Capítulo 208: Reconhecimento
Reuni todos que participariam do reconhecimento: eu, Niana, Germano, Karel e os dois homens da Casa Argos enviados por Calmon. Antes de partirmos, estabeleci um elo mental entre nós. Um canal silencioso, que me permitia ver e ouvir o que cada um deles captava. Já estava acostumado com múltiplas camadas de percepção, um dos muitos benefícios de carregar a expertise de Mahteal em minha mente.
Distribuímos as direções. Cada um avançaria por cerca de trinta minutos e retornaria em seguida para relatar o que encontrasse.
— Lembrem-se — alertei, com firmeza. — Se encontrarem sinais de inimigos, não enfrentem. Recuem imediatamente. Eu saberei e também retornarei.
Partimos. A floresta era silenciosa, mas viva. Sussurrava com o farfalhar das copas e o estalar de galhos secos sob os pés. A tensão era visível em alguns olhares, mas todos voltaram antes do anoitecer, como combinado.
Ninguém encontrou qualquer presença hostil ou sinal anormal.
Minha equipe não voltou de mãos vazias, no entanto.
Eu mesmo descobri a entrada de uma caverna profunda, oculta por vegetação espessa. Fiz uma leitura rápida da mana no entorno, nada além de morcegos e insetos. Sem marcas de passagem, sem rastros. Ainda assim, merecia atenção futura.
Niana encontrou uma queda-d’água. Um achado valioso. Ter uma fonte confiável por perto mudava tudo. Amanhã cedo, eu e Germano iríamos até lá verificar as condições. Dependendo do terreno, talvez fosse melhor mover o acampamento.
A maior surpresa da noite, no entanto, veio de Will, um dos soldados de Calmon. Voltou triunfante, com duas aves enormes e gordurosas nos ombros. Espécie desconhecida, mas claramente comestível. Seria o jantar, e por ora, um alívio bem-vindo.
O cheiro da carne assada se espalhava pelo acampamento, misturado ao vapor das batatas cozidas e o estalo discreto das toras que queimavam na fogueira, lançando uma luz bruxuleante que trazia calor e conforto. As conversas eram baixas, mas havia certo alívio no ar. Nenhum perigo imediato, uma boa refeição quente e a promessa de descanso. Por ora, isso bastava. Era um bom começo.
Aproveitei o momento e chamei Calmon para se afastar um pouco, para uma conversa mais reservada.
— Até agora, não encontramos nenhum sinal das pedras de mana que sua casa jurava existir aqui — falei direto, olhando-o nos olhos. — Nada por aqui que demonstre que outros vieram antes de nós.
Calmon esfregou o queixo, uma barba cerrada começava a despontar, visivelmente desconfortável.
— As informações que recebi eram preliminares, Lior. Os relatórios que chegaram em nossas mãos eram fragmentados, pedaços recolhidos de acampamentos anteriores. Fragmentos de mapas que mencionavam “veios adormecidos” em alguma parte norte das Montanhas Brancas.
— Imaginei que teríamos que escalar as montanhas.
Lior olhou para cima, mesmo sem poder ver nada além da folhagem escura e das sombras da noite. Ele se lembrava da enorme cadeia de montanhas que viram, antes de entrar na floresta.
— Garanto que os inimigos estarão onde as pedras de mana estão. Até mesmo animais sentem a importância delas. Meu medo é nossos inimigos serem inteligentes. Eles recolherem seus vestígios, os vestígios dos acampamentos anteriores é um sinal disso.
Ele assentiu, contrito.
— amanhã começamos a nos mover para os pés das montanhas — falei.
— sinto que temos que nos mover com velocidade — disse Calmon. Seu olhar um tanto quanto assustado.
Eu apenas concordei.
Nosso silêncio foi preenchido pelo murmúrio distante da floresta e o crepitar da fogueira. Calmon voltou para perto dos seus. Fiquei ali por mais um instante, observando as sombras que dançavam nas folhas. A noite parecia mais densa ali. Como se a escuridão tivesse peso.
