Índice de Capítulo

    Guardei a pasta que Rosa me entregara. Além dos nomes que ela havia apresentado naquela noite, havia outros, alguns promissores, outros apenas curiosos. Teria tempo para analisar tudo com calma.
     

    Ficamos no Matadouro, aproveitando a comida, a bebida e a hospitalidade. Niana estava especialmente animada. Os olhos brilhavam enquanto acompanhava as lutas. Devia estar revivendo seus dias na arena. Ela parecia se alimentar daquilo, da violência estilizada, da glória efêmera de cada vitória.
     

    — Vou analisar os nomes e me decidir — comentei. — Amanhã te envio a lista.
     

    — Combinado — respondeu Rosa, erguendo sua taça de vinho em minha direção.
     

    Meus convidados riam, brindavam e vibravam com os combates. Apesar da brutalidade, nenhuma luta havia terminado em morte. Rosa sabia dosar o espetáculo. Os gladiadores eram guerreiros, sim, mas também eram seus investimentos. E, no fundo, havia entre eles um senso de união, de companheirismo que só quem já esteve naquele chão entendia. Eu sabia disso, eu fui um deles.
     

    — Posso lutar? — perguntou Niana, olhos famintos. — Quero participar… sentir o sangue de novo.
     

    — Vai ser difícil encontrar adversários à sua altura — respondi com um meio sorriso. — Você passou por avanços significativos. E além do mais, vamos sair em missão.
     

    Voltei-me para Pandora:
     

    — E você também. Desde que criou seu sol de mana, ninguém aqui chega perto do seu nível.
     

    As duas fizeram biquinho em sincronia, como crianças contrariadas. Ri baixinho.
     

    — Espero não voltar a lutar novamente — disse Claire, num tom leve, mas com firmeza. — Meus dias de gladiadora acabaram.
     

    André, Cassiopeia e Alissande se viraram para ela, espantados.
     

    — Você… lutou na arena?
     

    — Todos nós lutamos — falei. — Era o nosso treino secreto para o Torneio dos Jovens. Estávamos todos aqui quando a invasão aconteceu. Inclusive, eu ia enfrentar esse aí — apontei com o queixo para Germano.
     

    Ele apenas deu de ombros, como se o passado fosse uma névoa distante.
     

    — Falando em Torneio dos Jovens… — disse André — alguma notícia se ele vai acontecer?
     

    — Acho que não — respondi, num tom mais baixo. — Tenho a sensação de que em breve estaremos preocupados com coisas bem mais importantes.
     

    Eu pensava em Pandora. Em sua revelação como herdeira do Império. Sabia que aquela verdade, se viesse à tona, não seria recebida com aplausos. A possibilidade de instabilidade, ou até uma guerra civil, era real. Mas não era hora de discutir isso. Ainda não.
     

    Dei uma batidinha leve na pasta sobre a mesa.

    Com Niana, Pandora, André, Cassiopeia, Alissande, Marreta e Germano, e ainda contando com Gus e Melissa, meu time estava quase completo.
     

    Quase.

    Faltavam apenas algumas peças. E eu precisava me lembrar constantemente de que tudo aquilo era perigoso.
     

    Assim que o programa terminou, me despedi de Rosa, Cassiopeia, André e Alissande. Voltamos para casa sob um céu ainda vivo de luzes artificiais. Amanhã haveria mais uma rodada de aulas, a rotina, persistente como sempre, me chamava de volta.

    Na manhã seguinte, acordei com um raio de sol cortando a fresta da janela como uma lâmina dourada. A pasta de Rosa estava aberta sobre a escrivaninha, o conteúdo à mostra. Por um momento, encarei a cena sem entender… até reconhecer a caligrafia firme e elegante de Claire preenchendo as margens com anotações meticulosas: prós e contras, nomes circulados, setas ligando informações, pequenos comentários pessoais.

