Capítulo 203: Surpresas inesperadas
A garota voava na arena. Seus passos eram leves, precisos, uma dança entre sombras e sangue. Cada movimento parecia coreografado com a própria morte. Hipnótica. Letal.
Seu oponente, Wonbate, era o oposto. Um bruto mascarado, com o visor metálico moldado como a cabeça de um lobo, e músculos definidos por anos de combate. Usava garras metálicas presas aos antebraços, afiadas o suficiente para rasgar carne e osso.
Mas agora… ele sangrava. Vários cortes rasos decoravam seu corpo, desenhando linhas rubras por cima da pele. Respirava com dificuldade, os golpes que desferia cortavam apenas o vazio, sempre um segundo depois da Adaga ter estado ali.
— Ele não vai resistir muito mais tempo — comentou André, os olhos fixos na arena.
— Não… — disseram Pandora, Cassiopeia e Alissande ao mesmo tempo.
Alissande completou, sorrindo como quem descobria irmãs numa guerra particular.
— Ele está fingindo. É óbvio. Olha pros passos dele. Tá deixando ela se soltar, ganhar confiança.
André e eu trocamos olhares, coçando a cabeça, cúmplices na ignorância.
— É mesmo?
— Claro — disse Alissande. — Ele tá se segurando. Se assustar ela agora, ela foge. Ele quer um momento perfeito pra cravar um único golpe. Só que ela é rápida demais.
— Hum… — murmurei, pensativo.
Então, uma voz se fez ouvir, clara e firme como um sino bem afinado:
— Obrigado por terem vindo ao Matadouro.
Rosa havia chegado.
Ela entrou em nosso camarote com a mesma confiança de sempre, uma pasta sob o braço e um brilho nos olhos. Mas não estava sozinha. A pessoa que a acompanhava fez meu sangue gelar por um segundo.
— Germano? — soltei, quase cuspindo minha bebida. — O que ele tá fazendo aqui?
Rosa respondeu sem hesitar:
— É um dos mercenários que selecionei para você. E, agora que Haroldo se foi, ele não tem mais inimizades com você.
Germano sorriu de canto, o mesmo sorriso de cobra que ele sempre teve.
— Nada contra você, garoto — disse. — Você precisava de caçadores experientes. Acontece que eu sou um dos melhores.
Fitei ele por um instante. O homem era perigoso. Sabia disso. Ainda lembrava perfeitamente da maneira como me ameaçou no passado, prometendo me matar com a calma de quem escolhe um vinho.
Mas Rosa o havia trazido. E se confiava nele, eu teria que confiar nela.
Por ora.
Enquanto Rosa se acomodava entre nós, o clima no camarote se dividia entre desconfiança e curiosidade.
Na arena, a luta chegava ao seu ápice.
A Adaga Prateada girava no ar com a leveza de uma pena e a letalidade de um estilete. Suas lâminas riscavam o espaço ao redor do gladiador mascarado como se desenhassem sua sentença.
Wonbate, por sua vez, mantinha a guarda baixa. Respirava com esforço, os cortes se acumulando. Mas seus olhos, por trás da máscara de lobo, não tinham medo, tinham cálculo.
Rosa abriu a pasta e me entregou uma prancheta com alguns nomes destacados.
— Fiz a seleção com base no que você pediu: versatilidade, lealdade comprável e histórico funcional. Primeiro nome: Karel Voss. Caçador de recompensas aposentado de Jerath. Usuário de espadas duplas. Quase morreu dentro da névoa… e saiu andando. Dizem que sua linhagem vem da época que humanos enfrentavam a névoa sem pedras de ancoragem, se guiando apenas com instinto e magia.
Balancei a cabeça. Era um bom nome, se sua história com a névoa fosse verdadeira, eu teria muito a aprender.
Na arena, Adaga avançou com fúria, certa de que encerraria a luta. Saltou, girando no ar, apontando ambas as lâminas para o peito do adversário.
Foi o que Wonbate esperava.
Ele moveu o corpo milímetros, só o suficiente, e cravou ambas as garras no abdômen dela. O impacto foi seco. Silencioso.
Ela ainda se contorceu por um segundo antes de cair de joelhos. O chão da arena absorveu o sangue como se já o esperasse.
— Primeira regra da arena — disse Pandora, baixinho. — Nunca subestime quem sangra devagar.
