Capítulo 2: Perdido na Névoa.
Alguns meses haviam se passado desde minha viagem para testemunhar as Manaclastes em ação. Embora as estações em Vesúvia fossem sempre parecidas, nossa casa seguia o calendário de Thallanor, a ilha-capital do Império. O verão e a primavera haviam ficado para trás, e agora entrávamos no outono.
Nos últimos tempos, não se falava em outra coisa além do evento de apresentação dos jovens nobres. Na verdade, eram dois eventos distintos, ambos realizados a cada dois anos. O primeiro era o Fim de Semana de Apresentação, que incluía uma série de encontros, competições que deveriam ser amigáveis e um grande jantar formal, cujo objetivo era introduzir os jovens à sociedade nobre. Para aqueles com dezoito e dezenove anos, era um momento crucial, marcando o início de suas interações com membros de outras Casas. Até então, eu só havia convivido com meus irmãos e primos.
O segundo evento, programado para o início da primavera, era o “Torneio dos Jovens”. Uma disputa feroz, sempre sob regras diferentes, onde os competidores lutavam sob os olhares atentos das Grandes Casas. O torneio era perigoso e desafiador, e mortes não eram incomuns. Os vencedores não apenas ganhavam prestígio, mas também eram considerados para posições de destaque dentro do círculo interno do Império e do Imperador. Alguns chegavam até a ser cogitados para a sucessão imperial.
Por ora, no entanto, a preocupação era a apresentação, que aconteceria em uma semana.
O último mês tinha sido um verdadeiro caos.
Eu, Cassiopeia, Alissande, minha meio-irmã, e Roderick, outro meio-irmão, além de Kael, filho mais velho de meu tio Augustus, e Nyra, sua filha mais nova, estávamos entre os jovens que seriam apresentados perante os nobres e o Imperador. Eu, meus irmãos e Nyra tínhamos dezoito anos. Kael, o mais velho entre nós, já tinha dezenove.
Nossos dias haviam sido consumidos por uma infinidade de ensaios: para o jantar, para as danças, para apresentações formais, até mesmo para nos portarmos corretamente e caminharmos com a devida postura. Para os outros, aquilo era um incômodo necessário. Para mim, era um suplício.
Minha resistência era inferior à dos demais. Minha agilidade, pior ainda. Sempre ficava para trás.
E, claro, todos riam das minhas falhas.
Principalmente Alissande. Ela era bonita, até mais que Cass. Herdara a beleza exótica da mãe, com cabelos pretos e longos que pareciam roubar a luz ao redor, olhos levemente puxados e uma boca que lembrava um botão de rosa porém, venenosa e narcisista.
Nunca perdia uma oportunidade de me menosprezar. Era filha de Lady Avelline, a maior rival de minha mãe pelo título de Primeira Esposa, e irmã de Viktor, meu meio-irmão mais velho. Carregava o orgulho da linhagem materna como uma espada embainhada, sempre pronta para desferir golpes.
Roderick, por outro lado, era filho ilegítimo de meu pai com Lady Alluna. Ele não me importunava, fato que já era algo positivo. Sua mãe era subordinada direta de minha mãe, Lady Isolde, e, por isso, ele sabia manter distância.
Meus primos, Kael e Nyra, eram mais distantes. Viviam na residência de meu tio dentro da propriedade, e, exceto por grandes eventos familiares, raramente nos víamos.
Agora, a fase dos ensaios havia finalmente terminado.
O vento cortante do outono trouxe consigo um arrepio que nada tinha a ver com o frio. Enquanto eu caminhava para fora da residência de minha mãe, meus pensamentos oscilavam entre o alívio de deixar aquele ambiente sufocante e o peso da viagem que estava por vir.
Os outros já estavam reunidos, preparando-se para a jornada a Thallanor. Meu pai insistira que partíssemos antes do evento oficial, garantindo que tivéssemos tempo para nos aclimatar à corte imperial e seus perigos invisíveis. Mas a verdade era que eu não pertencia àquele mundo, e todos ali faziam questão de me lembrar disso.
Assim que me aproximei do grupo, uma voz carregada de desdém cortou o ar:
— O tampinha chegou.
Alissande, claro.
As risadas vieram em resposta, primeiro de meus irmãos, depois dos serviçais. Nem tentaram esconder. Eu não merecia respeito. Não depois que meu pai decidira que eu era um desperdício de recursos. O único motivo pelo qual não me tratavam ainda pior era por causa de minha mãe. Seu título de primeira esposa tinha peso, até mesmo as outras esposas de meu pai evitavam contrariar minha mãe pela frente, às costas, a situação era bem diferente.
