Capítulo 212: Mais problemas
Ainda naquela noite, decidi que era hora de me aproximar de Karel. Precisava entender melhor seus conhecimentos sobre a névoa. Aproveitei que todos ainda estavam reunidos em volta das fogueiras, jantando e conversando baixo, e caminhei até onde ela estava. Como sempre, permanecia sozinha, afastada da roda maior. As pessoas não reagiam bem ao seu hábito de murmurar palavras estranhas para si mesma, e, considerando a tensão em que vivíamos, falar sozinho só aumentava o ar macabro.
Sentei ao seu lado, sem cerimônia.
— Ouvi dizer que você já escapou da névoa… ficou perdida sem uma pedra de ancoragem — comentei, de maneira casual. Não era hora de medir palavras.
Ela segurava uma tigela com um caldo grosso, feito de batatas e carne seca que havíamos trazido. Levantou a cabeça lentamente, e percebi que quase não tinha comido. Quando seus olhos encontraram os meus, ela apenas assentiu.
Karel era… difícil de definir. Havia nela algo de selvagem, e ao mesmo tempo, algo frágil. Sua postura mostrava independência e força, mas agora que eu estava tão perto, reparei como seus braços e pernas eram magros, o olhar carente de atenção. Talvez não fosse tão forte assim. Talvez ninguém fosse, depois de tudo o que já passamos. Mas o instinto de protegê-la me veio quase que de imediato.
— Sim, Lorde Lior… eu me perdi na névoa. — A pausa que ela fez antes de continuar me fez prestar mais atenção. — Não uma, mas três vezes.
Bebi devagar da minha caneca, deixando que ela continuasse.
— A primeira vez eu era apenas uma criança. Entrei… e voltei para o mesmo lugar, com apenas uma hora de diferença. A segunda, estava fugindo de pessoas que queriam me matar. E a terceira… foi no meu batizado.
— Eu também me perdi na névoa, uma vez — falei, quase para mim mesmo. — Parece que foi outra vida atrás.
A olhei com mais interesse. — Ouvi dizer que sua família vem de antigos exploradores da névoa.
— É verdade. Não somos nobres, somos vassalos dos Zephyrus. Uma casa de viajantes antigos. Antes das pedras de ancoragem, precisávamos de outros métodos para atravessar. Conhecimentos que… custavam caro, e quase sempre, sangue.
Assenti.
— Preciso entender melhor a névoa. Pode me ensinar alguma coisa?
Ela sorriu de um jeito tímido, mas havia ali um peso que eu não entendi.
— O primeiro passo você já deu: ter se perdido nela. Isso é como uma iniciação. — Fez uma pausa e mordeu o lábio. — Mas não cabe a mim decidir isso. Existe um conselho na minha família. Só eles podem aceitar um novo iniciado.
Não insisti. Ainda havia muitas perguntas que eu queria fazer, mas entendi que aquela não era a hora. Me levantei e fui até onde Cassiopeia estava.
Alissande e André já tinham ido dormir, mas Cass permanecia sentada ao lado de Pandora e Niana. Quando me aproximei, Cass me recebeu com um sorriso travesso.
— Já foi tentar uma nova presa, irmão? — disse, rindo, deixando claro que queria insinuar algo sobre Karel.
Pandora fechou a cara, Niana bufou.
— Até você com esse tipo de história, irmã?
As três riram.
— A fama de lorde Lior… — provocou Pandora. — Mulherengo inveterado.
Fiz um bico teatral.
— Calúnia e difamação — murmurei, arrancando mais risos delas.
Cass voltou a conversar com Pandora, trocando informações sobre técnicas que só as duas entendiam. Niana, atenta, acompanhava cada palavra. Mais afastado, percebi Cris, um dos mercenários que contratei, observando discretamente. Até hoje, não lembro de ter ouvido a voz dele. Seus olhos, porém, diziam muito: atentos, avaliadores. O tipo de homem que fala pouco, mas absorve tudo ao redor.