— Ele venceu… — murmurou André, surpreso.
Rosa continuou, indiferente ao ferimento diante dos nossos olhos.
— Segunda: Melrik Havel. Templário excomungado de Thalos. Ele sabe que a Igreja quer a cabeça dele, então vai onde o dinheiro e o anonimato estão. Bom com combate corpo a corpo. Diz ser bom com ervas, curas e veneno. Cara Durão.
Marreta entrou na arena, caminhando até Adaga. Verificou seu pulso, depois se levantou lentamente, erguendo a mão para o público e sinalizando a vitória de Wonbate. A arquibancada explodiu em aplausos e apostas vencidas. O rugido da plateia era ensurdecedor, não pela técnica, mas pela brutalidade. O sangue tinha falado mais alto.
Dois homens entraram rapidamente, carregando uma padiola de estrutura metálica. No canto da arena, à sombra de uma das arquibancadas, Malkus, o alquimista-médico de Rosa, já os aguardava, impaciente. Seus olhos seguiam os movimentos como os de um falcão, analisando cada respiração da garota desacordada.
— Vamos, vamos! — gritou ele. — Encostem ela aqui, rápido!
Enquanto os assistentes transferiam o corpo delicado de Adaga, Malkus ajoelhou-se ao lado dela e começou a aplicar compressas infundidas com soluções alquímicas. Um frasco dourado foi retirado de sua maleta e aberto com um estalo sibilante.
— Não quero perder um talento promissor — comentou ele, com frieza profissional. — Ainda pode render muitas apostas.
Lá embaixo, Wonbate deixava a arena mancando, sustentado por dois auxiliares. Os cortes ainda sangravam, mas ele mantinha a postura ereta, a máscara de lobo coberta de poeira e respingos de sangue. Era um vencedor, e, mais importante, um investimento que se pagava.
— Terceira na lista — Rosa continuou, virando a página. — Lianne Czerny. Feiticeira sensitiva. Ganhava a vida em jogos ilegais, lendo intenções antes dos outros agirem. Foi presa três vezes. Escapou todas.
— Isso é um grupo de combate… ou uma reunião de exilados perigosos? — murmurei.
Ela me lançou um olhar afiado.
— Você disse que precisava de pessoas que sobrevivessem, não de exemplos de moralidade.
Assenti, mesmo sem gostar da verdade.
Germano, quieto até então, soltou um comentário:
— Karel e Lianne eu conheço. Os dois matam rápido e perguntam depois. O templário… só ouvi falar. Mas dizem que ele escapou de uma prisão da igreja. Isso conta alguma coisa. Eu trabalharia com eles.
— Último nome… — disse Rosa, com um brilho nos olhos. — Um guerreiro conhecido. Fez questão de dizer que iria com você para qualquer lugar.
— Nome?
Rosa fechou a pasta com um leve estalo, repousando-a sobre a pequena mesa do camarote. Ela cruzou as pernas com elegância e, sem pressa, lançou o próximo comentário com sua típica entonação teatral:
— Anda sob o apelido de Marreta. Mas dizem que ele nasceu com outro nome… um nome que não se ousa repetir no submundo. Clark.
O silêncio tomou o camarote por um instante. Todos se entreolharam. Até mesmo o burburinho das arquibancadas pareceu se afastar por um segundo.
Até que Pandora arregalou os olhos e sussurrou, incrédula:
— Ele chama Clark? Sério?
E foi o bastante. A tensão acumulada se rompeu numa gargalhada coletiva.
Cassiopeia se jogou para trás na cadeira, rindo com uma mão no estômago. Alissande bateu na mesa entre risos, e até André, sempre contido, não conseguiu conter o sorriso debochado.
— Que tipo de nome tem peso de lenda e é… Clark? — zombou Alissande, com os olhos marejados de rir.
— Parece nome de padeiro aposentado! — completou André.
— Ou de jornalista que se transforma em super-herói nas horas vagas — disse Pandora, secando uma lágrima de tanto rir.
Rosa apenas observava, impassível, mas com um canto dos lábios curvado num quase-sorriso. Ela sabia que seu nome causava essa reação, e talvez tivesse esperado exatamente por isso.
Eu apenas suspirei, massageando as têmporas.
As risadas diminuíram, mas a leveza no ar permanecia.

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