Olhei para Alissande e sorri. Ela apenas deu de ombros, satisfeita. Então se afastou, indo se juntar a Lady Avelline e Viktor, o primogênito.
Ignorei o cansaço no peito e me dirigi aos carregadores, levando minha bagagem até onde os baús e pertences estavam sendo organizados para a viagem. Não havia muito o que levar. As coisas que realmente importavam eram poucas. Os trajes de gala, os mais importantes para a apresentação, seriam confeccionados na capital, por estilistas locais, para estarem adequados aos costumes de lá.
— Por que não esperou por nós? — A voz firme de minha mãe me fez virar.
Lady Isolde estava acompanhada de Cassiopeia e Roderick.
— Os serviçais poderiam ajudá-lo.
— Minha bagagem é pequena, não havia necessidade — respondi.
Minha mãe me avaliou por um momento, como se ponderasse se responderia ou não. No fim, apenas assentiu.
— Bem, vão até Lady Tyra. Ela está com a lista de viagem e distribuindo as Pedras de Ancoragem para a capital.
Cassiopeia olhou ao redor até encontrar a mulher, perto de uma mesa, conferindo os nomes em sua prancheta.
— Ali está ela. Vamos?
Assenti e a segui.
Assim que entramos na fila, percebi que Alissande estava logo à nossa frente. Ela se virou ao me notar e sorriu, um brilho cruel nos olhos.
— Me explica uma coisa? Por que você vai para lá? — Sua voz estava carregada de ironia. — Vai envergonhar a si mesmo e a nossa Casa, você sabe, não é?
Risos ao redor. Senti meu rosto esquentar. Não porque ela estivesse errada. Meu pai tentara impedir minha ida, chegando a pedir diretamente ao Imperador. Mas o pedido fora negado.
O Imperador quis que eu estivesse lá.
Por quê?
Não fazia sentido ele se importar comigo. A menos que houvesse um jogo maior em movimento. Tinha ouvido que ele se ressentia do sucesso recente de nossa Casa, e eu era a chave para nos derrubar.
Cassiopeia estreitou os olhos, visivelmente irritada.
— Não fale assim…
Mas antes que ela terminasse, eu a interrompi.
— Não compre essa briga. Ela está com ciúmes de você, que vai roubar toda a atenção — disse, alto o suficiente para Alissande ouvir. — O jeito dela é me diminuir para se sentir bem. Não esquente.
Cassiopeia franziu o cenho, hesitando por um instante, mas logo sorriu e mostrou a língua para Alissande, que amarrou a cara. Roderick, atrás de nós, riu baixinho.
Antes que o silêncio ficasse mais constrangedor, Lady Tyra chamou nossos nomes.
— Ganimedes, Cassiopeia, Roderick, Alissande.
Ela nos mostrou a prancheta e apontou nossos nomes.
— Assinem aqui.
Pegamos a pena e assinamos, um por um. Assim que terminamos, ela retirou de uma pequena caixa quatro Pedras de Ancoragem e nos entregou.
— Não percam, hein.
Segurei a pedra em minha mão. Era a segunda que eu segurava em pouco tempo. Mais escura que a anterior, com veias douradas serpenteando pela superfície. Lembrei da última travessia, senti uma leve vertigem e um calafrio me arrepiou.
Assim que nos viramos para voltar para perto de minha mãe, algo aconteceu.
Uma das serviçais veio apressada e quase esbarrou em Cassiopeia. A mulher, que trazia várias bagagens, para não colidir conosco deixou sua carga cair no chão.
O barulho atraiu a atenção de todos ao redor.
Cassiopeia se abaixou para ajudar, e eu e Roderick a acompanhamos. Outros serviçais próximos também vieram recolher os objetos espalhados.
A moça se abaixou, envergonhada, para apanhar as coisas.
Cassiopeia lhe estendeu a mão para a auxiliar a levantar.
A serviçal fez uma reverência antes de se afastar.
Observei a cena em silêncio. Algo naquele encontro me incomodava, mas eu não sabia exatamente o quê.
Talvez fosse só paranoia.
A espera chegou ao fim. Todos os preparativos estavam prontos. Cada carregador estava com sua carga habilmente amarrada, segurando firmemente sua Pedra de Ancoragem. A tensão era palpável, desafiar a névoa nunca era missão fácil.
Para as pessoas comuns, atravessar a névoa era um feito raro e cercado de superstições. Elas sussurravam preces e amuletos pendiam de seus pescoços, como se aquilo pudesse afastar o perigo. Mesmo os mais experientes não conseguiam esconder a inquietação.
