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    A cena mexia com algo dentro de mim que eu não conseguia nomear com precisão. Era uma mistura. Parte vinha de Mahteal, disso eu tinha certeza. Ele reagia de forma intensa a qualquer injustiça, principalmente contra magos, subjugados por ignorância ou poder. Mas não era só dele. Tinha algo meu ali também. Algo visceral, antigo, talvez enraizado nos anos em que vivi à sombra, reprimido, calado, diminuído pela Casa Vulkaris. Anos em que me fizeram acreditar que eu era menor. A empatia brotava disso. Me colocava naturalmente ao lado dos humilhados. Dos que eram forçados a aceitar o papel que o mundo lhes impunha.

    Sem pensar duas vezes, me adiantei, sentindo uma energia se acumular nos dedos e no peito. Falei com ânimo, como quem lança um desafio:

    — Minha vez então — e caminhei até o centro do círculo. — Vamos lá! Me ataquem.

    Meus olhos percorreram o grupo de guerreiros. Eles estavam indecisos, trocando olhares entre si. Talvez não soubessem se era uma armadilha, ou se deviam mesmo seguir a ordem. Notei que Valis não estava entre eles, provavelmente ainda se recuperava da surra que o lich lhe dera.

    Diante da hesitação, olhei para Gus e depois para o instrutor grandalhão, arqueando as sobrancelhas num gesto claro de “e aí, vamos ou não vamos?”

    Gus, com a empolgação de alguém que esperava por aquilo há tempos, deu o empurrão que faltava:

    — E então? Eles não vão atacar?

    O grandalhão ficou visivelmente contrariado, mas não queria parecer fraco. Encurralado, ordenou com voz firme:

    — Ataquem!

    Foi como soltar cães famintos. Os guerreiros investiram contra mim de todos os lados. Hesitaram por um instante, mas o número deu a eles coragem. Achei até curioso ver a confiança crescendo conforme se aproximavam.

    Foi quando me concentrei.

    Estendi minha percepção à mana ao redor e tracei um círculo ao meu redor. A borda desse círculo, assim que foi tocada por seus passos, explodiu em uma rajada de vento, uma metamagia que eu mesmo desenvolvi. Peguei a mana pura e a transmutei em vento comprimido. O resultado? Um anel de ar em fúria, mais forte do que um pequeno tornado, mas contido, preciso, quase elegante.

    Os guerreiros mais leves foram arremessados no ar como bonecos de pano, caindo no chão com baques secos. Os mais pesados e resistentes recuaram instintivamente, protegendo o rosto e os olhos.

    A areia do chão foi o tempero extra. Ela se ergueu com o vento, chicoteando pele e olhos, grudando no suor, dificultando a visão. Aproveitei o momento.

    Com um gesto sutil, controlei seis porções separadas dessa ventania carregada de areia e as concentrei em redemoinhos menores. Fiz com que girassem em círculos amplos, carregando mais e mais força. No ápice, estalei os dedos, um toque teatral, admito, e os vórtices dispararam em linha reta, colidindo contra os seis guerreiros que ainda estavam de pé.

    O impacto foi brutal.

    As roupas deles se rasgaram com o atrito. O som do tecido se desfazendo se misturou aos gritos e aos baques dos corpos sendo arremessados. Dois ficaram inconscientes no ato. Os outros se arrastaram para longe, derrotados.

    E então, ouvi um grito agudo e estranho, quase inumano. Me virei, tentando entender o que era. Uma das guerreiras, uma ruiva musculosa, segurava o próprio corpo como podia. Sua roupa, esgarçada pela magia, tinha cedido na frente, expondo seus seios à vista de todos.

    As risadas não vieram dos guerreiros.

    Vieram dos magos.

    Alguém soltou uma gargalhada engasgada. Outro tentou conter, mas falhou. Até Gus, o sempre tenso instrutor, riu com gosto, com a cabeça pendendo para trás como quem esperava por aquele momento há décadas.

    Tentei manter a expressão neutra, sério, profissional. Mas era impossível.

    A ruiva, vermelha até os ombros, fugiu em disparada, abraçando o próprio corpo enquanto corria em direção aos vestiários. As risadas continuaram por alguns segundos até se transformarem em cochichos e sorrisos contidos.

    Eu permaneci no centro, firme, respirando com calma, sentindo a mana circular de volta ao seu estado de repouso.

    Aquela cena tinha sido mais do que um espetáculo.

