Capítulo 202: De volta ao Matadouro
Naquela noite, reuni as garotas e os demais para um passeio. Quando o transporte parou em frente ao Matadouro, as expressões de Nix e Claire foram de surpresa, e não de um jeito bom. Pandora me lançou um olhar curioso, silencioso, tentando entender o que estávamos fazendo ali. As únicas pessoas genuinamente animadas eram Alana, Niana, Cassiopeia, Alissande e André. Sim, os três tinham vindo juntos. Não me pergunte como, nem por quê.
Fomos conduzidos até o antigo camarote de Jorjen, agora oficialmente meu. O lugar havia sido reformado depois do ataque, e uma das novidades era o restaurante instalado ali, com atendimento completo. Assim que nos acomodamos, uma garçonete elegante apareceu, equilibrando charme e profissionalismo. Trazia um sorriso treinado nos lábios e uma pasta fina nas mãos.
— Aqui está a programação da noite — disse, com voz doce. — E aqui o cardápio. A senhora Rosa pediu que avisasse que, assim que as lutas começarem, ela virá lhes fazer companhia.
Nix e Claire não pareceram exatamente felizes com a presença dela. Seus olhares se encontraram, cúmplices em reprovação, analisando a saia curta demais da moça.
— Contatos no submundo, hein, Lior? — comentou André, rindo, em tom provocador. — Nada mais me surpreende.
— Pois é — respondi, sorrindo de lado. — Eu diria que precisamos estar abertos a todas as oportunidades.
— Não deixa de ter razão — admitiu ele.
Pandora, até então em silêncio, observava a arena com olhos atentos, analíticos.
— Rosa disse que me chamaria de volta quando a arena estivesse pronta. Prometeu. E não cumpriu — comentou, séria. — Você sabia disso, Lior?
— Fiquei sabendo há umas duas semanas. As lutas ainda estão em fase de testes. Rosa está reconstruindo o plantel de gladiadores.
— Marreta está ali — disse ela, apontando com o queixo. — Não é desculpa.
— Você realmente voltaria a lutar? Mesmo sabendo o que nos espera adiante?
André, Alissande e Cassiopeia arregalaram os olhos ao ouvir aquilo. Não sabiam que a professora particular da tarde era uma gladiadora profissional.
— Não olhem assim pra mim — disse Pandora, levantando uma sobrancelha. — O seu irmão aqui…
Ela apontou para mim e, sem perceber, também para Cassiopeia. A frase ficou no ar. Tarde demais.
Cassiopeia fechou os olhos, suspirando. Abaixou a cabeça, como se entregasse de vez. Alissande alternava o olhar entre ela e eu, tentando juntar as peças.
— Que história é essa de “irmão”? — perguntou, com a voz afiada de desconfiança. — Bem que escutei umas conversas depois da batalha. Mas os boatos morreram. Você é mesmo Ganimedes?
Antes que eu respondesse, Cassiopeia, ansiosa para remediar, se adiantou:
— Por favor… não conte isso pra ninguém.
Alissande se aproximou de mim. E, para minha completa surpresa, me puxou para um abraço apertado.
— Seu boboca — disse ela, com a voz embargada. — Quando você morreu, eu chorei feito uma louca.
Cass e eu dissemos ao mesmo tempo:
— Você?!
— Claro! Acham o quê? Que sou alguma desalmada? Eu pegava no seu pé, sim. Mas era coisa de irmão.
— Acho que sua noção do que é “coisa de irmão” é um pouco… distorcida — murmurei, meio rindo.
— Caramba! — exclamou André. — Alissande falava de você. E com carinho, viu? Mas, poxa… então é verdade. Você é mesmo Ganimedes.
— Não. Não sou — respondi, firme. — Sou Lior. Isso é um segredo. E não sai desta sala. Entendido?
Todos assentiram. Então olhei em direção à garçonete.
Ela ainda estava ali. Olhos arregalados, assistindo à cena inteira com o mesmo interesse de alguém que acabara de descobrir que vivia num romance clandestino.
Levei a mão ao rosto, suspirando.
As coisas não podiam estar indo pro rumo errado mais rápido do que isso.
Ao perceber que era o alvo dos nossos olhares, a garçonete ficou vermelha feito uma beterraba.
— N-Não se preocupem, senhor Lior — disse, tropeçando nas palavras. — Dona Rosa me mataria se eu falasse qualquer coisa. Olhe em volta.
Ela gesticulou em direção aos camarotes vizinhos.
— Muitos negócios sombrios são fechados dentro dessas paredes. Aqui… nós não temos ouvidos nem boca. Se eu não fosse confiável, não estaria trabalhando neste lugar.
Cruzei os braços e tentei fazer uma voz grave, carregada de mistério, como um vilão de filme noir:
— Falarei com Rosa sobre isso… Se você estiver mentindo pra mim…
Deixei o final no ar, acreditando que causaria mais impacto. Mas a gargalhada imediata de Nix e Claire me traiu. Até mesmo a garçonete soltou um sorriso.
— Fiquem tranquilos, senhores. Se me dão licença, vou buscar seus pedidos. Volto assim que soar o sino para anotar suas apostas.
E se retirou, aliviada, com passos rápidos.
Acabei me sentando ao lado de André e Alissande. Cass ficou por perto, curiosa para ouvir o que não tinha escutado da primeira vez. Até mesmo Pandora, que já sabia de boa parte da história, parecia interessada. Contei a eles fragmentos da minha jornada pela Névoa, e os motivos que me levaram a esconder minha identidade.
— Você desconfiava de mim?! — exclamou Alissande, indignada, mas não convencida. — Eu nunca conspiraria pra matar um irmão. Ou irmã. Mesmo sendo vocês dois!
Falou e mostrou a língua, num tom zombeteiro típico dela.
Virei-me lentamente para André, com a maior seriedade que consegui fingir.
— O que você fez com nossa meia-irmã? Onde está a verdadeira Alissande?
— Ela sempre foi assim comigo, ora — respondeu ele, rindo. — Vocês é que nunca se deram ao trabalho de conhecer ela a fundo.
Antes que pudesse rebater, a garçonete retornou. Um rapaz a acompanhava, equilibrando uma bandeja enorme. As comidas e bebidas finalmente tinham chegado. Nosso jantar informal estava servido.
Enquanto nos ajeitávamos, trocando pratos e copos, o sino soou, ecoando pela estrutura metálica do Matadouro. Luzes se acenderam ao redor da arena central, e as vozes da plateia aumentaram.
— Aí vem a primeira luta — disse Cassiopeia, animada.
O telão revelou os nomes dos combatentes: dois gladiadores de três círculos. De um lado, Wonbate; do outro, Adaga Prateada.
— Pelo menos uma coisa não mudou — comentei, rindo baixo. — Os nomes ainda são ridiculamente espalhafatosos.
— Aposto na Adaga — disse Alissande, já mastigando um pedaço de carne.
— Aposto que o Wonbate tem um golpe de corpo que te joga na parede — respondeu André.
Pandora observava os dois com o queixo apoiado nas mãos, um meio sorriso nos lábios.
— Vocês não fazem ideia de como isso funciona…
Claire e Nix não diziam nada, ainda meio desconfiadas por estarem ali, e com a garçonete, mas o clima ao redor da mesa já era outro.
Mais leve. Quase como antes da tempestade.
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