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    Acordei com a cabeça de Claire repousando em meu peito. Seu corpo estava relaxado, aquecido pelo meu, e o cheiro suave de flores que emanava de seus cabelos era inebriante. Por um instante, tudo no mundo parecia calmo. Beijei sua testa com carinho, e ela murmurou algo ininteligível, se aconchegando mais.

    — Bom dia, meu amor — sussurrei, passando a mão com cuidado pelo seu rosto, como se ele fosse feito de porcelana.

    Seus olhos verdes se abriram devagar, ainda turvos de sono, mas logo brilharam quando me encontraram. Aquele brilho… era como um sol particular que só ela conseguia acender.

    — Sou a mulher mais feliz do mundo — disse, com a voz rouca e macia da manhã.

    — Fico contente que esteja feliz — respondi, sorrindo de volta. — Ver você assim me faz feliz também.

    Ficamos um tempo assim, sem dizer nada. Apenas respirando o mesmo ar, dividindo aquele silêncio gostoso. Mas, como tudo na minha vida ultimamente, a paz durou pouco.

    Como se pressentissem que tínhamos despertado, a maçaneta da porta emitiu um brilho azulado, seguido de um clique discreto. A porta se abriu lentamente, como se a própria madeira estivesse tentando não fazer barulho. Eu e Claire nos viramos, curiosos, tentando entender o que estava acontecendo.

    Uma cabecinha apareceu na fresta, com longas orelhas de raposa e olhos atentos e cheios de malícia. Ao perceber que a estávamos encarando, Nix fez uma careta indignada.

    — Não é justo vocês me verem fazendo papel de boba — exclamou. — Deviam ter avisado que estavam acordados.

    Eu e Claire rimos com sua indignação forçada. Ela entrou no quarto sem a menor cerimônia, como se aquela também fosse sua cama.

    — Ora, você que não devia estar invadindo o quarto de ninguém, não é? — comentei, ainda rindo.

    — Estava curiosa… — murmurou, fazendo beicinho enquanto se aproximava da cama. — Agora sei que o encontro foi um sucesso. Dei várias dicas pra ela, sabia?

    Claire abriu os braços em silêncio, convidando Nix para um abraço. Nix correu até ela e se jogou sobre a cama, colando-se a Claire como uma irmã mais velha. Elas se abraçaram com um carinho sincero, como se fossem feitas da mesma matéria.

    — Somos irmãs agora — disse Claire, com a voz baixa.

    — Sempre fomos, boba. Mesmo antes… meu sexto sentido de raposa já dizia que isso ia acontecer.

    Claire olhou para ela com curiosidade.

    — E não está com ciúmes?

    — De você? Nunca. Só tenho ciúmes daquela loira giganta.

    — Ué — exclamei — não quero nada com a Pandora!

    Ambas viraram o rosto para mim com a mesma expressão cética, como se eu fosse o aluno que deu a desculpa mais esfarrapada da aula.

    — Sei, sei… — disseram as duas ao mesmo tempo, trocando olhares cúmplices.

    — É verdade! Vocês estão fazendo mau juízo de mim!

    Nix se sentou, ajeitou o cabelo e fez um gesto teatral com as mãos, como quem afasta um servo inútil:

    — Vai se arrumar. Seus alunos já estão chegando. Eu e minha irmãzinha temos muito o que conversar. Vai logo.

    Suspirei, rendido. Me levantei com cuidado, tentando não descobrir Claire, que ainda segurou minha mão por um instante, entrelaçando os dedos nos meus com um carinho que me atravessou por inteiro.

    Peguei minha camisa no encosto da cadeira e a vesti de qualquer jeito, sem abotoar direito. Enquanto isso, Nix já cochichava alguma coisa no ouvido de Claire, que escondeu o rosto no travesseiro, rindo e corando.

    — Já estou indo — murmurei, lançando um último olhar para a cena das duas enlaçadas sobre a cama. — Mas façam o favor de saírem do quarto pelo menos antes do almoço. Ou a Anna vai começar a achar que estou trancado aqui com duas garotas de uma vez.

    — E não está? — provocou Nix, com uma sobrancelha arqueada e um sorriso travesso, enquanto Claire soltava um som entre o riso e a indignação.

    — Vocês vão acabar com minha reputação.

    — Lior, amor… — disse Claire, ainda entre risos — acho que sua reputação já foi pro espaço faz tempo.

    — Ainda mais agora que a Casa inteira vai saber que dormimos juntos — completou Nix, levantando o lençol com um floreio dramático.

    Balancei a cabeça, vencido.
     
    — Vou pro gramado. Espero vocês depois, irmãs do caos.

    As duas se abraçaram de novo, e eu fiquei por um segundo observando aquele momento. Claire com o rosto sereno, os olhos fechados. Nix acariciando seus cabelos com uma ternura rara. Aquela imagem ficou comigo enquanto fechava a porta com cuidado.

    Era mais do que eu poderia ter sonhado um dia. Era mais do que uma casa. Era lar, enfim.

    O dia no gramado se desenrolou de forma parecida ao anterior. O céu estava limpo, o sol agradável, e os primeiros a chegar foram, como sempre, os mais ansiosos, Gus com sua prancheta, Milena com as tranças presas no alto da cabeça, Elizabeth com o semblante calmo demais para alguém no território inimigo. Aos poucos, os demais alunos foram chegando, sentando-se em duplas e trios espalhados pela grama, já habituados ao ritmo das aulas.

