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    Acordamos cobertos novamente pelo pó azulado.
     

    Ele recobria o teto das barracas, os rostos dos que dormiram ao relento, os sacos de dormir e nossas roupas. Estava em toda parte, como uma neblina que tivesse se depositado durante a noite.
     

    No desjejum, veio a constatação mais alarmante: um dos carregadores da comitiva dos Argos havia desaparecido.
     

    Sem gritos. Sem rastros. Ninguém tinha visto ou ouvido nada.

    Instintivamente, culpei o feitiço de alarme. Talvez Milena ou Gus tivessem cometido algum erro sutil. Fui verificar pessoalmente. Nada.
     

    O encantamento ainda pulsava, íntegro e perfeitamente selado. Havia sido montado corretamente, e estava funcionando.
     

    Mais estranho ainda: os pertences do carregador também haviam sumido. Nada restava dele.
     

    — Os rastros mostram que ele se levantou no meio da noite, pegou suas coisas e saiu — disse Germano, agachado junto às pegadas fragmentadas.
     

    Karel, ao lado, assentiu com um breve murmúrio.
     

    Um arrepio me percorreu a espinha. Isso significava que minha barreira mental tinha falhado. De algum modo, ele fora influenciado. Caminhado para fora por vontade que talvez nem fosse sua.
     

    Não compreendia. Nenhum dos conhecimentos herdados de Mahteal explicava o que havia falhado. Não encontrava lacunas. E ainda assim… ele se fora.
     

    — Droga! — exclamei, frustrado, enquanto chutava a areia úmida ao pé da barraca. Já tínhamos a primeira baixa, e sequer sabíamos por quê.
     

    Para afastar qualquer suspeita alternativa, chamei Calmon. Coloquei discretamente um feitiço de detecção de mentiras no ar entre nós.
     

    — Esse seu carregador não teria alguma ordem secreta? Algo que o obrigasse a seguir sozinho? Alguma missão paralela da Casa Argos?
     

    Calmon pareceu sinceramente surpreso.
     

    — Não, Lorde Lior. Não seria inteligente mandar um trabalhador — por mais habilidoso que fosse, andar sozinho por uma terra que não tem feito outra coisa senão engolir nossos homens.
     

    Ele dizia a verdade. Sem desvios. Sem dissimulações.
     

    Respirei fundo. Restava apenas uma explicação: influência mental profunda. Andarilhos de sonhos. Ou algo mais sutil. Mais antigo.
     

    Ordenei que o acampamento fosse desmontado. Tínhamos que prosseguir. Mesmo com o mistério. Mesmo com o medo.
     

    Mas eu via nos rostos dos homens o que a boca deles ainda não dizia: o espanto. O terror abafado. Todos conheciam o destino dos expedicionários anteriores. E agora, mesmo sob proteção mágica, um dos nossos sumia no escuro, sem um som.
     

    A moral do grupo estava despencando. E mais rápido do que eu podia conter.
     

    Pandora e Niana se aproximaram. Estavam sérias. Preocupadas.
     

    — O que vamos fazer? — perguntou Pandora, direta como sempre.
     

    — Ainda não sei — admiti. Mostrei a elas um frasco com um pouco do pó azul que havia recolhido mais cedo. — Enquanto andamos, vou tentar analisar isso. Talvez algum método mágico nos revele algo.
     

    As duas assentiram. Suas expressões estavam marcadas pela fuligem azulada. Foi nesse momento que tive uma ideia.
     

    — Posso tentar algo? — perguntei, olhando para ambas. — Pode parecer um pouco intrusivo. Mas prefiro pecar pelo excesso. Imagine se eu volto pra casa sem a irmã da minha esposa…
     

    — Humpf — bufou Niana, cruzando os braços.
     

    Pandora riu, mais pela tensão do que pela graça. Mesmo assim, concordaram.
     

    Estabeleci entre nós um vínculo mental reforçado. Agora, eu poderia captar os pensamentos superficiais delas em tempo real. Se houvesse alguma interferência, mesmo sutil, eu saberia. Se seus padrões mentais mudassem, eu sentiria o impacto.
     

