Capítulo 183: Claire entre nós
Nix levantou a cabeça devagar, os cabelos bagunçados caindo pelo rosto, e olhou diretamente para Claire, que ainda a mantinha em um abraço sereno.
— Você venceu, é claro… — disse a raposinha com um sorriso largo. — Deu uma surra tão grande que eu garanto, com toda certeza, que ninguém vai querer te desafiar de novo. Nunca mais — riu, e sua risada trouxe uma leveza que iluminou o ambiente.
— Foi uma luta e tanto — completei, me aproximando um pouco mais da cama. — Intensa. Difícil. Mas você venceu.
Claire pareceu absorver aquelas palavras com um misto de alívio e confusão. Passou os olhos pelo quarto, como se estivesse tentando puxar da memória os fios soltos de tudo o que aconteceu. Sua expressão se tornou mais atenta.
— Mas… como vim parar aqui? Quanto tempo se passou desde o duelo? — perguntou, com a voz ainda um pouco rouca.
— Acho que já fazem uns três ou quatro dias — respondi, olhando para ela com atenção. — Você foi envenenada, Claire. Quase não conseguimos impedir o veneno de te matar.
O rosto dela endureceu no mesmo instante. A expressão mudou, ficando mais fria, mais severa. Seus olhos fitaram um ponto fixo à frente, como se estivesse lembrando dos tios.
— Não acreditava que meus tios chegariam a esse ponto… — murmurou, entre os dentes.
— Não temos certeza se foram eles, ainda — salientei, tentando colocar alguma prudência ali. — Pode ser que você tenha sido apenas um dano colateral… talvez um peão em um conflito maior entre Annabela e eu. Lenora está investigando. Com sorte, vamos descobrir logo quem foi.
Claire não respondeu de imediato. Ficou em silêncio por alguns segundos, e depois apenas assentiu, quase imperceptivelmente. O peso daquilo tudo ainda estava se assentando nela.
Passamos mais algum tempo no quarto. O ambiente aos poucos retomava uma sensação de normalidade. A luz suave do sol da manhã atravessava as cortinas, projetando sombras difusas no chão. Pude examinar Claire, discretamente, enquanto as outras falavam com ela. Sua mana fluía de maneira regular, sem bloqueios ou anomalias. O envenenamento havia deixado cicatrizes invisíveis, mas nenhuma delas permanente. Em pouco tempo, estaria em plena forma outra vez. Não haveria sequelas — o que, sinceramente, era um alívio que eu não esperava sentir tão forte.
Foi então que Pandora me chamou de canto, sua expressão carregada de algo mais sério.
— Falando em Lenora… ela me convocou para uma conversa no palácio hoje à tarde. Acho que está finalmente pensando em revelar a minha identidade ao Conselho dos Anciãos.
Olhei para ela por um instante. Sabia que aquilo pesava.
— E o que acha disso? — perguntei. Sabia que ela nunca quis esse tipo de papel — ou fardo.
— Fiz as pazes com meu passado — respondeu, a voz firme. — E agora quero vê-los pagar. Todos. Principalmente ela… Annabela.
— Também quero — falei, o tom mais grave. — Não aceito o jeito como manipularam os acontecimentos, desde o começo. Como seguem fazendo isso até hoje. A morte de Joana e Victor está nas mãos deles. Assim como tantas outras. — A encarei. — Eles não estão acima do bem e do mal, Pandora. Chega dessa arrogância velada.
Ela me fitou em silêncio, mas havia um brilho novo em seus olhos. Determinação.
— Quer ir comigo?
— Não vejo por que não… — murmurei, pensativo. — Na verdade, preciso mesmo falar com Lenora. Tenho que resolver uma coisa importante… uma questão envolvendo as fadas.
— Fadas? — repetiu ela, surpresa.
— Ah… esquece — desconversei, balançando a cabeça. — É só algo que preciso cuidar pessoalmente.
Pandora arqueou a sobrancelha, com aquela expressão típica dela que dizia tudo sem precisar de uma palavra: “Certo, guarde seus segredos.”
— Vou para lá depois do almoço. Se quiser, podemos ir juntos.
— Combinado.
Depois do almoço, me despedi de Nix e Claire, ambas ainda se recuperando emocionalmente dos últimos dias, e fui ao encontro de Pandora do lado de fora dos portões da mansão. Ela já me esperava, vestida com sobriedade, os cabelos soltos ao vento. Começamos a caminhar em direção ao palácio, lado a lado. O caminho se desenrolava silencioso, quase melancólico. Cada um de nós mergulhado nos próprios pensamentos. Havia uma tensão no ar, mas não era desconfortável — era o tipo de silêncio que nasce entre pessoas que já não precisam preencher o espaço com palavras.
— Não estou acostumada com você tão quieto, Lior — disse ela, depois de um tempo. Sua voz cortou o silêncio como uma brisa. — Aconteceu algo?