    Tinha sido um recado. O tempo de mexer com os magos tinha acabado.

    Com um único comando seco, o instrutor grandalhão reuniu seus guerreiros, ordenando a retirada imediata. Os que ainda estavam conscientes ajudaram a arrastar os inconscientes para fora do campo de treino, alguns mancando, outros cabisbaixos. Me senti mal por eles, confesso. Não era prazeroso vê-los naquela condição, mas aquilo precisava acontecer. Por dois motivos.

    O primeiro: com a técnica de despertar o sol de mana, as antigas formas de medir poder já não serviam. Não importava mais quantos círculos de mana você acumulava, mas como manipulava a energia. A força deles era ilusória, baseada em parâmetros ultrapassados. E o segundo motivo era mais importante ainda: não era certo menosprezar alguém só por ser mais fraco. Isso criava arrogância e crueldade — duas coisas que corroem qualquer sociedade por dentro.

    Assim que os guerreiros se afastaram, os magos que tinham permanecido no círculo vieram até mim em disparada, como se eu tivesse jogado um feitiço de atração sobre eles.

    — Caramba, aquilo foi incrível! — disse um dos mais jovens, os olhos brilhando de excitação.

    — Bem feito pra eles — comentou outro, ainda rindo da humilhação sofrida pelos guerreiros.

    — Me ensina isso, por favor! — pediu um terceiro, com as mãos quase juntas em súplica.

    Fiquei cercado de magos ansiosos, como crianças famintas por conhecimento. Foi aí que a ideia me veio. E se eu levasse alguns deles comigo para a missão na ilha? Não apenas por reforço, mas como parte do que eu já começava a considerar meu projeto pessoal: a formação de uma nova ordem de magia, uma torre de conhecimento vivo, fora da estrutura ultrapassada do Império.

    Levantei as mãos, pedindo silêncio. Eles se calaram de imediato.

    — Em dez dias, partirei em missão. Será perigoso. Muito perigoso. Não posso garantir a segurança de ninguém. Mas posso prometer uma coisa — falei, olhando cada um nos olhos. — Quem for comigo vai crescer. Vai evoluir. Vai entender a mana de um jeito que nunca imaginou.

    Eles me encaravam, boquiabertos. Aproveitei o impacto.

    — Até o dia da partida, darei aulas na minha mansão. Todo dia, das sete da manhã até o fim da tarde. Quem atingir o padrão que eu julgar adequado poderá vir comigo.

    — Eu posso ir também? — perguntou Gus, com um entusiasmo que não combinava com a seriedade habitual dele.

    — Claro que pode — respondi, sorrindo. — O que vou ensinar vai ajudar a liberar seu verdadeiro potencial. Mana não será mais um limite. Vocês serão capazes de lançar magias muito acima de seus círculos. Isso não é promessa vazia. É uma nova forma de lidar com a energia.

    Milena estava de olhos arregalados. Elizabeth também. Foi ela quem se manifestou, com uma voz surpreendentemente suave:

    — Eu posso ir?
     
    Ela me olhava de forma hesitante, como se estivesse testando o terreno antes de pisar. Eu sabia quem ela era. Assim como Alana, era uma homúnculo criada por Annabela. Mas diferente de Alana, Elizabeth era uma versão aprimorada, provavelmente o receptáculo final pensado para Esther, caso os planos de Annabela e Juliani fossem levados a cabo.

    Tê-la por perto significava uma exposição perigosa. Poderia comprometer alguns dos meus segredos. Mas também era uma oportunidade rara de observá-la, estudá-la, e talvez, por meio dela, entender melhor Alana.

    — É claro que pode — respondi, firme, com um sorriso leve.

    — Mesmo? Achei que…

    — Seja honesta comigo — interrompi — e eu serei honesto com você. Não tenho rixas pessoais contigo. Mas não finja ser quem não é.

    Ela assentiu lentamente, baixando os olhos. Havia compreendido o recado.

    Fiquei ali por mais alguns minutos, respondendo perguntas, estabelecendo diretrizes, medindo o entusiasmo nos olhos de cada um. Quando senti que era hora de ir, me despedi. Dei alguns passos, flexionei os joelhos e levantei voo, deixando para trás a trilha de energia cortando o ar.

    Antes de partir, voltei o rosto e deixei um último aviso:

    — Espero vocês amanhã cedo. Não se atrasem.

    E desapareci entre as colunas do céu.

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