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    A última semana tinha sido uma verdadeira loucura. Havíamos ensaiado inúmeras vezes como nos mover, como nos portar, como dançar, como comer, como falar… eu estava exausto com todas as regras de etiqueta que considerava tolices. Para variar, Cassiopeia havia dominado tudo com graça e habilidade, fazendo-me sentir ainda mais deslocado. Nesses momentos, parecia que ela podia ler minha mente, sempre elogiando-me ou tentando quebrar a tensão. Embora seus esforços não adiantassem muito, eu apreciava a intenção dela em me fazer sentir melhor.

    A pressão de ser apresentado na ilha de Thallanor era enorme, especialmente com um círculo de mana quebrado. Soube que meu pai, o patriarca da Casa, tentara interceder para que apenas Cass fosse apresentada e que eu ficasse na ilha, como se sua vergonha pudesse ser escondida sob a sombra da ausência. O imperador, no entanto, exigiu que todos os jovens entre 18 e 19 anos fossem apresentados, não permitindo que eu não participasse.

    O evento de apresentação tinha a duração de uma semana inteira, repleta de almoços, saraus, demonstrações, jantares e, por fim, um baile. Cada uma dessas atividades era uma nova oportunidade para eu lembrar que, aos olhos da Casa, meu valor era questionado, e que meu pai lutava contra a vergonha de ter um filho que não se encaixava nos padrões de força e poder.

    Sempre senti os olhares das outras esposas de meu pai e ouvi os sussurros nas minhas costas. Meus meio-irmãos, por outro lado, mal se importavam comigo. As únicas pessoas que realmente tinham estima por mim eram minha mãe, Lady Isolde, minha irmã Cassiopeia, e Mestre Kes, um dos chefes da Oficina de Engenharia de Mana. Como um goblin e escravo, ele compreendia bem o que era ser desprezado pelos outros.

    Além de mim e de Cass, seriam apresentados também, pela Casa Vulkaris, meu meio-irmão Roderick, filho de Alluna, uma das concubinas de meu pai; Kael e Nyra, meus primos, filhos de Augustus; e Alissande, filha de Lady Avelline, a segunda esposa de meu pai.

    Eu gostava bastante de Roderick, um dos poucos que não me atormentava. Sua mãe era uma subordinada direta e leal de minha mãe, o que tornava nosso vínculo ainda mais especial. Em contraste, Alissande, com toda sua beleza, possuía um coração podre. Manipuladora, narcisista e cruel, ela se destacava como uma das líderes em me perseguir. Muitas vezes, Cass teve que intervir e confrontá-la para me defender, e eu me perguntava se um dia conseguiria me livrar das sombras de desprezo e da dor que cercavam meu nome.

    Com todos os preparativos  acertados, a comitiva que partiria era bem grande, e todas as pedras de ancoragem necessárias já estavam sincronizadas com Thallanor. Eu observava, com ansiedade e atenção, cada um entrar na névoa, ativando suas pedras que emitiam um brilho alaranjado. Foi então que notei que a pedra de Cass estava emitindo uma coloração estranha. Ela se preparava para entrar na névoa, e um pressentimento gelou meu sangue.

    Minha irmã já havia escapado de dois atentados contra sua vida. Será que sua pedra estava danificada de propósito? Com ela tão próxima da névoa, corri em sua direção, gritando para que não entrasse. Ela se virou, assustada, mas, em um impulso, a puxei para fora com todas as minhas forças. Cass não entrou na névoa, mas eu, desequilibrado, agarrei a pedra de sua mão e caí na escuridão envolvente.

    Agora, estava perdido. A pedra que tinha em mãos, como eu temia, não abria caminho algum. O medo me consumia; só queria que nenhuma besta das brumas surgisse para me devorar. Sabia que não podia permanecer ali parado, então escolhi uma direção e comecei a caminhar, esperando que a sorte estivesse ao meu lado.

    Caminhei por um longo tempo, sem saber onde estava ou o que aconteceria comigo. A fome e a sede me atormentavam, e meus pés doíam a cada passo. Em dois momentos, tive a impressão de que algo se movia próximo a mim, quase morrendo de susto. Então, de forma inesperada, saí da névoa e me deparei com uma área completamente estranha.

    À minha frente, se estendia um pântano obscuro. Tentei puxar pela memória se já havia ouvido falar de uma ilha assim, mas não encontrava nenhuma correspondência. Lamentei o fato de ter tentado ser um herói. Se eu estivesse fora do território humano, as chances de voltar para casa eram mínimas.