— Além de tudo que vem acontecendo ultimamente? — respondi, com um riso breve, um tanto cansado. — Bem… aconteceu, sim. Descobri que talvez eu não saiba quase nada sobre Mahteal. Coisas que eu acreditava serem verdades absolutas… talvez não passem de ilusões, distorções ou mesmo mentiras.
Pandora caminhou por mais alguns passos antes de responder.
— E o que isso muda no que você tem que fazer? Ou em quem você é?
Suas palavras foram simples. Diretas. Mas ecoaram em mim com força. Me atingiram com a precisão de uma flecha no centro de um alvo.
Ela estava certa.
Mesmo que o passado tenha sido deturpado, mesmo que a história tenha sido escrita por mãos que não me representam, o presente continua exigindo ações concretas. Eu ainda precisava confrontar Annabela e Juliane. Ainda precisava resgatar Selune e meu filho. Ainda havia um reino feérico prestes a colapsar, esperando minha ajuda. Nada disso mudava porque Mahteal talvez tenha se enganado sobre sua origem — ou sobre a própria sanidade.
— Obrigado — falei, deixando escapar um suspiro. — Você me deu algo em que pensar. Talvez o passado não importe tanto quanto eu acreditava. Importa conhecê-lo, sim… porque o conhecimento é poder, e evitar repetir erros é essencial. Mas isso não muda as coisas que preciso fazer. Não muda o que sou. Nem o que escolhi ser.
Pandora apenas assentiu, e seguimos caminhando.
O palácio já despontava ao longe.
Lenora nos recebeu em seu escritório com uma expressão tranquila, mas os olhos sempre atentos, analisando tudo. A primeira coisa que me chamou a atenção foi o próprio ambiente. Era diferente da última vez em que estive ali. Antes, o espaço carregava uma sensação de transitoriedade, como se fosse apenas um posto provisório ocupado durante uma emergência. Agora, não. Tudo ali gritava estabilidade, controle. Os móveis estavam dispostos com precisão, cortinas novas cobriam as janelas, e uma tapeçaria ancestral — provavelmente retirada dos arquivos do palácio — dominava a parede principal atrás de sua mesa. Tudo indicava que o período de “intervenção dos anciãos” tinha deixado de ser provisório. Aquilo parecia, mais do que nunca, um reinado paralelo.
— Pandora, Lior — cumprimentou ela, sem se levantar, mas com um leve aceno de cabeça. — Confesso que é uma surpresa ver vocês aqui juntos.
Reverenciei-a com uma mesura curta de cabeça, polida, mas não submissa. Pandora, mais rígida, curvou-se com formalidade. Tinha algo nos gestos dela que indicava distanciamento, ou preparo.
Lenora estendeu uma das mãos, convidando-nos a sentar no sofá de veludo escuro em frente à poltrona onde ela mesma se acomodou com elegância. Havia algo em sua postura que lembrava uma predadora em descanso: confortável, mas nunca vulnerável.
— Aceitam um chá? Biscoitos? — perguntou, com um tom que tentava ser cordial, mas que não disfarçava o subtexto político embutido até na hospitalidade.
Pandora assentiu com a cabeça, serena. Acabei aceitando também, mais por reflexo do que por vontade. O estômago ainda digeria o almoço, mas a mente já sabia que aquele tipo de encontro exigia gestos simbólicos e recusar poderia ser interpretado como mais do que simples desinteresse.
Pouco depois, uma criada entrou silenciosamente com uma bandeja de prata, trazendo uma chaleira fumegante, xícaras finas de porcelana e um pequeno prato com biscoitos amanteigados que exalavam o aroma de especiarias caras.
Assim que o chá foi servido e a criada se retirou, Lenora repousou a xícara sobre o pires com um leve tilintar e olhou diretamente para Pandora.
— Podemos discutir nossos assuntos na frente de Lior? — perguntou, com aquele tom calculado que deixava claro que a pergunta era mais um teste do que um pedido.
— Não há nada que ele não saiba, anciã — respondeu Pandora, sem hesitar. Sua voz era firme, sem agressividade, mas carregada de propósito.
Lenora assentiu devagar, como se aquele gesto encerrasse um ritual silencioso de validação. Em seguida, se recostou ligeiramente na poltrona, mas manteve o queixo erguido, a expressão cerrada de quem está prestes a colocar as cartas na mesa.
— Muito bem. — Seus olhos se voltaram para Pandora com a intensidade de quem não está mais disposta a perder tempo com jogos de cortesia. — Estou prestes a iniciar uma guerra política com Juliani. E antes de mover qualquer peça, preciso saber com clareza… você está comigo nessa?
O silêncio que se seguiu teve peso. Não era apenas uma pergunta. Era um convite e uma sentença ao mesmo tempo. Uma porta que, uma vez cruzada, não teria volta.
Pandora não respondeu de imediato. Levantou a xícara com elegância, bebeu um pequeno gole do chá e só então devolveu a porcelana ao pires com cuidado. Quando ergueu os olhos, estavam afiados como nunca.
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