em seguida, deram-lhe água. Ele bebeu com a mesma pressa. Estava claramente desesperado.

    — Eu precisava vir, Malena. Precisava avisar vocês de tudo que descobri. Eu sei quem é o nosso inimigo. Ele vive dentro de mim. Parte dele, pelo menos…

    — Não se preocupe com isso agora, meu querido.

    Malena segurou o rosto dele com as duas mãos, como se ele fosse feito de vidro.

    — Vamos cuidar de você primeiro.

    Em seguida, entregaram a ele um preparado azulado. Mahteal bebeu. Seus olhos viraram para cima e ele caiu inconsciente.

    Malena se virou para a gravação. Sua expressão era séria, mas sem frieza. Havia compaixão ali. E também medo.

    — Mahteal apareceu à porta da torre, ferido, delirante. A contaminação pelo miasma atingiu níveis alarmantes. Sempre fomos parceiros na luta contra a névoa. Ele seguiu caminhos que eu jamais aprovaria, contra meus conselhos. E eu segui os meus. Mas mesmo assim, nossa luta sempre foi a mesma.

    Ela respirou fundo.

    — Vou tentar estabilizar sua mente. Descobrir o que ele sabe. Se ele se arriscou tanto para chegar até aqui, então o que carrega deve ser importante. Muito importante. A partir de hoje, manterei um diário de nossas conversas.

    — Uau — exclamou Lock, com os olhos grudados na esfera. — Isso vale ouro, Lior. Eles enfrentavam o nosso inimigo… juntos.

    Mas eu não consegui responder. Ver Malena ali, viva, falando com Mahteal… ver o estado dele… era demais.

    Uma dor surda se espalhava pelo meu peito. Algo em mim se contorcia, querendo gritar. Queria atravessar aquela gravação. Agarrar Mahteal, impedir sua queda. Abraçar Malena. Avisá-los. Ou talvez só chorar, porque tudo aquilo… já tinha passado. E algo dentro de mim dizia que o pior ainda estava por vir. Que algo ali estava seriamente errado.

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