Deixei-as ali, envolvidas na conversa, e me retirei. Precisava descansar, recuperar o máximo da minha mana. Amanhã seria o dia da varredura, e eu queria estar no meu auge. Iria examinar cada um com precisão, procurando qualquer sinal de infecção pelos esporos. Nada passaria despercebido.
O acampamento despertou em um ritmo mais lento. Não havia aquela pressa nervosa de desmontar e seguir viagem. Iríamos passar mais um dia ali, talvez mais. Manter todos vivos e protegidos era mais importante do que qualquer avanço apressado.
Ninguém havia sonhado. Ninguém havia desaparecido. Já era um alívio.
O escudo que eu havia erguido na noite anterior ainda estava firme. Pedi a Gus e Milena que o alimentassem com mana. Uma vez criado, ele exigia pouco para se manter, a menos que fosse atacado. A barreira mental também se mantinha estável. Por ora, isso me permitia respirar.
Enquanto todos tomavam o café da manhã, comecei a chamar, um por um, para o que planejava desde a noite anterior. Arrastei um banco para um canto mais isolado e iniciei os exames.
Chamei primeiro os homens de Calmon.
Foi um trabalho lento e exaustivo. Em pouco mais de duas horas, havia examinado todos do grupo. A cada inspeção, minha técnica ficava mais refinada; aprendia a reconhecer melhor os padrões e sutilezas do que procurar. Em cada pessoa, eliminei minúsculos grãos de esporos que encontrei alojados. Tinha certeza de que nada escapara ao meu escrutínio.
Apenas um homem apresentou algo diferente, uma estrutura viva, minúscula, crescendo discretamente dentro de uma de suas narinas. Isolei a área com um campo de proteção e incinerei o pequeno broto antes que pudesse se desenvolver.
Era hora de chamar Calmon. Ele se aproximou com o cenho fechado, a preocupação evidente no rosto.
— Não tenha medo — disse, enquanto o fazia sentar. — Mesmo que encontremos algo, ainda teremos tempo de agir.
— Eu sei — respondeu, mas sua voz carregava um peso. — Estava pensando no pessoal que veio antes de nós. Aquelas… coisas, no acampamento que você queimou.
— Deve ter sido horrível — concordei. — Morrer sem entender o que estava acontecendo. Pessoas sumindo no meio da noite… agora consigo entender por que os relatos diziam que os ataques pareciam coisa de fantasmas.
Enquanto falávamos, mantive a atenção nele, sondando seu mana por dentro e por fora. O corpo estava recoberto de esporos, como todos nós, mas nada estava enraizado. Nenhum crescimento ativo. Soltei o ar que nem percebia estar prendendo.
Assim que ele se afastou, notei meus homens, e mulheres me observando de longe. A curiosidade e a apreensão estampadas no rosto de cada um. Sabiam que em breve seria a vez deles. Marreta principalmente parecia ansioso.
Antes que se aproximassem, ergui a mão num gesto de negativa.
— Deixem que eu me avalio primeiro. — Sorri de lado. — Agora que estou craque nisso…
Minha risada ecoou, quebrando um pouco da tensão. Cass e Pandora, porém, apenas se entreolharam e levaram as mãos à testa, como quem não acredita no que acabou de ouvir.
Fechei os olhos e me concentrei, mergulhando para dentro de mim.
Dessa vez, faria uma varredura completa, sem pressa e sem piedade. Como era em mim mesmo, poderia ser ainda mais invasivo do que com os outros. A sensação era desconfortável, dolorosa, mas eu queria certeza absoluta.
O que encontrei me gelou por dentro.
Não estava nos lugares onde eu esperava, não nas cavidades abertas, não nas vias respiratórias ou na pele. Era mais profundo. Mais íntimo.
No centro do meu cérebro, como uma semente adormecida, pulsava uma presença estranha.
E no meu coração, enraizadas na carne viva, gavinhas finas se entrelaçavam, como se se alimentassem de cada batida.
A respiração me faltou por um instante.
Isso mudava tudo. Eu teria que refazer o exame em todos, desde o início. Aquela coisa podia estar escondida onde ninguém tinha procurado.
E, pior… ela estava em mim.
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.