Eu mesmo estava gelado por dentro, o coração batendo como um tambor descompassado. Sabia que a Pedra de Ancoragem me garantiria uma passagem segura, mas o medo persistia. Não importava quantas vezes eu repetisse para mim mesmo que nada daria errado, a sensação de ser tragado pelo vazio, como se o próprio mundo se dobrasse ao meu redor, ainda estava fresca na memória.
Minha mãe apareceu onde estávamos, a expressão fechada.
— Ninguém perdeu nada, não? — Ela me olhou diretamente, já antecipando meu descuido.
Lancei um olhar para Cassiopeia e Roderick ao meu lado. Eu carregava apenas minha Pedra de Ancoragem e, ao mostrá-la para minha mãe, respondi:
— Não perdi nada, não.
Roderick também balançou a cabeça negativamente. Já Cassiopeia bateu no vestido, procurando algo nos bolsos internos. Tirou uma adaga e, com uma expressão culpada, olhou para minha mãe.
— Acho que perdi… Desculpe, mamãe.
Minha mãe ergueu a Pedra de Ancoragem de Cassiopeia.
— Uma serviçal encontrou, lá onde houve aquela confusão com as bagagens.
Os olhos de Cass brilharam em compreensão ao pegar a pedra das mãos de minha mãe.
— Está na hora, vão para a fila — disse minha mãe.
Apenas concordamos e nos dirigimos para lá.
Estávamos todos diante da névoa, esperando nossa vez, eu, visivelmente nervoso. Cassiopeia, ao meu lado, deu tapinhas suaves no meu ombro.
— Vai ficar tudo bem — disse ela, um sorriso leve nos lábios. — Estamos todos juntos.
Eu assenti, tentando absorver sua confiança. Roderick se aproximou logo em seguida, segurando sua própria Pedra com tanta força que os nós dos dedos estavam brancos.
Minha mãe se adiantou e, com um último olhar sobre nós, sorriu.
— Bem… encontro vocês do outro lado.
O calor de suas palavras me atingiu como um raio de sol atravessando nuvens escuras. Havia algo ali, confiança, despedida, ou talvez apenas o instinto de uma mãe que sabia que as coisas nunca mais seriam as mesmas.
Cassiopeia tocou meu braço, trazendo-me de volta ao momento.
— Vamos?
Assenti, mesmo com o peito apertado.
À nossa frente, a névoa pairava como uma cortina espectral, separando o familiar do desconhecido. Cada um de nós segurava sua Pedra de Ancoragem, a chave para atravessar aquele limiar com segurança.
Respirei fundo e deixei que a mana ambiente fluísse para a pedra em minha mão. Aos poucos, uma runa alaranjada se formou sobre sua superfície lisa, pulsando com energia.
Olhei para Cassiopeia ao meu lado. Ela também sorria para mim, seu olhar carregado de expectativa.
Mas então algo me fez hesitar.
O brilho da pedra dela era diferente do meu.
Meu olhar baixou para sua mão, e um arrepio percorreu minha espinha.
Minha sensibilidade para mana era maior que a de Cassiopeia. Eu sentia que algo estava errado.
Foi quando a imagem da serviçal colidindo com ela mais cedo explodiu em minha mente.
Meu cérebro parou naquela cena.
Minha irmã já havia sido alvo de atentados antes. Desde que nosso pai a nomeara herdeira, tentaram assassiná-la duas vezes. O perigo a rondava como um predador paciente.
Se ela se perdesse na névoa… era o mesmo que uma sentença de morte, pior talvez.
A névoa diante de nós se contorceu, como se sentisse nossa hesitação. Tentáculos fantasmagóricos começaram a se estender, prontos para nos envolver e nos lançar ao outro lado.
Minha mente entrou em parafuso.
Se eu não fizesse nada, Cassiopeia poderia nunca mais voltar.
O peso de todas as escolhas que me trouxeram até ali passou diante dos meus olhos. Minha vida, minhas opções, meu futuro.
E então, pesei tudo isso contra o futuro dela.
Cassiopeia tinha infinitas possibilidades. Eu… nenhuma.
Antes que ela pudesse reagir, troquei as pedras entre nós.
O choque atravessou seu rosto, mas o tempo não nos deu margem para explicações. A névoa se fechava ao nosso redor.
O sorriso dela sumiu conforme a compreensão se instalava.
Ela me chamava, mas já não conseguia me ouvir.
Mesmo assim, pôde ler meus lábios, ver minha expressão resignada. Eu tinha feito minha escolha.
— Adeus irmã, obrigado por me defender sempre.
E então a névoa nos engoliu.

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