Fomos todos dormir. Percebia que estavam todos inquietos. Era compreensível.
A primeira a reclamar foi Karel. Depois, um dos soldados. Então outro. Em menos de uma hora, boa parte do acampamento começava a relatar o mesmo: sonhos confusos, estranhamente vívidos, como se fossem… compartilhados.
Não era natural.
— Era um campo… sem fim — disse um dos homens. — Com colunas negras. E algo que andava entre elas. Eu sabia que estava dormindo, mas… não conseguia acordar. Tive que fazer muita força.
— Um sussurro — comentou Karel, a voz embargada. — Me chamava pelo nome. Não era uma lembrança. Era agora.
Conversei com todos que tinham sonhado. O padrão se repetia, com pequenas variações. Sempre a presença, sempre o campo, sempre a sensação de serem observados, invadidos.
Marreta me olhava e tremia, supersticioso, até mesmo Cass parecia atordoada. Como se tudo aquilo estivesse a afetando mais que parecia.
André tinha o semblante sério. Ele amparava Alissande, que estava em seu colo.
Senti um arrepio. Entrar em sonhos Era uma das habilidades mais perigosas de que eu já ouvira falar. Poucos conjuradores sabiam como fazer isso sem consumir a própria mente. E os que sabiam, quase sempre serviam aos piores propósitos.
Conjurei uma barreira mental com Gus e Milena, provisória. Amanhã montaríamos uma contra-runa de proteção onírica. Mas já era tarde demais para negar: o inimigo sabia que estávamos ali.
E estava testando o terreno, sondando.
O sol ainda mal tinha rompido as copas altas quando chamei Germano e Niana. Pegamos suprimentos leves e partimos em direção à queda-d’água que ela havia localizado no dia anterior.
A floresta parecia diferente pela manhã. Mais úmida. Mais alerta.
Niana seguia à frente, pisando com leveza, os olhos atentos a cada detalhe. Germano vinha logo atrás, marcando pontos de referência com uma faca. Eu mantinha um canal sensorial aberto, ampliando o alcance dos meus sentidos através do mana ambiente.
O som da queda d’água foi crescendo aos poucos. Um murmúrio constante que se transformava em rugido conforme avançávamos. Por fim, surgimos em uma clareira. A água despencava de cerca de vinte metros de altura, formando um poço límpido, cercado por rochas cobertas de musgo e plantas espiraladas que eu não reconhecia.
— Impressionante — murmurou Germano. — Isso pode servir como ponto de abastecimento fixo. Mesmo se movermos o acampamento, podemos usar o rio, acima para nos guiar. Orientar nosso avanço.
Concordei, era uma escalada difícil, mas seguir rio acima era uma estratégia garantida.
— vejam aqui — disse Niana, agachada perto da margem.
Me aproximei.
Ela apontava para uma marca sutil, quase apagada, na pedra próxima. Um símbolo circular, com traços internos cruzados como galhos entrelaçados. Runa antiga. Uma das que se usavam em rituais de vedação ou contenção.
— Isso não foi feito por animais — sussurrou ela. — E não é recente.
Germano analisou a marca, sempre me esquecia que ele era um mago também. Parecia curioso.
— Nunca vi nada assim — confessou ele.
— Isso estava selando alguma coisa — concluí. — Ou vigiando.
Olhei em volta. A área parecia pacífica, mas agora que sabíamos onde procurar, a floresta revelava detalhes antes despercebidos. Outras pedras com inscrições, sem padrão claro. E uma ausência gritante: não havia nenhum animal por perto. Nenhum som de pássaro, nem insetos, nem rastros no solo úmido.
Como se algo ali afastasse toda forma de vida.
— Vamos marcar esse local — disse. — Vamos ter que mover nosso acampamento para mais perto das montanhas. Quem vier buscar água deve sempre vir acompanhado.
Niana assentiu, mas não desviou o olhar da queda. Os olhos dela estavam distantes, como se ouvissem algo que mais ninguém ali conseguia perceber
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.