    Eu queria, mais do que tudo, quebrar aquela forma engessada de pensar magia que todos carregavam como uma couraça. Desfazer o vício do automatismo. Os círculos, as runas, os gestos… tudo era repetição. Magia como ferramenta. Como muleta. Queria fazer com que enxergassem a magia como linguagem, não como ritual.

    Durante a manhã, propus exercícios simples. Alterações de formas básicas. Desconstruções de runas elementares. A maioria ainda relutava em sair da segurança dos velhos padrões, mas, pouco a pouco, os primeiros lampejos começaram a surgir. Um traço que se desfazia no ar. Uma conjuração que perdia a forma mas mantinha o efeito. A hesitação dando lugar à curiosidade.

    Os alunos mais avançados chamavam mais minha atenção. Gus, apesar da idade, ainda era rígido em seus pensamentos. Sua experiência o fazia temer o novo, mas era dedicado, e sua força de vontade compensava. Milena, por outro lado, parecia dançar com a mana. Ela errava muito, mas aprendia rápido. Já Elizabeth… Elizabeth era um caso à parte. Sempre atenta, sempre no tempo certo. Como se tivesse nascido sabendo. Como se parte dela lembrasse de algo que ninguém mais sabia. Supus que ela soubesse mais que transparecia, tendo sido criada por Naksa.

    No início da tarde, chamei os três à parte. Levei-os até uma parte do gramado mais afastada, próxima da sombra de uma árvore frondosa, onde a brisa parecia circular com mais liberdade.

    — Vocês três já estão prontos para o próximo passo — anunciei, sentando-me sobre a grama e fazendo sinal para que me acompanhassem. — Quero ensinar algo que talvez vá contra tudo o que aprenderam até hoje. Uma nova forma de se relacionar com a mana. E, mais importante, uma nova maneira de armazená-la no corpo.

    Gus, Milena e Elizabeth se entreolharam. Por mais que se conhecessem, eram estranhos, e senti que isso também criava certa tensão entre eles. Uma competição.

    — Vamos tentar transformar seus círculos em um sol de mana.

    Gus franziu a testa, visivelmente cético.

    — Isso… isso é possível? Não exigiria uma estrutura absurda de contenção?

    — Exige — respondi com calma. — Se você seguir a velha escola. Os círculos cristalizados de mana são a forma natural do corpo conter energia. Limitada, previsível. O que vamos tentar é romper essa forma de contenção e substituí-la por algo mais fluido. O sol de mana não é estático. É movimento. Um giro constante. Um esforço inconsciente — que exige treino e foco — para manter a mana em circulação, comprimindo-a pela própria velocidade.

    Gus ainda parecia hesitante. Elizabeth, por outro lado, observava tudo com atenção silenciosa. Milena já estava com as pernas cruzadas, olhos fechados, respirando fundo.

    — Vamos começar com o básico — continuei. — Quero que tentem desfazer mentalmente o último círculo cristalizado de vocês. Não tentem forçar, não tentem controlar demais. Apenas visualizem a estrutura se rompendo. Sintam a mana livre, e imaginem ela girando em torno de um único ponto, logo abaixo do coração. Nada de expandir. Só concentrem, girem, e deixem ela criar seu próprio centro.

    O silêncio se instalou entre nós. As folhas da árvore acima farfalhavam com o vento leve. O som distante dos outros grupos ainda em treino parecia distante.

    Milena foi a primeira a reagir. Seu corpo tremeu levemente, como se estivesse em transe. Seus dedos se apertaram contra os joelhos. Uma leve ondulação de mana escapou de seu corpo, ondulando o ar ao redor. Sorri. Ela tinha conseguido romper o círculo, ao menos por um instante.

    — Isso. Segura. Deixa girar.

    Gus estava suando, as mãos trêmulas. Seus olhos apertados em esforço, mas a energia ao redor dele era rígida demais, tensa. Ele ainda tentava controlar com força.

    — Gus — chamei suavemente. — Não lute contra. Deixa a mana dançar. Você não precisa comandá-la, só guiar a melodia.

    Ele assentiu, mas demoraria ainda um pouco.

    Elizabeth continuava imóvel. As pálpebras cerradas, respiração constante. Mas algo me incomodava. A mana ao redor dela parecia… contida demais. Não havia fluxo, nem erro, nem oscilação. Apenas uma bolha silenciosa.

    — Elizabeth? — perguntei.

    Ela abriu os olhos. Não disse nada por alguns segundos. Então falou, quase num sussurro.

    — Tem algo errado comigo.

    — Como assim?

    Ela hesitou. Seu olhar vagou até os galhos da árvore, como se buscasse ali as palavras que não encontrava.

    — Eu consigo seguir todos os passos… mas é como se houvesse algo no centro… algo que não é meu. Algo que gira na direção contrária.

    Fiquei em silêncio por um momento. O sol de mana ainda era novo demais para ser entendido por completo, mas aquela sensação… aquele “giro contrário” não me soava natural. Tampouco era um erro simples de concentração.

    — Você fez certo — disse. — Às vezes, quando tocamos o que está além, também tocamos o que está dentro. Não lute contra isso ainda. Só observe. E me avise se sentir que… muda.

    Ela assentiu com um leve movimento de cabeça. Mas seu olhar já não era o mesmo.

    Algo havia sido despertado.

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