    Além disso, lancei feitiços de rastreamento discretos. Um a cada três membros dos Argos. Em todos os meus.
     

    Se mais alguém desaparecesse, dessa vez eu saberia exatamente para onde.
     

    Prosseguimos viagem em silêncio, o passo ritmado dos carregadores e o respirar pesado impedia qualquer conversa mais longa. A tensão do desaparecimento ainda pesava, mas todos sabiam que parar ali não era uma opção. A mata ao redor parecia mais densa agora, ainda mais com o abafado pelo calor crescente.
     

    Foi niana quem percebeu primeiro.
     

    — Tirando aquela ave que comemos, não vi sinais de animais, nem mesmo de insetos. Estranho isso.
     

    Era outra estranheza do local, mas minha cabeça estava agora no pó. Deixaria outras preocupações para a frente.
     

    Na dianteira, eu ia analisando o frasco com o pó azul sob diferentes ângulos de luz e aplicação mágica. Tentava de tudo, alterações térmicas, feitiços de identificação, impulsos sutis de mana. Aos poucos, as propriedades começavam a se revelar.
     

    O pó reagia de forma tênue à magia. Quase apático, mas não inerte.
     

    Aquilo não era poeira mineral nem resíduo mágico. Era algo vivo. Ou, ao menos, orgânico.
     

    — Estranho… — murmurei para mim mesmo, isolando um fragmento sob um pequeno globo de contenção mágica. — O padrão de mana é fraco demais pra ser uma criatura mas existe… algo. Uma pulsação irregular. Como se fosse parte de algo maior.
     

    Me aproximei de Germano e Niana, que vinham logo atrás. Compartilhei minhas observações com ambos.
     

    — É como se fosse orgânico — expliquei. — Mas sem força suficiente pra se sustentar sozinho em nenhum sistema mágico. Quase como… uma casca vazia.
     

    — Esporos? — sugeriu Germano, franzindo o cenho. — Se for algum tipo de fungo, talvez a parte ativa não esteja no pó em si. Pode ser só o veículo.
     

    — Ou a semente — completou Niana. — Um fungo avançado o suficiente poderia espalhar seus esporos no ar pra manipular ambientes inteiros. Há registros disso em zonas infectadas, mas nada com essa coloração…
     

    — Ou com esse comportamento — acrescentei. — Se for mesmo um fungo, ele não está reagindo como deveria. Não há germinação aparente, nem tentativa de replicação. Ele apenas… está. Presente.
     

    — Mas e se o ciclo dele for mais lento? — ponderou Germano. — Ou precisarem de hospedeiros? Já vi fungos que dominam insetos. E só o fazem quando as condições são certas.
     

    — Como um número suficiente de corpos vivos ao redor? — completou Niana, olhando para o grupo em marcha à frente.
     

    Assenti, mas sem dizer nada. Engoli em seco. Ainda não havia razão para alarme, não de imediato. Mas a hipótese se firmava com um desconforto crescente no fundo da mente.
     

    — Vamos continuar observando — disse. — E manter o uso de máscaras nas horas de acampamento. Mesmo que os homens não gostem. Não quero nenhum outro desaparecimento… ou pior. Vou pedir que todos amarrem máscaras em seus rostos.
     

    Niana apenas assentiu. Germano ficou em silêncio.
     

    A caravana avançava.
     

    A vegetação começava a rarear, dando lugar a um tipo diferente de solo, mais rochoso, esbranquiçado em alguns pontos, como se coberto por cristais muito antigos ou cinzas petrificadas. A estrada improvisada que seguíamos agora se estreitava em curvas mais sinuosas.
     

    Estávamos nos aproximando de um grande lago.
     

    À distância, vi um acampamento abandonado, parcialmente desmontado, parcialmente destruído.
     

    Entre os destroços, algo fez meu coração parar: figuras humanas, imóveis, como estátuas. Pareciam congeladas no tempo, presas em gestos simples, como se aguardassem a luz do sol.
     

    Antes que o grupo se aproximasse, ergui a mão, ordenando que parassem.
     

    — Fiquem aqui. Eu vou primeiro.
     

    Não arriscaria ninguém. Precisava ver com meus próprios olhos o que aquilo era.

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