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    Acordei e não vi sinal de Nix. Ela devia ter dormido no quarto de Claire, com ela. Não me preocupei com isso. Na verdade, a ideia me arrancou um sorriso preguiçoso. Me levantei, fiz minha higiene matinal e desci para o desjejum.

    Anna se aproximou com sua pontualidade habitual, equilibrando com elegância uma bandeja carregada de pães, queijos e frios frescos.

    — Anna, acho que um bocado de gente vai aparecer pra almoçar conosco hoje — comentei, já pegando um pedaço de pão. — E, se tudo der certo, isso vai se repetir pelos próximos dez dias.

    — Visitas inesperadas, milorde? — ela arqueou uma sobrancelha, embora sua expressão mantivesse a compostura.

    — São futuros alunos, acredito eu. Não quero nada luxuoso, mas temos que oferecer pelo menos um lanche decente pra quem vier.

    — Entendido. Providenciarei algo simples, mas bem apresentado.

    — Lembre-se, nada de extravagância. Talvez alguns tragam o próprio lanche, então foque no básico: frutas, pães, algo salgado, e deixe bebidas à vontade. Uma sangria leve, água com hortelã… você sabe melhor que eu o que agrada.

    Ela corou com o elogio, mesmo que simples. Assentiu com leveza, os olhos baixos.

    Dei uma olhada em volta, meio rindo sozinho. Se alguma das garotas estivesse por perto, com certeza teriam me acusado de estar dando em cima de Anna.

    — Nix e Claire já saíram? — perguntei, enquanto tomava um gole de chá.

    — Sim, milorde. Saíram cedinho. Disseram que tinham compromissos com a dama Sybela.

    Bem quando terminei de comer, um dos vigias se aproximou da porta da cozinha. Esperou respeitosamente antes de se anunciar com sua voz grave.

    — Milorde, há uma pequena multidão no portão principal. O que devo fazer?

    — Deixe-os entrar — respondi. — Conduza-os até o gramado dos fundos. Irei recebê-los lá.

    Ele fez uma mesura e se retirou prontamente para cumprir a ordem.

    Me levantei, ajeitei o casaco sobre os ombros e caminhei na direção do gramado dos fundos, um espaço amplo e ensolarado que ficava próximo à residência onde eu havia me instalado nos meus primeiros dias ali. Aquele lugar carregava memórias, de treinos solitários, de batalhas simuladas, de descobertas mágicas. A noite selvagem com Selune.

    O vento soprava leve, fazendo as folhas das árvores dançarem em silêncio. O sol ainda não estava forte, o que tornava o momento mais agradável.

    E, mesmo com a responsabilidade que me aguardava, eu não conseguia esconder minha empolgação. Era o início de algo grande. Uma das sementes do que eu esperava que se tornasse o alicerce do que viria pela frente: uma campanha real de fortalecimento da humanidade. Não apenas com armas. Mas com conhecimento, disciplina e poder.

    Poucos minutos depois, ouvi passos se aproximando. Muitas vozes misturadas, algumas animadas, outras tensas, sussurradas como se estivessem prestes a atravessar um limiar importante. Eles haviam chegado.

    Gus vinha à frente, com sua postura curvada, seus braços magros balançando desengonçados ao caminhar. Ao seu lado, vi Milena, as longas tranças azuladas balançando com o vento, e Elizabeth, discreta, quase se camuflando entre os demais. Me parecia que todos os magos tinham vindo. Mas eu não podia afirmar com certeza, havia rostos novos, e a energia do grupo era diferente, elétrica.

    — Sejam todos bem-vindos — exclamei, erguendo a voz para ser ouvido sem parecer autoritário. — Vamos usar esse espaço aqui do gramado. Fiquem à vontade para se acomodar na grama ou nas bordas da varanda. Logo meus serviçais trarão algo para beber. Podemos começar?

    Os alunos começaram a se dispersar e procurar lugares para se sentar. Alguns estavam claramente empolgados, outros apenas desconfiados. Vi Gus abrir sua bolsa surrada e de lá tirar uma pena, tinteiro, folhas de papel e uma prancheta de madeira. Sempre metódico. Outros o imitaram, como se aquilo fosse a coisa certa a se fazer.

    Esperei o burburinho diminuir e, quando senti que estavam prontos, comecei.

    — Antes de iniciarmos qualquer prática, quero entender melhor a base de magia de cada um. Quero saber seus círculos atuais, magias preferidas e até onde vai o conhecimento teórico de vocês sobre manipulação mágica.

    Passamos quase uma hora nessa conversa. Fiz questão de tornar aquilo algo aberto, informal. Nada de fichas ou testes. Queria ouvir da boca deles, entender não só o que sabiam, mas como pensavam a magia.

    Prestei atenção especial às palavras de Elizabeth. Ela era a que mais me intrigava. Sua construção, seus limites, seu olhar calmo demais para alguém da idade aparente. Quando respondeu, falou pouco, mas com precisão. Uma mente afiada por trás daquela expressão neutra.

    Depois de traçar um panorama geral, separei todos em pequenos grupos, mesclando os mais experientes com os menos. Queria criar um ambiente de colaboração, onde os mais avançados precisassem explicar, e os menos pudessem aprender por osmose e repetição.

    Começamos com exercícios simples. Nada de invocação, nada de runas complexas. Eram exercícios projetados para quebrar vícios mentais. Afastar os alunos das fórmulas fixas que haviam decorado, e colocá-los em contato com uma magia mais fluida, maleável. Compreensão viva, não repetição morta.

    Deixei os grupos trabalhando, circulando entre eles e tirando dúvidas pontuais.

    Notei que, ironicamente, Gus era quem mais sofria. Por ser o mais experiente, tinha mais dificuldade de se desprender das formas rígidas que havia passado a vida aperfeiçoando. A frustração começava a se acumular em sua expressão.

    — Relaxe, amigo — disse, me aproximando e agachando ao lado dele. — Quanto mais força você faz, mais acaba escorregando de volta para os velhos hábitos. Aqui, tentar demais é o erro.

    Ele balançou a cabeça, o olhar vidrado na folha diante de si. Gotas de suor brilhavam em sua testa.

    — Vamos fazer juntos — continuei. — Pegue a runa mais simples de todas. Apenas um traço, sem adornos. Uma runa primitiva de vento.

    Ele respirou fundo e começou a mentalizar. Eu o ajudei, ajustando o fluxo da imagem que ele formava na mente. Lentamente, como se afinasse um instrumento que ele nunca percebeu estar desafinado, ele conseguiu. A runa se desfez da forma rígida e assumiu uma curvatura leve, flexível. Viva.

    Um sorriso escapou de seus lábios finos. Um sorriso verdadeiro, mostrando os dentes tortos que ele geralmente escondia.
     
    — Isso — falei, encorajando. — É isso aí. Continue assim. Você vai se surpreender com o quanto consegue mudar, se parar de tentar controlar tudo.

    Ele assentiu, os olhos agora brilhando. E voltou ao exercício com outro tipo de foco.

    Fiquei ali por mais alguns minutos, apenas observando. Aquilo era o início de algo novo. E eu estava exatamente onde precisava estar.

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