    Quebrei um galho para servir de apoio e testar o caminho no lamaçal, avançando cautelosamente. O cheiro do pântano era insuportável, um odor forte de decomposição afastou minha fome, mas a sede persistia.

    Estava exausto, e a luz do dia começava a desaparecer. Continuei em frente até avistar uma luz ao longe. Era uma estrutura baixa, meio piramidal, com uma porta de madeira envelhecida e apodrecida. Ao me aproximar, devido à meu cansaço, já havia abandonado qualquer cautela, e a porta se abriu abruptamente, revelando um esqueleto que me encarava.

    Ficamos parados, surpresos um com o outro, até que outros esqueletos começaram a surgir por trás do primeiro. Em um impulso, joguei meu galho contra o esqueleto e me virei, tentando correr. O pântano, porém, segurava minhas pernas, e sem forças, cai de cara na lama. Estava começando a me afogar naquela imundície pútrida quando várias mãos esqueléticas me puxaram para fora e me carregaram para dentro da pirâmide. Tentei me desvencilhar, mas minha força era insuficiente.

    Não consegui ver bem, mas fui levado por uma escadaria que descia na escuridão. Os esqueletos me conduziram a uma sala ampla, onde várias alcovas com grades de ferro estavam dispostas nas paredes. A iluminação das tochas revelava que algo se movia em algumas das celas. O cheiro que emanava do local superava até o do pântano, misturando dejetos, suor, sangue e criaturas mortas.

    Os esqueletos pararam diante de uma das celas, abriram a porta e me atiraram lá dentro. Agora, eu estava com fome, sede, cansado, dolorido e, além disso, sentia frio por causa das roupas molhadas.

    Ao perceber que não estava sozinho, recuperei um pouco da compostura. Havia um grande orc encostado na parede à minha direita, sentado e me observando com curiosidade. À esquerda, uma forma encolhida sob uma manta puída me chamou a atenção, mas não consegui discernir bem o que era.

    Com apenas uma parede livre à minha frente, caminhei até lá, sentei-me, recostei-me e tentei iniciar uma conversa com o orc.

    — Olá, faz muito tempo que você está aqui? — perguntei, esperando alguma reação.

    Ele não respondeu, mas usou um pedaço de osso para bater nas barras de ferro da cela, fazendo barulho. Em seguida, disse algo em uma língua gutural que eu não consegui entender. Risadas ecoaram de várias celas, e o orc também riu, como se eu estivesse fazendo parte de uma piada que eu não compreendia.

    Uma voz feminina me tirou da contemplação das risadas:

    — Eles estão rindo de você, principezinho…

    Olhei para as minhas roupas, que, apesar de serem de altíssima qualidade, estavam imundas.

    — Eu já imaginava — respondi, voltando a olhar para o montinho coberto pela manta. A cabeça feminina que emergiu tinha duas orelhas de raposa.

    — Eles estão apostando em quanto tempo você vai morrer aqui. Quem vencer vai ficar com a sua carne.

    — Eu aposto que vou morrer velhinho em minha cama.

    — Dificilmente… — completou a garota.

    — Deixe-me perguntar uma coisa… eles servem alguma comida aqui? Água?

    — Água eles dão todo dia. Comida raramente. Eu só comi três vezes desde que cheguei, há quase uma semana.

    Enquanto conversávamos, percebi que os esqueletos haviam retornado. Eles escoltavam uma figura encapuzada. A garota rapidamente se escondeu sob as cobertas, e o orc ficou absolutamente quieto.

    A figura afastou o capuz, revelando um rosto pálido e macilento, coberto por cicatrizes que formavam runas escuras gravadas na própria carne. Seus olhos esbranquiçados, opacos como cataratas, me fitavam de um jeito que deixava claro que ele enxergava muito bem. Era mais baixo do que eu, um palmo menor, com um corpo arredondado que parecia obeso sob o manto esfarrapado, e dele emanava um cheiro de podridão sufocante.

    — Sim, muito bom. É mesmo um humano — comentou ele, com uma voz aguda que soava errada, quase artificial. — Poderemos continuar nossos experimentos agora. Estamos com sorte.

    Os esqueletos ao redor começaram a bater os dentes, produzindo um som macabro, como se estivessem aprovando cada palavra do encapuzado.

    — Tragam-no — ordenou ele.

    Ao ver os esqueletos se aproximarem, ouvi a voz baixa da garota raposa, atrás de mim.

    — Foi bom conhecer você…

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