    Ela e Nix tinham saído cedo, cuidando dos preparativos para o casamento, mas mesmo assim, Claire encontrara tempo para me ajudar com isso. Um gesto silencioso, mas cheio de significado. Sorri sozinho, sentindo aquele tipo raro de gratidão que não precisa ser dita em voz alta. Eu tinha sorte. Elas valiam ouro.
     

    Depois de um café da manhã simples, atravessei os corredores ainda meio adormecidos da casa até o gramado. O sol já aquecia a terra, e alguns alunos estavam por lá, reunidos em pequenos grupos.

    Reconheci o núcleo dos que ainda travavam uma batalha para entender os fundamentos das runas fluidas. Sentei com eles antes da turma encher, aproveitando a calma para revisar os conceitos e, mais do que isso, conhecer melhor cada um deles.
     

    Jake Donnovan, por exemplo, era um desses casos curiosos. Gus o tinha em alta conta, chamava-o de prodígio com frequência. Mas prodígios também se engessam. Jake era brilhante, sim, mas travado nos métodos formais que aprendera com tanto esforço. Para ele, runas eram fórmulas rígidas. Não entendia, ainda, que elas formavam uma linguagem viva. Que, como toda linguagem, havia espaço para variações, nuance, ousadia. Desde que se compreendesse o alicerce.
     

    Enquanto explicava isso com exemplos práticos, o restante dos alunos foi chegando. Cassiopeia, André e Alissande estavam entre eles. Cumprimentei todos com um aceno discreto. Pandora os aguardava mais adiante, já se preparava para conduzi-los no fortalecimento do núcleo. Aqueles que quisessem me acompanhar em breve teriam que estar prontos. Não havia mais espaço para amadores.
     

    Gus e Milena, que já haviam solidificado a base de seus sois de mana, circulavam pelo gramado ajudando os demais. O fluxo era simples: dominar as runas fluidas, estabilizar a base, e só então dar o passo decisivo rumo ao sol de mana.
     

    Era fim de tarde quando uma figura inesperada cruzou os portões. Lenora vinha ao lado de Claire e Nix, que retornavam de suas tarefas. O manto claro da anciã balançava com o vento, e havia um brilho severo em seu olhar.
     

    Trazia um envelope.

    — Olá, Lior — disse, direta. — Estou vendo que anda mantendo-se ocupado. Ainda está formando um time, não?
     

    Havia algo de avaliação em sua voz. Quase reprovação.
     

    — Estou sim — respondi, com tranquilidade. — Parte virá desses alunos. Os mais preparados. E tenho outra pessoa lidando com a parte mais… profissional.
     

    Lenora assentiu, parecendo aprovar. Então ergueu o envelope.
     

    — Tenho uma mensagem para você. De Lock.

    Peguei o envelope de suas mãos. Estava selado com cera.
     

    Pedi licença, afastei-me alguns passos e quebrei o lacre.
     

    “Lior,
    A bagunça de engenheiros de mana aqui no escritório finalmente me deu uma trégua. Consegui montar o leitor de cristais de memória. Estou à disposição para vermos as memórias de Malena.
     
    Atenciosamente,
    Lockmead.”
     

    Fiquei um tempo olhando para as palavras. Elas pareciam mais pesadas do que o papel que as carregava.
     

    As memórias de Malena. Elas podiam mudar tudo. Negar o que eu achava que sabia. Reescrever parte da minha origem.
     

    E, honestamente… não sabia se estava pronto.
     

    Com a missão da ilha inexplorada à frente, eu não podia me dar ao luxo de mergulhar em conflitos internos. Mas o peso da dúvida me corroía por dentro havia semanas. Talvez fosse pior não saber. Talvez fosse isso que me enfraquecia sem eu perceber.
     

    Perdido nesses pensamentos, quase não notei quando Nix e Claire se aproximaram.
     

    Não disseram nada. Apenas me abraçaram, uma de cada lado.
     

    Naquele momento, tudo pareceu um pouco mais leve.
     

    Como elas sempre diziam: Não importa quem foi Mahteal. O que importa… é quem você escolhe ser agora.
     

    E eu sou Lior.

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 100% (3 votos)

    Nota